مراكش / Marraquexe

fotografia: filipe sousa | 2 fevereiro 2023

 






















Marraquexe, a cidade amuralhada dos vinte e quatro portões. Das centenas de portais de arco de ferradura, com alfizes mais ou menos elaborados, que comunicam com o interior de derbs. Das mil e uma portas de cedro cravejadas de pregos de latão, ora fechadas, ora entreabertas, que conduzem a remansos em mesquitas, madraças, fondouqs, hammans, dars, riads.
Portões, portais e portas que permitem ou vedam a passagem entre o deserto e a medina, o arrabalde e a cidade intramuros, o público e o íntimo, o profano e o sagrado, o aqui e o além, a vida e a morte.
Transpomos Bab Ksiba com a firme ideia de subir ao terraço do palácio El Badiî. Mais tarde, diante do Atlas coberto de neve e com a medina aos nossos pés, perguntas assim:
-Sabes quem construiu este palácio, por sinal o mais grandioso do seu tempo, e porquê?
-Não faço a mínima.
-O sultão Ahmed al-Mansour, no final do século XVI, para comemorar a vitória sobre os portugueses em Alcácer Quibir.
-A sério!?
-E tudo o que vês foi financiado pelo avultado resgate dos nossos cativos. Enterrámos aqui as riquezas da Índia, e ficámos ainda mais nas lonas.
-O costume. É a nossa sina.
-Lembro-me de que o Eduardo Lourenço explica bem essa sina no seu "Labirinto da Saudade".
-É o que dá embarcar em aventuras de quintos impérios, ilusões de sermos o centro do mundo e outras manias de grandeza. O pior é que não aprendemos nada.
-Se não fossem essas, seriam outras aventuras. Sem elas, deixaríamos de ser quem somos. Está-nos na massa do sangue. É o nosso ADN. Afinal, desfez-se o império, e, apesar de vivermos agora o sonho europeu, Portugal continua por cumprir, como diria o Fernando Pessoa.
-A moeda tem sempre duas faces: o esplendor de uns é a desgraça de outros tantos. Não tinha que ser assim. Vê o custo de tudo isto para nós, o sacrifício que representa cada um destes azulejos. E para quê?
-Estás a dramatizar. A olhar para o copo meio vazio. Prefiro vê-lo meio cheio. Essa conversa não te leva a lado nenhum. Sem a insana cruzada de D. Sebastião, provavelmente não haveria este palácio, não teríamos hoje projectos académicos dedicados ao seu estudo, envolvendo especialistas portugueses e marroquinos, e não estaríamos agora a contemplar tudo isto e a ter esta conversa. A história está cheia de incongruências, meu caro.
-Chamo a isso uma visão egoísta e insensível?
-Que seja! Mas não consigo ter outra neste momento, diante deste palácio, desta medina e destas montanhas banhadas pelo pôr-do-sol. Deixa-te de estados de alma e aproveita este momento irrepetível. É como se fosse um cometa. Não passa duas vezes na nossa vida.
-Poupa-me à tua ironia.
-Não é ironia. Chamo-lhe apenas tirar partido do momento, do que a vida tem de melhor.
-Chama-lhe o que quiseres.
-A conversa está interessante, mas é melhor ficarmos por aqui. Lembrei-me agora mesmo dum poema que guardei para ti, para to dizer em Marraquexe.
-Mas não aqui, já agora…
-Como queiras.
-Agradeço-te.
-Tenho um plano.
-Que plano?
