Lyon / Lião, Pont de la Feuillée

fotografia: filipe sousa | 17 setembro 2019










O Saône uns metros antes de se juntar ao Rhône (Ródano), em Lyon. Pretexto para evocar as deambulações de Tristram Shandy pela cidade, na época a mais opulenta e próspera de França.

«Para todos quantos chamam às contrariedades, CONTRARIEDADES, sabendo o que são, não poderia existir uma maior do que passar uma grande parte do dia em Lião, a mais opulenta e próspera cidade de França, rica também em amostras de antiguidade - e não poder visitá-la. Ser impedido seja lá pelo que for, já é de si um contrariedade; mas ser impedido por uma contrariedade - será seguramente o que a filosofia muito justamente designa como

CONTRARIEDADE
      em cima de
CONTRARIEDADE.

Tinha eu acabado de tomar as minhas duas chávenas de café com leite (o que, a propósito, faz muito bem à consumpção, mas para isso é necessário que o café e o leite sejam fervidos já misturados - de outra forma será apenas café e leite) - e como só eram ainda oito da manhã, e o barco não partia antes do meio-dia, tinha tempo de sobra para ver de Lião o bastante para esgotar a paciência de todos os amigos que eu tinha no mundo.»   


Laurence Sterne, A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, 1759 - 1767), trad. e not. Manuel Portela, Edições Antígona, Lisboa,1998, parte segunda, vol. VII, cap. XXX, pp. 227-228.

Setúbal, Rua Vasco da Gama

fotografia: filipe sousa | 24 junho 2020


























«Para o viajante, Setúbal é uma babilónia, provavelmente a maior cidade do mundo.»

José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, Lisboa, 1990, p. 202.

Venezia / Veneza

fotografia: filipe sousa | julho 2003


«Durante a projecção da «Morte em Veneza», dei por mim a perguntar mentalmente ao realizador quando se disporia ele a mostrar, mesmo de arrepio, ao menos um dos «lugares notórios» da cidade: a Piazza San Marco, os Mori da Torre do Relógio, o Campanile, a Loggetta de Sansovino, o Palácio dos Doges, a fachada ou as cúpulas da basílica. Mas o filme foi correndo, veio a última bobina, e nem uma só concessão às tentações do pitoresco fácil. Porquê? Deixei a interrogação no ar à espera de que o acaso me desse a resposta um dia. Mas não a esperava tão cedo.
A primeira vez que estive em Veneza, usei o meu tempo na descoberta pessoal da epiderme da cidade, pondo escrupulosamente os pés e os olhos onde milhões de outras pessoas haviam posto já os seus. Por esta inocente falta de originalidade me atire a primeira pedra quem nunca cometeu outras maiores. Desta vez, porém, revisitados todos os lugares conhecidos e novamente certificado das excelentes razões turísticas de Veneza, decidi-me a virar as costas às magnificências ribeirinhas do canal Grande e penetrei no interior da cidade. Fugi deliberadamente aos espaços abertos e deixei-me perder, sem mapa nem roteiro, pelas ruas mais tortuosas e abandonadas (as «calli»), até dar por mim no coração obscuro de uma cidade que enfim se revelava. E foi então que supus (e suponho agora) ter compreendido a atitude de Visconti: se um passe de mágica tirasse a Veneza tudo quanto de óbvio a ilustra aos olhos do mundo, a sua fascinação particular permaneceria intacta. O filme «Morte em Veneza» decorre na única Veneza real: a do silêncio e da sombra, da negra franja que a água dos canais desenha no rente das fachadas, do cheiro insidiosamente pútrido de uma humidade que nenhum sol levanta. De quantas cidades conheço, Veneza é a única que manifestamente morre, que o sabe, e, fatalista, não se importa muito.»

José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia - Ensaio de romance, 1ª edição, Moraes Editores, Lisboa, 1976, pp. 153-154.