fotografia: pedro sousa | 18 agosto 2020 |
«Uma vez na minha vida fiz mais: ofereci às constelações o sacrifício de uma noite inteira. Foi depois da minha visita a Osroés, durante a travessia do deserto sírio. Deitado de costas, com os olhos bem abertos, abandonando por algumas horas todos os cuidados humanos, entreguei-me, do anoitecer à madrugada, àquele mundo de chama e de cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. O grande astro da constelação da Lira, estrela polar dos homens que hão-de viver dezenas de milhares de anos depois de nós termos deixado de existir, resplandecia por cima da minha cabeça. Os Gémeos luziam frouxamente nos últimos clarões do poente; a Serpente precedia o Sagitário; a Águia subia para o zénite, as asas abertas, e a seus pés a constelação ainda não designada pelos astrónomos e à qual dei o mais querido dos nomes. A noite, nunca tão completa como julgam os que vivem e dormem em quartos, tornou-se mais escura, depois mais clara. As fogueiras, acesas para espantar os chacais, apagaram-se; aqueles montes de carvões ardentes fizeram-me lembrar o meu avô, de pé na sua vinha, e as suas profecias tornadas presente e pouco depois passado. Tentei unir-me ao divino sob várias formas; conheci mais de um êxtase; há alguns atrozes e outros de uma perturbante doçura. O da noite síria foi estranhamente lúcido. Gravou em mim os movimentos celestes com uma precisão que nenhuma outra observação parcial me teria jamais permitido atingir.»
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (Mémoires d'Hadrien, 1951), trad. Maria Lamas, 3ª ed., Editora Ulisseia, 1984, pp. 127-128.