-Vês aquela açoteia acolá, ao lado daquela palmeira? Deve pertencer a um riad. E se fôssemos até lá para desfrutar da noite que se aproxima e dizer-te o poema?
-E como queres tu encontrar a casa daquele terraço? No meio deste labirinto, é como achar uma agulha no palheiro.
-Lá estás tu, a ver o copo meio vazio! E porque não partimos à aventura? Haveremos de encontrar essa porta e a açoteia, confia em mim.
-Sempre teimosa! Pelo sim, pelo não, vou tirar uma fotografia.
Acabo por ceder, aceitando tudo o que o destino me/nos reserva. Tentativas e erros. Avanços e recuos. Pistas que acabam por dar em nada. Certezas que não se confirmam. Mais de uma hora perdidos no labirinto e a paciência a esgotar-se.
Até que, ao percorrermos uma rua bem estreita, que juraria passada a pente fino, encontramos a porta, deixada entreaberta (por descuido?), que um transeunte assegura conduzir à açoteia da fotografia. A porta ostenta uma mão de Fátima como aldraba e, por cima, a inscrição: «Em nome de Alá». Bem protegida, é com certeza uma casa muçulmana! Não há janelas para a rua, só a imensa parede de taipa a isolar o casulo do mundo exterior. Descalçados os ténis, entramos devagar para habituar os olhos à penumbra. Aos poucos, vão-se revelando encantos em cada um dos aposentos, através de véus de seda que pendem sobre os vãos. Tacteio a suavidade do tadlakt cor de jade e a rugosidade dos zelliges azul-turquesa que revestem as paredes. Aprecio os tectos abobadados e o pavimento coberto de mosaicos antigos. Ao fundo do corredor abre-se o pátio, com a fonte no centro, onde me demoro a ouvir o som da água a correr. E, finalmente, o jardim, um pequeno oásis invadido por jasmins e buganvílias. Tudo aqui é harmonia e quietude. Um bálsamo para a alma. Nem a mente mais prodigiosa poderia adivinhar, do limiar da porta, a beleza interior que se esconde neste El Badiî em miniatura. De súbito, sinto uma voz a chamar dentro de mim:
-«Anda, apressa-te! Não há mais nada além do estipulado:
a taça e a minha bela lua cheia.
Não sejas preguiçoso, anda ver
a névoa que cobre o jardim e o vinho:
é que o jardim está oculto até que venhas
e só então ficará a descoberto.» (1)
Reparo agora que estou sozinho. Há quanto tempo? Não sei avaliar. Se calhar, demorei-me uma eternidade. Sigo um fio de luz que vem de cima. Desemboco na açoteia e encontro-te sentada, de taça na mão, a saborear um vinho antigo e a lua içada no céu.
-Desculpa, estás aqui há muito tempo?
-Quase há uma eternidade. Que te aconteceu?
-Acho que, por momentos, perdi a noção do tempo e deste lugar. Ainda não estou em mim. E o poema, vais dizê-lo agora?
-Já o disse. Como nunca mais chegavas, e a lua estava a despontar…
-Mas não podes dizê-lo outra vez? Gostaria muito.
-Lamento. Perdeu-se a oportunidade, como aquele cometa que só passa uma vez nas nossas vidas. Lembras-te?
-Quem te disse que não passa uma segunda vez? Podemos tentar.
-Como assim?
-Ficando aqui para sempre neste terraço, a olhar esta noite mágica sobre Marraquexe. Que me dizes? Agora és tu que estás a ver o copo meio vazio. Apanhei-te!
Ris-te. Rimo-nos. Enches a minha taça de vinho. Brindamos ao momento. As nossas gargalhadas não param de ecoar na cidade adormecida.

