fotografia: filipe sousa | 12 junho 2021 |
«Abro um parêntese para frisar que as pétalas secas do cardo leiteiro, ou cardo do coalho, constituem o único coagulante oficialmente autorizado no fabrico do Queijo de Serpa. A tradição assim o impôs uma vez que as terras de barro da região são pródigas na produção espontânea de tão bela e utilitária planta.
(...)
Após a filtragem e a salga, procede-se às tarefas de coagulação. A sua «velocidade» tem a ver com a consistência da massa. Não se pergunte ao artesão queijeiro o porquê desta relação. Ele só sabe que a massa fica tanto mais rija quanto mais rápida for a formação da coalhada. Por isso ao adicionar-se ao leite a infusão de cardo levemente aquecida, esta não pode provocar a a aceleração exagerada do coalho nem, pelo contrário, demorá-lo excessivamente.
A coagulação rápida gera queijos ásperos, com sabor acentuado a cardo. A sua demora dá origem a queijos de paladar indefinido e de maturação complicada.
A infusão que se adiciona ao leite é feita com antecipação de um dia. O roupeiro pisa o cardo no almofariz com um pouco de sal. Mete depois a mistura num recipiente de louça, adicionando-lhe água quanto baste, deixando-a ficar até ao dia seguinte.
Antes da sua incorporação côa-se a mistura através de um pano para evitar a passagem das partículas do cardo. Depois inicia-se a operação. Com a lentidão de um ritual, o roupeiro vai deitando o fermento no assado, vasilha de barro com duas asas onde o leite permanece coado e previamente salgado. Pausadamente a mistura vai sendo homogeneizada com o palheto, espécie de grande espátula de pau. Está-se no domínio da alquimia. A quantidade administrada é ditada pela sensibilidade prática do mestre. Está escrito na sua cartilha que a duração óptima da coalhada deve rondar os noventa minutos. Assim mesmo, sem tirar nem pôr. Mas o roupeiro ainda há de referir que tudo isso varia com a «força» do cardo, a qualidade do leite, a quantidade de sal utilizado...Não vale a pena pedir explicações particularizadas, porque o roupeiro remeterá para os domínios da sua sensibilidade - e aí não há nada a fazer.»
João Mário Caldeira, Margem Esquerda do Guadiana - as gentes, a terra, os bichos, Contexto Editora, Lisboa, 2000, pp. 68-70.
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