Fonte Souto de Baixo

fotografia: pedro sousa | 18 agosto 2020

 


«Uma vez na minha vida fiz mais: ofereci às constelações o sacrifício de uma noite inteira. Foi depois da minha visita a Osroés, durante a travessia do deserto sírio. Deitado de costas, com os olhos bem abertos, abandonando por algumas horas todos os cuidados humanos, entreguei-me, do anoitecer à madrugada, àquele mundo de chama e de cristal. Foi a mais bela das minhas viagens. O grande astro da constelação da Lira, estrela polar dos homens que hão-de viver dezenas de milhares de anos depois de nós termos deixado de existir, resplandecia por cima da minha cabeça. Os Gémeos luziam frouxamente nos últimos clarões do poente; a Serpente precedia o Sagitário; a Águia subia para o zénite, as asas abertas, e a seus pés a constelação ainda não designada pelos astrónomos e à qual dei o mais querido dos nomes. A noite, nunca tão completa como julgam os que vivem e dormem em quartos, tornou-se mais escura, depois mais clara. As fogueiras, acesas para espantar os chacais, apagaram-se; aqueles montes de carvões ardentes fizeram-me lembrar o meu avô, de pé na sua vinha, e as suas profecias tornadas presente e pouco depois passado. Tentei unir-me  ao divino sob várias formas; conheci mais de um êxtase; há alguns atrozes e outros de uma perturbante doçura. O da noite síria foi estranhamente lúcido. Gravou em mim os movimentos celestes com uma precisão que nenhuma outra observação parcial me teria jamais permitido atingir.»

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (Mémoires d'Hadrien, 1951), trad. Maria Lamas, 3ª ed., Editora Ulisseia, 1984, pp. 127-128.

Serra de S. Mamede

fotografia: filipe sousa | 15 julho 2021

 

























Com 1025 metros acima do nível do mar, a serra de S. Mamede granjeia os títulos de Everest do Alentejo e tecto do Sul de Portugal. Ontem, foi dia de subir ao cume.

«A Serra de S. Mamede é, ao Sul do Tejo, o relevo mais alto a destacar-se nos vastos peneplanos e planícies do Alentejo. A sua direcção NO.-SE. contrasta  com a do maior número das formações montanhosas que se encontram  na metade setentrional do nosso território. É, no seu conjunto, a continuação das serras espanholas que pertencem ao sistema toledano. Entre a parte O. da massa orográfica espanhola e a de S. Mamede um vale marca uma divisória entre os dois países contíguos, embora a fronteira não siga exactamente essa feição natural.
Distingue-se esta serra pelo seu carácter peneplano, sem arestas agudas de lombada facilmente transitável, revelando uma longa acção demolidora dos agentes externos.
Do seu vértice, a 1025 m., a vista alcança uma enorme superfície, e em dias muito claros o horizonte alarga-se consideravelmente até ao mar, permitindo reconhecer os sucessivos degraus de que se compõe o sul do Tejo.
A paisagem que se observa do alto é diferente conforme nos voltamos a leste, oeste ou norte. Do lado de Espanha mostram-se  pequenos relevos descarnados, simétricos e piramidais, com afloramentos rochosos cuja silhueta se esbate à medida que se afastam da fronteira; a O. desenrola-se a vasta planura alentejana, semeada aqui e além de relevos-testemunhas; e ao N., para lá do Tejo, descortina-se um arco de montanhas em semicírculo, que se desdobra desde a serra da Penha Garcia, pela Gardunha e a Estrela, até à de Muradal-Nisa, que se interrompe bruscamente para reaparecer na serra de Portalegre. Quando a atmosfera está sem bruma, vê-se distintamente uma grande parte do plano inclinado do distrito de Castelo Branco  que vem morrer  ao Tejo fronteiriço, onde se lançam as ribeiras do  Elges, Aravil e Pônsul.»

Silva Teles, "À Serra de S. Mamede" in Guia de Portugal, vol. II - Estremadura, Alentejo, Algarve, 2ª reimpressão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1991, pp. 425-426. 