(1) Abú Aláçane Ali ibn Bassame Assantarini (1058?-1147?), natural de Santarém.

«Marraquexe é considerada uma das grandes cidades do mundo e uma das mais ilustres de África. (...) A sua medina é extensa, inclui (durante o reinado de Hali) cerca de cem mil fogos (...), tem vinte e quatro portões e está rodeada por fortes muros, cuja alvenaria é de cal viva e areia.»

Leão o Africano (1496?-1548) 

«Agora devemos infiltrar-nos pelas brechas da muralha, as aberturas esquecidas; devemos andar na ponta dos pés e apurar o ouvido, não durante o dia, mas sim durante a noite, quando a lua dá sombra à nossa história, quando as estrelas se juntam a um canto do céu e observam o mundo que fica mais suave.»

Tahar Ben Jelloun, A Criança de Areia (L'Enfant de Sable, 1985), Editorial Estampa, Lisboa, 1989, p. 63.

ساحة جامع الفناء / Sāḥat Jāmiʾ al-Fanāʾ / Djemâa el-Fna

fotografia: filipe sousa | 1 fevereiro 2023

 

















Dia 10, mês de Rajab, ano de 1444 da Hégira. 1 de Fevereiro de 2023 da era cristã. Final de tarde em Marraquexe.
Marcamos encontro em Djemâa el Fna, à hora mágica em que a praça se transforma no centro do mundo. Provavelmente, a praça mais fascinante do mundo, como diria Paul Bowles, o escritor nova-iorquino que encontrou em Marrocos o seu lugar de eleição. Há uma espécie de íman que nos atrai para aqui e obrigará a ficar pela noite dentro. Há uma multidão à nossa volta que experimenta o mesmo apelo.
Acabaste de chegar. Prepara-te, preparemo-nos para a aventura, que as próximas horas serão únicas na tua, na nossa vida. Vamos aproveitar o tempo como se fosse a última vez que visitamos este lugar. Tens, temos um papel a cumprir nesta história. Lembra-te que Marraquexe é terra de emboscadas. Em campo aberto, somos uma presa fácil. É uma questão de tempo até sermos notados, alcançados. Não adianta quereres passar despercebido ou esconder-te, evitares ou recusares, que irão dar contigo e aliciar-te até à exaustão. Encantadores de serpentes, amestradores de macacos, contadores de histórias, escrivães, tatuadoras de henna, acrobatas, místicos, vendedores ambulantes de quinquilharias e babuchas, de tagines e cactos, de albornozes e cuscuz fumegante servido em pequenos potes de barro, e tantos outros figurantes que fazem parte deste teatro de sonho. Todos com o mesmo propósito: fazerem-se pagar pelos seus produtos e serviços, utilizando todo o tipo de manhas e estratagemas. Por aqui, sempre vigorou a lei da sobrevivência. Hoje, não será diferente. Dessa experiência, levaremos muitas histórias para contar, que são, afinal, o melhor que podemos levar da vida. De como não escapámos a víboras do deserto penduradas ao pescoço, de como fomos convencidos a dar colo a macacos da Berbéria, ou de como acabámos a comprar duas djellabas para nos disfarçarmos. (De nada adiantou. Fomos descobertos!).
Quando a noite chegar, subiremos ao terraço do Chegrouni para beber um, dois, três copos de chá de menta e daí abarcar, arrebatados, a imensidão da praça com as suas tendas de comida e o seu mar de gente. Pediremos ainda uma tagine de galinha, com legumes e azeitonas, e um cuscuz de borrego, que saberão pela vida. E não partiremos sem ouvir o almuadem da mesquita em frente chamar para a última oração do dia: Allah u Akbar, Allah u Akbar, Allah u Akbar!
Com a noite adiantada, a praça será tomada pelos ritmos electrizantes da música berbere. Os responsáveis são grupos de virtuosos do alaúde, rebabe (guitarra de duas cordas), bendir (espécie de pandeiro) e qraqeb (espécie de castanholas de metal), que abancarão em círculo com os seus acompanhantes, na expectativa de que mais e mais entusiastas se juntem à festa. Para experiência completa, seremos parte desses ajuntamentos que celebram a vida à luz de lamparinas. Lembro-te de que, por aqui, a música e a dança não estão proscritas. Não será, por isso, surpresa se encontrarmos homens e mulheres dançando juntos, experienciando uma espécie de transe colectivo. Acredita que é impossível ficar indiferente ao efeito hipnótico da atmosfera criada. A exaustão e o êxtase vivem aqui de mãos dadas. Quando chegar o momento, embarcaremos também nessa vertigem, com estas frases de Kafka a ecoarem dentro de nós: «A partir de um certo ponto já não há regresso. É esse o ponto que deve ser alcançado.»

«A Djemâa el Fna é provavelmente a praça ao ar livre mais fascinante do mundo. Todas as tardes Marraquexe inteira vem aqui como se fosse a uma feira. Numa tarde qualquer podem ver-se alguns destros sudaneses dançando junto a uma trupe de Gnaoua, uma trupe de acrobatas, os jilabas bebendo água a ferver, os aissaouas encantando cobras e víboras, macacos treinados, e uma actuação surrealista por dois haddaouas sentados sobre tapetes e rodeados por flores de plástico e pombos vivos.»

Paul Bowles, «O que há de tão diferente em Maraquexe?» (1971), Viagens - Compilação de Escritos, 1950-1993 (Travels - Collected Writings, 1950-1993), trad. Jorge Pereirinha Pires, Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 438. 

