Moura, Monte da Esperança

SOBRE O DESEJO

Hei-de levar este esplendor para um poema, dizia eu, sempre que me estendia à sombra branca e miúda de uma oliveira. Mas fosse onde fosse, em terras de Corfu ou de Maiorca, nos campos de Siena ou no chão da minha infância, sempre adormeci sobre o desejo.
Hoje, que a violência do estio me levou a escarvar a própria pedra, queria apenas uma dessas árvores de bruma, por mais exígua, e adormecer à sua sombra.

Eugénio de Andrade, «Memória Doutro Rio» (1976-1977), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed., Limiar, Porto, s.d., pp. 252-253.

fotografia: filipe sousa | 1 agosto 2018


Torino / Turim, Via Emanuele Artom

«Voltei à praia, gotejante, e atirei-me sobre a areia. Tinha os olhos fechados.
Quando os reabri e me sentei, lancei um olhar de desânimo para a costa. Sobre a palidez desesperada das plantas carnosas e das casas mais próximas, cor-de-rosa, continuava a bater aquele sol. O meu fato formava uma mancha escura junto do barco.
-Também está aqui desterrado? - gritou, do outro lado, o rapaz.
-Aqui todos o somos, pouco mais ou menos, - disse eu, em voz alta. - O único recurso é metermo-nos dentro de água.
-E de Inverno, que recurso há?
-De Inverno pensa-se na nossa terra.
-Eu penso mesmo de Verão.
Veio para junto de mim e sentou-se na areia. Tinha tirado o casaco e trazia uma camisa escura, sem mangas.
-Em que terra acha que pensará esta gente daqui? - perguntou.
-Pensam no norte da Itália ainda mais do que nós.
-Sim, mas esta é a terra deles. A eles não lhes falta nada.
Através da via férrea, entre a praia e as primeiras casas, desenconchadas da fracção marinha, passava um grupo de mulheres. Iam para o seu recanto entre os escolhos, pela costa acima, tomar banho. Eram velhas, vestidas de castanho, e baixas, e entre elas ia uma rapariga de branco.
Disse qualquer coisa. - Claro que no Pó se nada melhor. Há menos sol e mais comodidade.
-Onde é que mora, em Turim?
Disse-lho.
-Mas que faz aqui nesta terra?
-Estou a trabalhar na estrada provincial. Sou o engenheiro.
O desterrado esfregou o nariz com o dorso da mão. - Eu era mecânico, - disse, fitando-me. - Recebe correspondência de Turim?
-De vez em quando?
-Eu também recebi outro dia, - e tirou da algibeira um  postal ilustrado com a vista da estação. - Conhece este sítio?
Olhei, com um sorriso, para a ilustração e restituí-lha, embaraçado.
-Traz saudades de uma rapariga. Se me manda saudades quer dizer que me prega os cornos. Eu conheço-as.
A presunção desagradou-me. Acendi um cigarro sem responder: aguardava o resto. Mas ele calou-se. Daí a bocado restitui-me o jornal, com um agradecimento brusco, e foi-se embora, tropeçando na areia.»

Cesare Pavese, «Terra de Exílio» (1936), in Noites de Festa (Notte di Festa, 1956), trad. Rosália Braancamp, Editorial Minerva, Lisboa, 1964, pp. 13-15.


fotografia: filipe sousa | 12 abril 2018