fotografia: filipe sousa | 26 junho 2017 |
Observar as regras do jogo, esse pequeníssimo detalhe.
«-Pretas ou brancas?
Para Emanuel era evidente que tinha a haver-se com um pexote. Juvenilmente propôs-se jogar de olhos vendados. Como assim? O outro estava desconfiado e a voz já se lhe entaramelava. Minutos antes tinha garantido que, desde que comesse alguma coisa, podia beber pela noite fora que não lhe fazia mal nenhum. Aliás, era de dormir pouco.
-De olhos fechados?
Emanuel foi dispondo as pedras e, pacientemente, contou. Com muito treino pode jogar-se xadrez sem tabuleiro. Os viajantes portugueses do tempo das descobertas contavam que os árabes, para entreterem o tempo nas longas caravanas, jogavam xadrez de memória, de camelo para camelo. E falou em André Philidor, em Capablanca, em Alekhine...
-Lérias- rosnou o homem, muito seguro de si. - Tapa-me esses olhos que eu fodo-o logo!
-E4 - anunciava Emanuel mais tarde, com os olhos vendados por um lenço preto, e ainda por cima voltado de costas para o tabuleiro.
-Quê?
-E2-e4 - explicitou Emanuel.
-Mas que merda é esta? Falamos chinês, ou o caraças?
-Mas como, prefere a notação geométrica?
-Geométrica o tanas, eu quero é que você me diga as suas jogadas ou o caraças.
Aquela voz, à medida que enferrujava, tornava-se cada vez mais autoritária.
-Faça avançar duas casas o peão que está em frente do rei branco.
-OK, agora sou eu - as peças estalaram com força no tabuleiro como as do dominó jogadas por peritos de taberna, na fórmica das mesas. - Afinfo-lhe com os dois cavalos!
-Perdão?
-Os dois cavalos, caraças!
Som de líquido a gotejar de fiada. Mais uma rodada, pensou Emanuel.
-Mas desculpe lá, não pode sair com os dois cavalos ao mesmo tempo...é contra as regras...
-Ai que este está a querer fornicar-me! Pensas que eu comecei a jogar esta merda ontem?
-Desculpe. Assim não continuo.
Desamparado ruído de uma cadeira que tombava. Emanuel, numa pressa, desvendou-se. Januário espalhou as peças no tabuleiro e olhou para ele com um ar torvo.
-Cabrão do puto. Queria-me ensinar a jogar xadrez, o sacana! Ainda os teus pais não eram nascidos já eu jogava xadrez em tudo o que era caserna e em tudo o que era messe lá na tropa, ou o caraças, pá.
A Emanuel faltavam as palavras. estava mais preocupado em descobrir as saídas.
-O batoteiro, o intrujão da penica, a querer convencer-me que os cavalos não saem ao mesmo tempo. Com quem é que aprendeste a jogar, ó desgraçado? Foi com a tua avó torta?
E que voz, roufenha, hesitante, formada debaixo da língua! Emanuel recuou.
Januário varreu a mesa com mão em cutelo e foi o belo xadrez parar ao chão onde se estilhaçou, em companhia da garrafa de uísque e do copo. Emanuel relanceou em volta. Natacha espreitava entre portas. O homem avançava para ele:
-Anda cá, meu cabrão, que eu vou-te mostrar o que faço aos batoteiros - passou pela mesa grande e agarrou num candelabro.
Emanuel não correu, voou. Ouviu vagamente uma voz feminina, umas palavras assustadas numa língua estrangeira e o vozeirão do Januário:
-Volta para trás, malandro! Sê homem, sê homem.
Sem saber como, por escadas e portas desconhecidas, acabou por se encontrar em frente do portão.
-Meu Deus, os cães!»
Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina, 3ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 58-60.