fotografia: filipe sousa | 23 junho 2004 |
São Pedro de Merelim
fotografia: filipe sousa | 6 fevereiro 2010 |
«Deus escreve direito
Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti e por entre
Espelhos deformantes e desastres e desvios
Nem em um momento podes perder
A linha musical do encantamento
Que é teu sol tua luz teu alimento »
Sophia de Mello Breyner Andresen, «Deus escreve direito», O Búzio de Cós, Assírio & Alvim, Lisboa, 2016, p. 96.
Berlin / Berlim, Genthiner Strasse 38
fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2020 |
«-Foi o senhor que perdeu o nariz?
- Exactamente.
- Encontrámo-lo.
- Não me diga! - gritou o major Kovaliov. A alegria fê-lo perder a fala. Devorava com os olhos o chefe de esquadra, em cujos lábios e bochechas rechonchudas dançava a luz clara e trémula da vela.
- Como conseguiram?
- Numa circunstância estranha: foi apanhado quase em fuga. Já estava sentado na diligência que ia para Riga. Era portador de um passaporte em nome de um funcionário. É curioso que, a princípio, eu próprio o tomei por um cavalheiro. Felizmente, levava os óculos comigo e vi logo que não passava de um nariz. É que sou míope, e, se o senhor se puser à minha frente, a única coisa que vejo é que tem rosto, mas não distingo nariz, nem barba, nada. A minha sogra, ou seja, a mãe da minha mulher, também não vê nada.
Kovaliov estava excitadíssimo.
- E onde está, onde está? Vou já buscá-lo.
- Não se preocupe. Como sabia que precisava dele, trouxe-lho. (...)
O nariz do senhor encontrava-se no mesmo estado em que estava dantes.
Com estas palavras, meteu a mão ao bolso e tirou o nariz embrulhado num papel.
-É ele! - gritou Kovaliov - É mesmo ele!»
Nikolai Gógol, O Nariz, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000, pp. 58-59.
Lisboa, Alameda das Comunidades Portuguesas
fotografia: filipe sousa | 20 janeiro 2020 |
«Na sua frente estava uma ave gigantesca, de asas abertas, cauda em leque, pescoço comprido, a cabeça ainda em tosco, por isso não se sabia se viria a ser falcão ou gaivota, É este o segredo, perguntou, Este é, até hoje de três pessoas, agora de quatro, aqui está Baltasar Sete Sóis, e Blimunda não se demora, anda na horta. (...) Domenico Scarlatti aproximou-se da máquina, que se equilibrava sobre uns espeques laterais, pousou a mão numa das asas como se ela fosse um teclado, e, singularmente, toda a ave vibrou apesar do seu grande peso, cavername de madeira, lamelas de ferro, vime entrançado, se houver forças que façam levantar isto, então ao homem nada é impossível, Estas asas são fixas, assim é, Nenhuma ave pode voar sem bater as asas, A isso Baltasar responderia que basta ter forma de ave para voar, mas eu respondo que o segredo do voo não é nas asas que está, e esse segredo não o posso saber eu, Não posso dar mais que mostrar o que aqui se vê, Já isso basta para que eu agradeça, mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta. (...)
O padre Bartolomeu Lourenço foi encostar uma escada à passarola, Senhor Scarlatti, se quiser ver por dentro a minha máquina de voar. Subiram ambos, o padre levava o desenho, e lá dentro, andando sobre o que parecia um convés de barco, explicou as posições e funções das diversas partes, os arames com o âmbar, as esferas, as lamelas de ferro, repetindo que tudo operaria por atracção mútua, mas não falou do sol nem do que haveriam de conter as esferas, porém o músico perguntou, Que coisa atrairá o âmbar, Talvez Deus, em quem toda a força mora, respondeu o padre, O âmbar atrairá que coisa, O que estiver dentro das esferas, esse é o segredo, Sim, esse é o segredo, É mineral, vegetal ou animal, Não é mineral, nem vegetal, nem animal, Tudo é mineral, ou vegetal, ou animal, Nem tudo, há coisas que o não são, a música, por exemplo, Padre Bartolomeu de Gusmão, decerto que não quer dizer-me que estas esferas vão conter música, Não, mas quem sabe se com ela não subiria também a máquina, tenho de pensar nisso, afinal pouco falta para que me erga eu ao ar quando o ouço tocar no cravo, É um gracejo, Menos do que parece, senhor Scarlatti.»
José Saramago, Memorial do Convento, 8ª edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1982, pp. 168, 170.
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