Fonte da Telha

fotografia: filipe sousa | 28 agosto 2021

 






















É um ritual que procuro cumprir com a regularidade possível, após ter trocado o litoral pelo interior, completam-se trinta anos dentro de dias. Ontem, voltei a reviver o passado na Mata dos Medos, sobre a arriba fóssil da Costa da Caparica e, mais abaixo, a imensidão do areal que se estende da Cova do Vapor até perto do Cabo Espichel. Perdi a conta às vezes que atravessei este pinhal a caminho da praia ou percorri o trajecto Fonte da Telha-Lagoa da Albufeira-Fonte da Telha, à beira-mar, na maré-baixa. Desta vez não desci à praia, apesar do ar abafado e do mar flat, convidativo a banhos. Contentei-me com a vista deslumbrante e a companhia de Raul Brandão.

«Uma grande extensão de areal, só areia e mar, barcos como crescentes encalhados e alguns pescadores remendando as redes. Nem um penedo. Areia e céu, mar e céu. Dum lado o formidável paredão vermelho, a pique, desmaiando pouco a pouco, até entrar pelo mar dentro todo roxo, no cabo Espichel. Do outro o mar azul metendo-se, num jorro enorme, pela ampla barra de Lisboa, deslumbrante e majestosa. De onde isto é esplêndido é acolá do alto do convento dos Capuchos. Assombro de luz e cor. Amplidão. As casotas da Caparica aos pés, o mar ilimitado em frente, ao fundo e à direita a linha recortada da serra de Sintra com as casinhas de Cascais e Oeiras no primeiro plano esparsas num verdo-amarelado... E luz? E o prodígio da luz?... A gente está tão afeita à luz que não repara nela e trata como uma coisa conhecida e velha este azul que nos envolve e penetra e que desaba em torrentes sobre as águas verdes desmaiadas e sobre as terra amarelas e vermelhas até ao cabo Espichel... Mas fecho os olhos - abro os olhos... Imensa vida azul - jorros sobre jorros magnéticos. Todo o azul estremece e vem até mim em constante vibração. Quem sai da obscuridade para a luz é que repara e estaca de assombro diante deste ser, tão vivo que estonteia...» 

Raul Brandão, Os Pescadores (1923), Estante Editora, Aveiro, 1989, pp. 164-165.

Moura, Estrada da Barca

fotografia: filipe sousa | 29 julho 2021

 






















O Novo Mundo às portas de Moura.

«Custa a acreditar que a piteira não viva aqui desde sempre, que tenha sido trazida de fora e aclimatada a estas latitudes: veio apenas há cinco séculos do Novo Mundo (...). Tomou raízes num solo magro que a sustém e que também ela retém, obstando ao seu esboroamento (...). Não sabemos o que é que, antes dela, impedia nas escarpas que os torrões de terra e os calhaus viessem por ali abaixo. É preciso ver brotar da piteira, nas hastes às vezes com vários metros de altura, as suas flores de corolas loiras que parecem cibórios, vê-la esgotar-se inteiramente nessa única floração e secar até à raiz, para compreender que é originária de climas mais cruéis que o do Mediterrâneo.»

Predrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico (1987), trad. do francês Pedro Tamen, Quetzal Editores, Lisboa, 2019, pp. 95-96.