Berlin / Berlim, Tempelhofer Feld

fotografia: filipe sousa | 6 junho 2019

 
















E POR FALAR EM AEROPORTO...
No dia 6 de Junho de 2019, em que Berlim foi a capital europeia mais quente, registando 33 graus Celsius à sombra, a Regina e o Markus, munido de geladeira com cervejas e salame de carne, deram-nos a conhecer, a mim e à Clara, o maior parque público da cidade. A sua criação data de 2010, depois do encerramento do aeroporto de Tempelhof, dois anos antes, e de os berlinenses terem sido chamados a pronunciar-se sobre o destino a dar às antigas instalações aeroportuárias, que incluem terminais de partida e chegada, hangares e oficinas, pistas de aviação e espaços envolventes.
Beneficiando deste envolvimento cívico e de algum investimento público, o aeroporto de Tempelhof transformou-se em poucos anos no principal local de lazer da cidade alemã, ou seja, no Tempelhofer Feld, um espaço de cerca de 400 hectares onde é possível a prática de bicicleta, skate, patins, segway ou kitesurf, mas também a realização de festivais de música, actividades de conservação da natureza e agricultura sustentável, de economia circular e colaborativa, assim como o desenvolvimento de processos participativos como os que dizem respeito a criação e gestão de hortas-jardins comunitários pelos cidadãos.
Há quem venha propositadamente do centro de Berlim, de comboio, como nós fizemos, para passar uns bons momentos no seu “paraíso” de 4 metros x 4 metros, entre canteiros de flores e legumes, com uma viola ou um livro nas mãos, apanhado ali perto, na pequena biblioteca instalada dentro de uma espécie de cabina telefónica. Há também aqueles que vivem nas redondezas e chegam a pé ou de bicicleta, em grupos de amigos ou famílias, para tomar apenas ar ou refastelar-se na relva a pretexto de um piquenique.
Construído nas décadas de 20 e 30 do século passado, o aeroporto de Tempelhof serviu também para manutenção de aeronaves e de base militar durante o regime nazi. Em 1945, foi ocupado pelo exército soviético e, nesse mesmo ano, entregue à administração americana. Tornou-se ainda um dos principais cenários de uma das mais graves crises da Guerra Fria. Durante o bloqueio terrestre de Berlim pelas forças soviéticas, entre Junho de 1948 e Maio de 1949, o abastecimento de Berlim Ocidental foi assegurado pelas Forças Aéreas dos EUA e Reino Unido através, precisamente, do aeroporto de Tempelhof. Só em 1993, a Força Aérea norte-americana devolveria o aeroporto à cidade.

Graham Greene, no seu Journey without maps, transporta-nos aos anos 30 do século passado, descrevendo uma aterragem no Tempelhof.

«O avião oscilava sobre Hanover, ainda empurrado por uns restos de temporal, afundou-se de repente uns cento e cinquenta metros em direcção da pequenina aerogare e elevou-se de novo para Leste. Atrás do aparelho o pôr-do-Sol alongava-se pelas nuvens, que tomavam cores pálidas em sulcos compridos. Por cima dos lagos o ar era plúmbeo, e a água parecia enterrada no chão, semelhante a rodelas de chumbo. Aqui e além as luzes das aldeias. Anoitecera muito antes de se chegar a Berlim: a cidade veio ao encontro do avião, através do negrume, como um archote, línguas de fogo saídas da noite pesada. As tabuletas luminosas eram do tamanho de estampilhas; podia-se ver todo o traçado da cidade, como nos mapas do metropolitano quando se carrega no botão para verificar o percurso. O enorme rectângulo de Tempelhof estava marcado a vermelho e amarelo. O aparelho inclinou-se sobre Berlim, deu uma volta e desceu; apagaram-se as luzes do interior, os faróis varreram a pista asfaltada, viram-se clarões atrás da asa parda do Lufta Hansa quando o trem de aterragem tocou o solo e deslizou. Rápida e feliz sensação! Na terra, porém, entre as cruzes suásticas, notava-se a dor a cada quilómetro percorrido.»

Graham Greene, Jornada sem mapas (Journey without maps, 1936), trad. Cabral do Nascimento, Editorial Minerva, Lisboa, 1964, p. 34. 

