fotografia: filipe sousa | 20 janeiro 2020 |
«Na sua frente estava uma ave gigantesca, de asas abertas, cauda em leque, pescoço comprido, a cabeça ainda em tosco, por isso não se sabia se viria a ser falcão ou gaivota, É este o segredo, perguntou, Este é, até hoje de três pessoas, agora de quatro, aqui está Baltasar Sete Sóis, e Blimunda não se demora, anda na horta. (...) Domenico Scarlatti aproximou-se da máquina, que se equilibrava sobre uns espeques laterais, pousou a mão numa das asas como se ela fosse um teclado, e, singularmente, toda a ave vibrou apesar do seu grande peso, cavername de madeira, lamelas de ferro, vime entrançado, se houver forças que façam levantar isto, então ao homem nada é impossível, Estas asas são fixas, assim é, Nenhuma ave pode voar sem bater as asas, A isso Baltasar responderia que basta ter forma de ave para voar, mas eu respondo que o segredo do voo não é nas asas que está, e esse segredo não o posso saber eu, Não posso dar mais que mostrar o que aqui se vê, Já isso basta para que eu agradeça, mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta. (...)
O padre Bartolomeu Lourenço foi encostar uma escada à passarola, Senhor Scarlatti, se quiser ver por dentro a minha máquina de voar. Subiram ambos, o padre levava o desenho, e lá dentro, andando sobre o que parecia um convés de barco, explicou as posições e funções das diversas partes, os arames com o âmbar, as esferas, as lamelas de ferro, repetindo que tudo operaria por atracção mútua, mas não falou do sol nem do que haveriam de conter as esferas, porém o músico perguntou, Que coisa atrairá o âmbar, Talvez Deus, em quem toda a força mora, respondeu o padre, O âmbar atrairá que coisa, O que estiver dentro das esferas, esse é o segredo, Sim, esse é o segredo, É mineral, vegetal ou animal, Não é mineral, nem vegetal, nem animal, Tudo é mineral, ou vegetal, ou animal, Nem tudo, há coisas que o não são, a música, por exemplo, Padre Bartolomeu de Gusmão, decerto que não quer dizer-me que estas esferas vão conter música, Não, mas quem sabe se com ela não subiria também a máquina, tenho de pensar nisso, afinal pouco falta para que me erga eu ao ar quando o ouço tocar no cravo, É um gracejo, Menos do que parece, senhor Scarlatti.»
José Saramago, Memorial do Convento, 8ª edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1982, pp. 168, 170.
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