مراكش / Marraquexe

fotografia: filipe sousa | 1 fevereiro 2023

 

















Dia 9, mês de Rajab, ano1444 da Hégira. 31 de Janeiro de 2023 da era cristã. Zona ocidental de Marraquexe, a do antigo Protectorado francês. Do alto das almádenas, os muezins chamam à primeira oração do dia. Os vários chamamentos vindos das mesquitas próximas convergem num único cântico, sobrepondo-se, por breves instantes, ao rumor do trânsito de El Gueliz.
No terraço do edifício vizinho daquele onde me encontro, Mohamed prostra-se sobre um tapete, em profunda meditação, voltado para os picos nevados do Alto-Atlas, que distam uns bons cinquenta quilómetros e de cujas aldeias berberes, encavalitadas nas encostas, são originários muitos dos comerciantes e artesãos que encontrarei mais tarde na medina. O ritual da oração a que se entrega Mohamed cinco vezes por dia é em tudo semelhante à manifestação de crença em Alá de Yusuf ibn Tashfin, chefe almorávida e co-fundador de Marraquexe, no ano de 1062 (454 da Hégira), que daqui partiu para glorificar o nome do Profeta na Península Ibérica.
Entretanto, o sol começa a aclarar a oriente, iluminando o percurso, de três quilómetros, que daí a pouco farei a pé até ao coração secular da cidade.
Duas horas depois, deixo as avenidas largas e rasgadas de El Gueliz para me perder no labirinto intrincado da medina.
Sucedem-se, como tentáculos, vielas apertadas e sinuosas onde sou parte ínfima de uma multidão compacta que, à mistura com motoretas, bicicletas e carroças, se desloca, miraculosamente, sem se atropelar e ser atropelada.
Aventuro-me, de olhos e espírito abertos, nas zonas mais recônditas dos souks, onde os caminhos levam a túneis por baixo de casas, onde os cheiros a especiarias, comida feita e urina impregnam o ar.
Esgueiro-me à justa por entre famílias amesendadas, no meio da rua, alheias ao que se passa à sua volta. Tento esquivar-me às investidas de engraxadores, mendigos e vendedores de tudo e mais alguma coisa que surgem dos sítios mais inesperados. Tento não ser notado enquanto observo os que martelam latão e cobre, cardam, fiam e tecem tapetes, batem sola ou costuram albornozes no fundo das suas lojas.
Com destino incerto, sigo os passos misteriosos de mulheres mais ou menos veladas e de homens, com ar de sábios, embiocados nas suas djellabas.
De súbito, o caminho bifurca-se. Vou perdendo o rasto aos que seguem na dianteira. Até que, sozinho, entro num beco de paredes de terra rosada, com a beleza atrás de mim. O cerco fecha-se. Estou definitivamente perdido. Capturado. Não há como evitá-lo.

«Marraquexe é uma cidade de grandes distâncias, plana como uma tábua. Quando sopra o vento, o pó rosado das planícies estende-se para o céu, obscurecendo o Sol, e toda a cidade, pintada com uma demão da terra rosada sobre a qual assenta, reluz em vermelho sob a luz cataclísmica. À noite, da janela de um carro, não parece diferente de uma das nossas cidades ocidentais: longos quilómetros de candeeiros de rua estendendo-se em linha reta sobre a planície. Somente durante o dia se vê que muitas dessas luzes iluminam apenas extensões vazias de palmeirais e deserto. Ao longo dos anos, as franjas exteriores da medina passaram a permitir a circulação de automóveis e das carruagens puxadas por cavalos, das quais ainda existem muitas, mas é necessário um homem destemido para conduzir o seu carro no labirinto de vielas em serpentina cheias de moços de fretes, bicicletas, carroças, burros e vulgares pedestres. Além disso, a única maneira de se ver alguma coisa na medina é caminhando. Para se estar realmente presente, é preciso ter-se os pés sobre a poeira, ou ter-se a consciência do odor quente e poirento dos muros de argila junto ao nosso rosto.»

Paul Bowles, «A Rota para Tassemsit» (1963), Viagens - Compilação de Escritos, 1950-1993 (Travels - Collected Writings, 1950-1993), trad. Jorge Pereirinha Pires, Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 348.