Estrada Nacional 258 | GPS 38.117258; -7.259771

fotografia: filipe sousa | 20 junho 2021
















O VERÃO

Afaga o ardor 
da palha
antes da manhã.

Prepara a semente
do sol.

Respira devagar,
grão a grão,

o azul,

o frio,
implacável,
azul do verão.

Arranca à terra escura
o difícil silêncio
sem lágrimas nem figura:

não tens outra flor,
não tens outro irmão.

Eugénio de Andrade, «Obscuro Domínio» (1970-1971), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed., Limiar, Porto, s.d., p. 185.

Puerto Lápice, Calle El Molino 2

fotografia: filipe sousa | 8 março 2020

 




Luís Miguel Cintra, ontem, no Público, a propósito da sua mais recente criação como encenador, Pequeno Teatro — Ad Usum Delphini Vanitas, construído a partir de diálogos retirados de D. Quixote de La Mancha: «Aquela figura (D. Quixote) sonha com ideais de beleza, de lealdade, de amizade — tem uma utopia de vida. O que é engraçado é que acredita que será possível realizar essa utopia. Não a vive como utopia. Isso é importante porque, mais modernamente, quando se fala de utopia está a dizer-se que são ideais falhados. Mas não são falhados, são desejados, e mesmo que se considere que é difícil serem alcançados, deixa de ser desejo se não se acreditar que pode realizar-se. Quem mudará o mundo são os que acreditam na utopia e a gente vive numa época de um pragmatismo horrível. Um mundo em que já não existe a crença numa mudança, há antes um cinismo permanente que me horroriza.»
Um espectáculo pela utopia e pelos ideais, contra o cinismo e o calculismo vigentes, no Museu das Marionetas, Lisboa, de 17 de Junho a 8 de Julho.

«-Quisera eu, senhor duque - respondeu D.Quixote -, que estivesse aqui presente aquele bendito religioso que à mesa, no outro dia, mostrou ter tão más maneiras e má vontade contra os cavaleiros andantes, para que visse com os próprios olhos se os tais cavaleiros são necessários no mundo: veria com os seus olhos que os extraordinariamente aflitos e desprezados, em casos importantes e em desditas enormes não vão buscar o seu remédio às casas dos letrados, nem às dos sacristães das aldeias, nem ao cavaleiro a quem nunca sucedeu sair dos confins da sua aldeia, nem ao indolente cortesão que mais procura novas para dizê-las e contá-las que fazer obras e façanhas para que outros as contem e as escrevam; o remédio das aflições, o socorro das necessidades, o amparo das donzelas, o consolo das viúvas, em nenhuma espécie de pessoas se acha melhor que nos cavaleiros andantes, e por eu o ser dou infinitas graças ao céu, e dou por muito bem empregado qualquer acontecimento infeliz e trabalho que neste honroso exercício possa suceder-me.»
(...)
-Sem dúvida este teu amo, Sancho amigo, deve ser um louco.
-Como deve? - respondeu Sancho. - Não deve nada a ninguém: pois paga tudo, e mais quando a moeda é loucura. Bem o vejo eu e bem lho digo a ele. Mas - que adianta?»

Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, parte II, caps. XXXVI, LXVI, pp. 716,898,899.

Moura, Estrada da Barca

fotografia: filipe sousa | 12 junho 2021

 















«Abro um parêntese para frisar que as pétalas secas do cardo leiteiro, ou cardo do coalho, constituem o único coagulante oficialmente autorizado no fabrico do Queijo de Serpa. A tradição assim o impôs uma vez que as terras de barro da região são pródigas na produção espontânea de tão bela e utilitária planta.
(...)
Após a filtragem e a salga, procede-se às tarefas de coagulação. A sua «velocidade» tem a ver com a consistência da massa. Não se pergunte ao artesão queijeiro o porquê desta relação. Ele só sabe que a massa fica tanto mais rija quanto mais rápida for a formação da coalhada. Por isso ao adicionar-se ao leite a infusão de cardo levemente aquecida, esta não pode provocar a a aceleração exagerada do coalho nem, pelo contrário, demorá-lo excessivamente.
A coagulação rápida gera queijos ásperos, com sabor acentuado a cardo. A sua demora dá origem a queijos de paladar indefinido e de maturação complicada.
A infusão que se adiciona ao leite é feita com antecipação de um dia. O roupeiro pisa o cardo no almofariz com um pouco de sal. Mete depois a mistura num recipiente de louça, adicionando-lhe água quanto baste, deixando-a ficar até ao dia seguinte.
Antes da sua incorporação côa-se a mistura através de um pano para evitar a passagem das partículas do cardo. Depois inicia-se a operação. Com a lentidão de um ritual, o roupeiro vai deitando o fermento no assado, vasilha de barro com duas asas onde o leite permanece coado e previamente salgado. Pausadamente a mistura vai sendo homogeneizada com o palheto, espécie de grande espátula de pau. Está-se no domínio da alquimia. A quantidade administrada é ditada pela sensibilidade prática do mestre. Está escrito na sua cartilha que a duração óptima da coalhada deve rondar os noventa minutos. Assim mesmo, sem tirar nem pôr. Mas o roupeiro ainda há de referir que tudo isso varia com a «força» do cardo, a qualidade do leite, a quantidade de sal utilizado...Não vale a pena pedir explicações particularizadas, porque o roupeiro remeterá para os domínios da sua sensibilidade - e aí não há nada a fazer.»

João Mário Caldeira, Margem Esquerda do Guadiana - as gentes, a terra, os bichos, Contexto Editora, Lisboa, 2000, pp. 68-70.

Bordeaux / Bordéus, Pont de Pierre

fotografia: filipe sousa | 7 janeiro 2020



ELOGIO BARROCO DA BICICLETA

Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho, que  seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.

Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me estangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corridas, mas de almas paradas.

Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,

dá-me as asas - trrrim! trrrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (A Saca de Orelhas, 1979), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 348.