Ilhas Desertas (no horizonte)

fotografia: filipe sousa | 18 setembro 2022

 















Se há livro de António Mega Ferreira capaz de nos dar ao mesmo tempo a dimensão do seu pensamento, da sua obra, dos seus gostos e interesses, do seu espírito cultivado, e a que volto sempre, esse livro é “Uma Caligrafia de Prazeres” – com desenhos de Fernanda Fragateiro.
Nesse roteiro afectivo e íntimo convivem prazeres superlativos que vão da boa mesa aos melhores hotéis, das cidades marcantes, com Veneza à cabeça, ao urbanismo mais visionário, da alma do sapato à defesa da gravata!, passando por teatro, pintura, ópera, música e, claro, os livros, a sua grande paixão!
António Mega Ferreira partiu ontem, deixando um vasto legado ao futuro.

«Um só livro

Admitamos, por cedência ao lugar-comum literário, que as ilhas desertas ainda existem. E que, pressionado por um jornalista persistente, me cabia nomear um livro, um só livro, para levar comigo quando, por obscura razão, fosse obrigado a partir para a tal ilha deserta. Esse livro seria Ficções, de Jorge Luís Borges.
É claro que a leitura de Ficções não dispensa Cervantes, Sterne, Flaubert, Joyce, Nabokov. Mas, perante o desafio (a ameaça?) da ilha deserta, cabe aliviar a bagagem e levar apenas o essencial. Acresce que o exercício é um absoluto relativo, uma espécie de suplício intolerável que se impõe a um leitor: um livro? Só um livro? Convém escolher o que melhor engane a fome de outras leituras, recordando-se todas e em todas buscando a memória de uma outra vida. (...)
Numa ilha deserta, Ficções serve de bíblia a qualquer leitor compulsivo: é um livro interminável e, precisamente porque não é extenso, é a relativa escassez do seu texto que alimenta a elaboração incessante. Ficções é o guião virtual de todos os livros possíveis, a verificação hipotética da sua existência e a possibilidade da sua ainda não existência. Uma coisa e a outra são verosímeis dentro do universo mágico de Ficções

António Mega Ferreira, Uma Caligrafia de Prazeres, Texto Editores, Lisboa, 2003, pp. 16-17. 

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