Odres

fotografia: filipe sousa | 13 julho 2021
















«Também as ordens e as arcadas se juntam num tipo de edifícios que já mencionámos como caracteristicamente romano: as termas. Com um plano simétrico e calor graduado (uma piscina - natatio ou frigidarium, banhos mornos - tepidarium; e quentes - caldarium) local para as pessoas se despirem (apodyterium) e para fazerem exercícios (palaestra), salas de massagens, restaurantes, bibliotecas, salas para leituras públicas, solários, lojas, exterior com parques, estes edifícios monumentais e polivalentes atraíam multidões ruidosas1 e eram objecto de ostentação, logo, de publicidade, dos seus patronos. Assim, não admira que os imperadores se tenham empenhado em tais construções. Nero, Trajano, Caracala, Diocleciano o fizeram2. Na Roma imperial, é aí que decorre grande parte da vida social da cidade.»

1 Sobre a agitação de umas termas, é muito elucidativa a Carta 56 do Livro VI das Cartas a Lucílio, de Séneca, que quis provar, morando acima de um desses estabelecimentos, que o sábio pode recolher-se, sempre que queira, na sua meditação. O filósofo fala do ruído ensurdecedor proveniente de um sem número de actividades que se processavam no local: desde a queda dos banhistas nas águas da piscina aos atletas que gemiam sob os pesos que levantavam, aos jogos de bola, ao depilador, ao pregão do vendedor de bebidas, de salsichas e de outros alimentos.

2 As mais antigas de que há notícia foram erigidas por Agripa, mas já no seu tempo atingiram a cifra de cento e setenta. De modelo principal serviram as de Trajano. as mais bem conservadas são as de Caracala e as de Diocleciano (nestas últimas está hoje instalado o Museo delle Terme).

Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, II volume - Cultura Romana, 1ª ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984, pp. 444-445.  

Lisboa, castelo de S. Jorge

fotografia: filipe sousa |  7 julho 2021

 
















Lisboa segundo um seu ilustre visitante, no início do século XII, de nome completo Abu Abd Allah Muhammad al-Idrisi al-Qurtubi al-Hasani al-Sabti, ou simplesmente al-Idrisi ou Edrici, geógrafo árabe ao serviço de Roger II, rei normando da Sicília.

«Lisboa ergue-se na margem de um rio que se chama Tejo ou rio de Toledo. A sua largura junto de Lisboa é de 6 milhas e a maré faz-se sentir aí vivamente. Esta bela cidade estende-se ao longo do rio, está cercada de muralhas e é protegida por um castelo. No centro da cidade existe uma fonte de água quente, tanto no Verão como no Inverno.
Situada nas proximidades do Mar Tenebroso, esta cidade tem à sua frente, na margem oposta e junto à foz do rio, o forte de Almada (1) , assim chamado porque o mar lança palhetas de ouro sobre a margem. Durante o Inverno, os habitantes da região vão junto do forte à procura desse metal e entregam-se à faina com maior ou menor sucesso enquanto dura a estação rigorosa. É um facto curioso de que eu próprio fui testemunha.» 

(1) A Mina

Abu Abd Allah Muhammad al-Idrisi al-Qurtubi al-Hasani al-Sabti (simplesmente al-Idrisi ou Edrici), século XII, in António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe - vol. 1 Geografia e Cultura, 2ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 1989, p. 68. 

Siena, Piazza del Campo

fotografia: filipe sousa | 6 julho 2021


«Entro num bar para beber um café. O empregado atende-me com a voz e o sorriso de Siena. Sinto-me fora do mundo. Desço ao Campo, uma praça inclinada e curva como uma concha, que os construtores não quiseram alisar e que assim ficou, para que fosse uma obra-prima. Coloco-me no meio dela como num regaço e olho os prédios de Siena, casas antiquíssimas onde gostaria de poder viver um dia, onde tivesse uma janela que me pertencesse, voltada para os telhados cor de barro, para as portadas verdes das janelas, a tentar decifrar donde vem este segredo que Siena murmura e que eu vou continuar a ouvir, mesmo que o não entenda, até ao fim da vida.»  

José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia - Ensaio de romance, 1ª edição, Moraes Editores, Lisboa, p. 212.