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fotografia: filipe sousa | 8 março 2020 |
Luís Miguel Cintra, ontem, no Público, a propósito da sua mais recente criação como encenador, Pequeno Teatro — Ad Usum Delphini Vanitas, construído a partir de diálogos retirados de D. Quixote de La Mancha: «Aquela figura (D. Quixote) sonha com ideais de beleza, de lealdade, de amizade — tem uma utopia de vida. O que é engraçado é que acredita que será possível realizar essa utopia. Não a vive como utopia. Isso é importante porque, mais modernamente, quando se fala de utopia está a dizer-se que são ideais falhados. Mas não são falhados, são desejados, e mesmo que se considere que é difícil serem alcançados, deixa de ser desejo se não se acreditar que pode realizar-se. Quem mudará o mundo são os que acreditam na utopia e a gente vive numa época de um pragmatismo horrível. Um mundo em que já não existe a crença numa mudança, há antes um cinismo permanente que me horroriza.»
Um espectáculo pela utopia e pelos ideais, contra o cinismo e o calculismo vigentes, no Museu das Marionetas, Lisboa, de 17 de Junho a 8 de Julho.
«-Quisera eu, senhor duque - respondeu D.Quixote -, que estivesse aqui presente aquele bendito religioso que à mesa, no outro dia, mostrou ter tão más maneiras e má vontade contra os cavaleiros andantes, para que visse com os próprios olhos se os tais cavaleiros são necessários no mundo: veria com os seus olhos que os extraordinariamente aflitos e desprezados, em casos importantes e em desditas enormes não vão buscar o seu remédio às casas dos letrados, nem às dos sacristães das aldeias, nem ao cavaleiro a quem nunca sucedeu sair dos confins da sua aldeia, nem ao indolente cortesão que mais procura novas para dizê-las e contá-las que fazer obras e façanhas para que outros as contem e as escrevam; o remédio das aflições, o socorro das necessidades, o amparo das donzelas, o consolo das viúvas, em nenhuma espécie de pessoas se acha melhor que nos cavaleiros andantes, e por eu o ser dou infinitas graças ao céu, e dou por muito bem empregado qualquer acontecimento infeliz e trabalho que neste honroso exercício possa suceder-me.»
(...)
-Sem dúvida este teu amo, Sancho amigo, deve ser um louco.
-Como deve? - respondeu Sancho. - Não deve nada a ninguém: pois paga tudo, e mais quando a moeda é loucura. Bem o vejo eu e bem lho digo a ele. Mas - que adianta?»
Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, parte II, caps. XXXVI, LXVI, pp. 716,898,899.