Torino / Turim, Mirafiori Sud

«29 de Dezembro (de 1949)
Passeata a Milão, volta por Roma. Será o prazer de mudar de sítio, de viajar, que regressa? Ao voltar de Milão após 24 horas de ausência, redescobri Turim. Será isto sempre o que há de belo no facto de viajar: redescobrir o lugar em que se vive.»

Cesare Pavese, O Ofício de Viver - Diário (1935-1950), Il mestiere di vivere (1952), trad. Alfredo Amorim e Margarida Periquito, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2004, p. 366.


fotografia: filipe sousa | 12 abril 2018

Venezia / Veneza, Gran Canale

fotografia: filipe sousa | julho 2003


























«Em Veneza, a água começa logo que se se deixa o trem. O gondoleiro solícito equilibra montes de malas na sua gôndola, com assombrosa segurança. As gôndolas parecem cisnes pretos. Parecem instrumentos de música, com aquele ferragem que têm, na ponta, como cravelha. O gondoleiro com o seu remo para cá e para lá é como um rabequista com seu arco. Vamos assim musicalmente pelo Grande Canal, e antes de chegar a cada esquina d'água o gondoleiro clama: "Ou! Ou!"...- o que é incomparavelmente mais belo que a buzina de um automóvel.
Do outro lado não respondem? Podemos seguir.»

Cecília Meireles, «Cidade líquida» in Crônicas de viagem 2 (1953), reimpr. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, pp. 79-80.  

Marseille / Marselha, La Canebière 19

fotografia: filipe sousa | 18 outubro 2019

As madalenas estão de volta. Em busca do tempo das madalenas ou a memória involuntária em Proust.

«Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos estão cativas em algum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada, efectivamente perdidas para nós até ao dia, que para muitos não chega nunca, em que acontece passarmos junto da árvore, ou entrar na posse do objecto que é a sua prisão. Então elas estremecem, chamam por nós e, mal as reconhecemos, quebra-se o encanto. Libertadas para nós, venceram a morte e tornam a viver connosco.
O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objecto material (na sensação que esse objecto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não o encontrarmos.
Havia já muitos anos que, de Combray, não existia para mim tudo o que não fosse o teatro e o drama do meu deitar, quando, num dia de Inverno, ao regressar a casa, a minha mãe, vendo-me com frio, me propôs que, contra meu hábito, tomasse um chá. Comecei por recusar e, não sei porquê, mudei de opinião. Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. (...) Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela despertou-a, mas não a conhece, e não pode mais que repetir indefinidamente, cada vez com menos força, aquele mesmo testemunho que não sei interpretar e que, pelo menos, quero poder tornar a pedir-lhe e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um decisivo esclarecimento. Poiso a xícara e volto-me para o meu espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo ele o país escuro que tem a explorar e onde não lhe servirá de nada toda a sua bagagem. Explorar? Não só: criar. Está diante de algo que não é ainda e que só ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz. (...)
Não há dúvidas de que o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual, que, ligada a este sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito confusamente; mal posso discernir o reflexo neutro onde se confunde o inapreensível turbilhão de cores agitadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como único intérprete possível, que me traduza o testemunho do seu contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me diga de que especial circunstância, de que época do passado se trata. (...)
E de repente a recordação surgiu-me. Aquele gosto era o do pedacinho de madalena que em Combray, ao domingo de manhã (porque nesse dia não saía antes da hora da missa), a minha tia Léonie, quando lhe ia dar os bons-dias ao quarto, me oferecia, depois de o ter ensopado na sua infusão de chá ou de tília. A visão da minúscula madalena nada me fizera lembrar até a ter provado; (...) Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembrados, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações sobre a sua gotinha quase impalpável o edifício imenso da memória.
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena ensopado na tília que a minha tia me dava (se bem que então ainda não soubesse e tivesse que deixar para muito mais tarde a descoberta de porque é que aquela recordação me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta sobre a rua , onde ficava o seu quarto, veio, como um cenário de teatro, juntar-se ao pequeno pavilhão que dava para o jardim, que havia sido construído para os meus pais nas traseiras (aquela superfície truncada, a única que até então tinha tornado a ver); e com a casa, a cidade, desde manhã até à noite e com toda a espécie de tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas onde ia fazer compras, os caminhos que se tomavam quando estava bom tempo.» 

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - Do lado de Swann, (À la Recherche du Temps Perdu - Du côté de chez Swann, 1913), trad. Pedro Tamen, Relógio d'Água, Lisboa, 2003, vol. I, pp. 51,52, 54.

EN 255-1

«Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade. 
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida.»

Sophia de Mello Breyner Andersen, inédito, sem data.

fotografia: filipe sousa | março 2016

Guarda

«As estações de serviço merecem ponderada especulação, têm muito que se lhe diga. Estão para os tempos de agora como as malas-postas para os remotos viajantes do princípio do século dezanove e, bem assim, as postas de muda dos períodos e lugares em que existiram, como no Império Romano e na mais antiga Pérsia. (...)
São tão populares e bem-amadas as estações de serviço que aos fins-de-semana esvaziam as aldeias, vilas e povoados em redor e toda a gente acorre em excursão a perambular no vistoso palácio da estrada, entre as casa de banho, o self-service, a tabacaria, o balcão dos cafés e das cervejas, tudo do mais fino disaine, muito parecido com outro que há em Insbruck, outro na Lovaina, outro em Salonica. Uma das vantagens destes edifícios, mai-lo seu recheio, é precisamente essa. Deixamos de saber em que terra estamos, viajamos para Singapura, ou para Helsínquia, sem tirar os pés da sacra Pátria lusitana: Mas é preciso conceder, faça-se justiça e pereça o mundo, que as sandes de fiambre aguado com alface requeimada sempre serão mais tragáveis que o bodum do carneiro de outrora, e que as rodelas de chouriço não têm comparação com  a iguaria equivalente da Dinamarca.»

Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina, 3ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 103-104.


fotografia: filipe sousa | 31 outubro 2019