Mare Tranquillitatis

Desde 1969 que olho a lua através deste mapa, várias vezes por dia, numa das mais requisitadas divisões de minha casa. Publicado pela National Geographic, da autoria do artista cartográfico Tibor Tóth, é o primeiro mapa a apresentar as duas fases da superfície lunar numa só folha, a face que vemos à noite mas também a face oculta. A publicação do mapa é anterior a 20 de Julho: identifica os locais de alunagem das vinte e três sondas espaciais não tripuladas que pousaram na superfície lunar, mais o local previsível de alunagem da Apollo 11, no Mare Tranquillitatis. 
Tinha cinco anos, mas recordo, como se fosse hoje, a emissão da RTP dedicada à chegada do homem à lua, conduzida pelo jornalista José Mensurado, e também uma vizinha de Benfica sair-se, no dia seguinte, com a certeza de que era tudo mentira, e que os astronautas, em vez da lua, tinham pisado o Algarve.

 fotografia: filipe sousa | 20 julho 2019

Monsaraz

«Em torno das aldeias e da vila, numa zona compreendida entre estas e as grandes herdades, existem courelas, cujos proprietários trabalham na sua maioria nas grandes herdades como assalariados ou seareiros. (...)
A maior parte da população masculina activa ocupa-se na agricultura como trabalhadores ou seareiros. A maior parte deles não possui terras, mas cerca de duas dúzias são suficientemente abastados para que não tenham de trabalhar nas terras de outrem e possam dar trabalho a outros homens nas suas propriedades. Denominam-se proprietários os homens pertencentes a este grupo. As herdades são quase todas de pessoas residentes em Vila Nova. Estes abastados proprietários de herdades recebem o nome de lavradores ou latifundiários e, conquanto não vivam na freguesia, não são impessoais e absentistas recebedores de rendas. A distância que os separa da maior parte dos habitantes da freguesia é, no entanto, tão considerável como a diferença entre as dimensões das suas terras.»

João Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo (Uma Sociedade Rural Portuguesa), (A Portuguese Rural Society, 1971), trad. J.L.Duarte Peixoto, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1977, pp. 6, 8-9.

fotografia: filipe sousa | 12 julho 2019

Venezia / Veneza, Gran Canale

«(...) Numa estação de barcos, esperámos um barco vazio que finalmente apareceu. Era ao fim da tarde, quase já ao lusco-fusco. Subimos devagar o Gran Canale, rente ao tremular dos reflexos dos palácios na laguna. Depois metemos pelo labirinto verde-escuro, silencioso e um pouco assustador dos pequenos canais, até que, por trás de uma esquina à nossa frente, se ergueu o brado do gondoleiro, ressoando contra as paredes de pedra. E de súbito, lentamente, deslizou ao nosso encontro o Oriente misterioso e inefável. Era um casal, um homem e uma mulher. Os seus traços mostravam que vinham dos confins da Ásia, eram belos, grandes, hieráticos, sentados na gôndola como se estivessem no frontão de um templo. Imóveis, impassíveis, mesmo quando quase nos roçaram passando ao nosso lado, nem o menor pestanejar nem o menor gesto dizia que nos vissem. Mas a intensidade da sua presença tornava o tempo mais lento e os silêncio absoluto. E desapareceram devagar como se nunca tivessem aparecido.
No Café Florian, perguntando a mim própria se seria possível escrever sobre Veneza, lembrei-me de duas linhas do poeta Heleno Oliveira: "Dizer-te é dizer o já dito... Ópera vermelha, escura elegia?"
Mas mesmo antes de aqui ter chegado um dia, já muita vez tinha escrito sobre Veneza: 
            Há cidades acesas na distância
            magnéticas e fundas como luas.»

Sophia de Mello Breyner Andresen, «Voltar a Veneza», Grande Reportagem, nº 79, Lisboa, Outubro 1997. 

aguarela: filipe sousa | julho 2003