Puerto Roque

fotografia: filipe sousa | 24 agosto 2020







































O PASSEIO PELAS MONTANHAS

«Não sei», gritei sem som, «não sei mesmo. Se ninguém vier, então, olha, não vem ninguém. Não fiz mal a ninguém, ninguém me fez mal, mas ninguém me quer ajudar. É só ninguéns, um chorrilho de ninguéns. Mas também não é bem assim. O que acontece é que ninguém me ajuda - tirando isso, um chorrilho de ninguéns até seria engraçado. Gostava muito - porque não - de fazer um passeio acompanhado por um chorrilho de ninguéns. Claro que pelas montanhas, que outra hipótese haveria? Como estes ninguéns se iriam empurrar uns aos outros, todos aqueles braços esticados a cruzarem-se uns com os outros, todos aqueles pés separados por minúsculos passos! Claro que todos vestidos de fraque. E não vamos nada mal, o vento passa por entre os espaços que nós e a massa dos nossos membros deixamos livres. As gargantas libertam-se nas montanhas! É de admirar que não cantemos.»

Franz Kafka, «Observação» (Betrachtung, 1913) in Os Contos - textos publicados em vida do autor (trad. do alemão: Álvaro Gonçalves, José Maria Vieira Mendes, Manuel Resende), Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 32.

Galegos

fotografia: filipe sousa | 24 agosto 2020



























Mal seria passar em Galegos e não trazer uma garrafa de azeite virgem extra monovarietal de azeitona...galega! DOP, produzido desde 1953 no lagar de herdeiros António Picado Nunes (do Canto), situado à entrada da aldeia, em pleno Parque Natural da Serra de São Mamede e a dois passos da fronteira. Trata-se de um azeite de olival tradicional, cultivado em modo biológico, seguindo os princípios da agricultura biodinâmica, o que significa sem utilização de agroquímicos, em total respeito pelos ecossistemas e ciclos da natureza do Parque. De entre os métodos amigos do ambiente e do consumidor, contam-se o pastoreio com rebanhos de ovelhas, as armadilhas de insectos, planos de podas, colheita manual (a tradição manda pentear as ramas com mãos calejadas!) e moenda biológica. 

Marseille / Marselha, Rue Ste. Françoise / Rue des Repenties

fotografia: filipe sousa: 18 outubro 2019



























HAITI

Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos 
Só para mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco 
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos quase todos pretos 
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio de Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui 

Caetano Veloso (letra), Caetano Veloso e Gilberto Gil (música), Tropicália 2, 1993.

Berlin / Berlim, Mühlenstrasse (East Side Gallery)

fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2020

«NOTA

Sucede que tenho precisamente aquelas qualidades que são negativas para fins de influir, de qualquer modo que seja, na generalidade de um ambiente social.
Sou, em primeiro lugar, um raciocinador, e, o que é pior, um raciocinador minucioso e analítico. Ora o público não é capaz de seguir um raciocínio, e o público não é capaz de prestar atenção a uma análise.
Sou, em segundo lugar, um analisador que busca, quanto em si cabe, descobrir a verdade. Ora o público não quer a verdade, mas a mentira que mais lhe agrade. Acresce que a verdade - em tudo, e mormente em coisas sociais - é sempre complexa. Ora o público não compreende ideias complexas. É preciso dar-lhe só ideias simples, generalidades vagas, isto é, mentiras, ainda que partindo de verdades; pois dar-lhe como simples o que é complexo, dar sem distinção o que cumpre distinguir, ser geral onde importa particularizar, para definir, e ser vago em matéria onde o que vale é a precisão - tudo isto importa em mentir.
Sou, em terceiro lugar, e por isso mesmo que busco a verdade, tão imparcial quanto em mim cabe ser. Ora o público, movido intimamente por sentimentos e não por ideias, é organicamente parcial. Não só portanto lhe desagrada ou não interessa, por estranho à sua índole, o mesmo tom da imparcialidade, mas ainda mais o agrava o que de concessões, de restrições, de distinções, é preciso usar para ser imparcial. Entre nós, por exemplo, e em a maioria dos povos do sul da Europa, ou se é católico, ou se é anticatólico, ou se é indiferente ao catolicismo, porque a tudo. Se eu, portanto, fizesse um estudo sobre o catolicismo, onde forçosamente teria que dizer mal e bem, que apontar vantagens misturadas com desvantagens, que indicar defeitos aliviados por virtudes, que me sucederia? Não me escutariam os católicos, que não aceitariam o que eu dissesse de mal do catolicismo. Não me escutariam os anticatólicos, que não aceitariam o que eu dissesse de bem. Não me escutariam os indiferentes, para quem todo o assunto não passaria de uma maçadoria ilegível. Assim resultaria absolutamente inútil esse meu estudo, por cuidado e escrupuloso que fosse - direi, até, tanto mais inútil, porque tanto menos aceitável ao público, quanto mais fosse cuidado e escrupuloso. Seria, quando muito, apreciado por um ou outro indivíduo de índole semelhante à minha, raciocinador sem tradições nem ideais, analisador sem preconceitos, liberal porque liberto e não porque servo da ideia inaplicada de liberdade. A esse, porém, que teria eu de ensinar? Quando muito, certas coisas particulares sobre o catolicismo, na hipótese que me serviu de exemplo, e no caso de lhe ser a ele estranho o assunto. E se a ele, perscrutador cultural como eu, o assunto é estranho, é que nunca o interessou; se nunca o interessou, para que vai ler o que escrevi sobre ele?
De aqui parece dever concluir-se que um estudo raciocinado, imparcial, cientificamente conduzido, de qualquer assunto é um trabalho socialmente inútil. Assim de facto é. É, quando muito, uma obra de arte, e mais nada. Vox et preterea nihil.
As sociedades são conduzidas por agitadores de sentimentos, não por agitadores de ideias. Nenhum filósofo fez caminho senão porque serviu, em todo ou em parte, uma religião, uma política ou outro qualquer modo social do sentimento. (...)»

Fernando Pessoa, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, edição e posfácio de Richard Zenith, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003, pp. 187-188.

Ait Merzoug

fotografia: filipe sousa | janeiro 1994

Com um dia de atraso sobre o inicialmente previsto, alcançámos a aldeia de Ait Merzoug, encravada no sopé da vertente sul do Masker. Precisamente no momento em que o sol, roçando a orla da montanha em frente, dardejava a sua réstia de luz nas paredes ocres das habitações, avivando-lhes o magnetismo. Sem novidade, fomos acolhidos calorosamente em casa do moqqadem. Chamava-se Akbar e, nas horas vagas, carpintejava móveis em cedro, verdadeiras obras-primas de arte, engenho e, sobretudo, muita paciência. Esta ocupação garantia-lhe um complemento importante aos magros réditos retirados da pastorícia. No entanto, felizes dos que, como o irmão, haviam insuflado o peito de ambição e tentado a sua sorte em França. Era dele o retrato na parede, lado a lado com o de Hassan II. O chá protocolar acabou por desviar a conversa para o ensejo de fotografar a sua mulher, que acabava de entrar no aposento com o samovar fumegante. Para nossa satisfação, foi-nos permitido fazê-lo no recolhimento da sala de tecelagem. Um rosto serenamente absorto, ao mesmo tempo tímido e encantador, um tudo-nada desfocado por detrás das linhas verticais do tear, eis o que os nossos olhos retiveram.

Filipe Sousa, Alto Atlas Oriental: no coração de Marrocos (diário de viagem), 1993.