fotografia: filipe sousa | 22 setembro 2020
«Com Elisabeth muito encostada a si, no extremo da amurada, afastados dos outros passageiros, Juvenal recordava a noite já longínqua, fim de ano alegre em que ele viera para a baía, não banido, como agora, mas curioso de ver quanto fogo-de-artifício se queimava em honra de S. Silvestre.
Era velho costume da ilha saudar o ano nascente e fazer ao morto coruscantes funerais com uma festa pirotécnica. Antes mesmo de cair a meia-noite sobre o último santo do calendário, portas e janelas da cidade, fossem de vivendas modernas, de antigos e austeros palácios ou de pobres casebres, começavam a esparrinhar fogo na grande encosta, enchendo a escuridade de lumaréus, fogachos rabiantes, rútilas serpentinas, jactos de luz que se cruzavam, derramando estrelas e lágrimas, flamas de vida errante e efémera, dando sempre lugar a outras, a muitas outras, que se entrançavam com todas as cores do arco-íris e se perdiam num espectáculo demoníaco, fantasmagórico e inesquecível. Tudo ardia, tudo fulgurava; já não existia a noite; já não existia a terra; vivia-se num outro mundo, um mundo de fogo crepitante, que arremessava estilhaços de constelações e de astros, por entre os quais vagueavam serpentes vermelhas e caíam, lentamente, lentamente flores extravagantes, pétalas rubras, como se se estivessem a desfolhar os inesgotáveis jardins do céu. A noite era uma apoteose aos génios do mar. (...)
O «Guiné» afastava-se da baía do Funchal e, agora, abrangia-se melhor a encosta povoada de focos luminosos e cada vez mais fantástica na noite atlântica.»
Ferreira de Castro, Eternidade (1933), 15ª ed., Cavalo de Ferro, Amadora, 2020, pp. 266, 270.