València / Valência, Plaça del Mercat

fotografia: filipe sousa | 11 março 2020























E as "dama" sozinhas de Angola (que não constam do cartaz!), com vidas destroçadas, habitantes dos limites da vida?

«Teresa Chilambo, 35 anos, o marido morreu na guerra, são quatro pessoas em casa, ganha a vida com a lenha;

Alice Vissopa, 49 anos, cria quatro órfãos cujas mães faleceram e cujos pais, um foi para a mata e outro morreu na mina; tem uma pequena lavra;

Joaquina Ngueve, 31 anos, teve dois maridos, um desapareceu há quinze anos, o outro está em Luanda há dois anos, tem sete filhos e vive de vender bebidas fermentadas;

Adélia Jepele, 35 anos, o marido faleceu por doença há três meses, tem seis filhos, vive vendendo fuba;

Jacinta Vondila, 45 anos, o marido faleceu há três anos por doença, cinco filhos, vive de lenha;

Firmina Susso, 40 anos, o marido faleceu na guerra há cinco anos, quatro filhos, vive de lenha;

Clementina Chova, 24 anos, o marido está preso há três anos em Luanda, dois filhos, vive de lenha;

Maria de Fátima, 27 anos, dois maridos, o primeiro faleceu em emboscada, o segundo está com outra senhora em Benguela, três filhos vive de lenha;

Margarida Jondo, 43 anos, o marido faleceu há três anos por doença, quatro filhos, vive da lenha;

Teresa Chicumbo, 24 anos, o marido foi para a tropa há quatro anos e não deu mais notícia, três filhos, vive da candonga;

Maria da Natividade, 30 anos, o marido morreu na guerra, cinco pessoas em casa, vive da candonga;

Flora Massanga, 32 anos, teve três maridos, o último está no Lobango com outra, cinco pessoas em casa, tem uma lavra;

Joaquina Chacuvala, 39 anos, teve dois maridos, um faleceu de doença, outro na guerra, sete pessoas em casa, vive da candonga;

Regina Negueve, 24 anos, teve um marido que foi para o Lubango há três anos, vive com outras cinco pessoas em casa, tem lavra;

Josefa Chissuva, 59 anos, o marido faleceu com doença, cria dois órfãos cujos pais faleceram na guerra, vive da lenha;

Madalena Salassa, 35 anos, o marido faleceu na mina, cinco pessoas em casa, vive da lenha;

Maria Nagueve, 50 anos, dois maridos, um está na UNITA, o segundo tem outra mulher, cria dois órfãos cuja mãe faleceu com doença e cujo pai foi para Luanda com outra, tem lavra;

Margarida Naombo, 60 anos, o marido é cego, cria três órfãos cuja mãe faleceu num ataque e cujo pai tem outra, vive da lenha;

Celestina Cuvanja, 69 anos, o marido faleceu com doença, cria três órfãos, a mãe foi com outro e o pai faleceu;

Evalina Dumala, 63 anos, o marido faleceu com doença, cria quatro órfãos cuja mãe faleceu com doença e cujo pai foi para a tropa, vive da lenha...

Em Setembro de 1992, o Centro de Saúde da periferia de Huambo convidou as «mães sozinhas» residentes na área a recensearem-se. Em duas semanas, acorreram 693. O Centro servia uma população de cerca de 70 mil pessoas, o que representaria cerca de 12 mil famílias. Cinco em cada cem, portanto, seriam «mães sozinhas». «Vieram das aldeias para a periferia das cidades, principalmente por razões de insegurança física. Vieram com os maridos ou juntaram-se já na cidade», explicou na sua edição de 11 desse mês o Jango, com a lista de nomes. «Depois os maridos desapareceram: uns morreram de doença, os mais pela guerra; outros emigraram de novo para outras cidades mas sem a família; alguns escolheram outras mulheres - e elas ficaram sozinhas, mais os filhos. Não sabem ler, não têm profissão, conhecem apenas como trabalhar as terras, mas não têm terras. Saíram das aldeias que foram queimadas, destruídas, perderam os laços sociais (familiares e comunitários) que as enquadravam, juntaram-se a outros homens, párias semelhantes. Agora eles foram e elas, só com os filhos, nada mais têm, nem mesmo existência legal.»»

Pedro Rosa Mendes, Baía dos Tigres, 3ª ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, pp. 347-349.