Marraquexe, a cidade amuralhada dos vinte e quatro portões. Das centenas de portais de arco de ferradura, com alfizes mais ou menos elaborados, que comunicam com o interior de derbs. Das mil e uma portas de cedro cravejadas de pregos de latão, ora fechadas, ora entreabertas, que conduzem a remansos em mesquitas, madraças, fondouqs, hammans, dars, riads.
Portões, portais e portas que permitem ou vedam a passagem entre o deserto e a medina, o arrabalde e a cidade intramuros, o público e o íntimo, o profano e o sagrado, o aqui e o além, a vida e a morte. Transpomos Bab Ksiba com a firme ideia de subir ao terraço do palácio El Badiî. Mais tarde, diante do Atlas coberto de neve e com a medina aos nossos pés, perguntas assim:
-Sabes quem construiu este palácio, por sinal o mais grandioso do seu tempo, e porquê?
-Não faço a mínima.
-O sultão Ahmed al-Mansour, no final do século XVI, para comemorar a vitória sobre os portugueses em Alcácer Quibir.
-A sério!?
-E tudo o que vês foi financiado pelo avultado resgate dos nossos cativos. Enterrámos aqui as riquezas da Índia, e ficámos ainda mais nas lonas.
-O costume. É a nossa sina.
-Lembro-me de que o Eduardo Lourenço explica bem essa sina no seu "Labirinto da Saudade".
-É o que dá embarcar em aventuras de quintos impérios, ilusões de sermos o centro do mundo e outras manias de grandeza. O pior é que não aprendemos nada.
-Se não fossem essas, seriam outras aventuras. Sem elas, deixaríamos de ser quem somos. Está-nos na massa do sangue. É o nosso ADN. Afinal, desfez-se o império, e, apesar de vivermos agora o sonho europeu, Portugal continua por cumprir, como diria o Fernando Pessoa.
-A moeda tem sempre duas faces: o esplendor de uns é a desgraça de outros tantos. Não tinha que ser assim. Vê o custo de tudo isto para nós, o sacrifício que representa cada um destes azulejos. E para quê?
-Estás a dramatizar. A olhar para o copo meio vazio. Prefiro vê-lo meio cheio. Essa conversa não te leva a lado nenhum. Sem a insana cruzada de D. Sebastião, provavelmente não haveria este palácio, não teríamos hoje projectos académicos dedicados ao seu estudo, envolvendo especialistas portugueses e marroquinos, e não estaríamos agora a contemplar tudo isto e a ter esta conversa. A história está cheia de incongruências, meu caro.
-Chamo a isso uma visão egoísta e insensível?
-Que seja! Mas não consigo ter outra neste momento, diante deste palácio, desta medina e destas montanhas banhadas pelo pôr-do-sol. Deixa-te de estados de alma e aproveita este momento irrepetível. É como se fosse um cometa. Não passa duas vezes na nossa vida.
-Poupa-me à tua ironia.
-Não é ironia. Chamo-lhe apenas tirar partido do momento, do que a vida tem de melhor.
-Chama-lhe o que quiseres.
-A conversa está interessante, mas é melhor ficarmos por aqui. Lembrei-me agora mesmo dum poema que guardei para ti, para to dizer em Marraquexe.
-Mas não aqui, já agora…
-Como queiras.
-Agradeço-te.
-Tenho um plano.
-Que plano?
-Vês aquela açoteia acolá, ao lado daquela palmeira? Deve pertencer a um riad. E se fôssemos até lá para desfrutar da noite que se aproxima e dizer-te o poema?
-E como queres tu encontrar a casa daquele terraço? No meio deste labirinto, é como achar uma agulha no palheiro.
-Lá estás tu, a ver o copo meio vazio! E porque não partimos à aventura? Haveremos de encontrar essa porta e a açoteia, confia em mim.
-Sempre teimosa! Pelo sim, pelo não, vou tirar uma fotografia.
Acabo por ceder, aceitando tudo o que o destino me/nos reserva. Tentativas e erros. Avanços e recuos. Pistas que acabam por dar em nada. Certezas que não se confirmam. Mais de uma hora perdidos no labirinto e a paciência a esgotar-se.
Até que, ao percorrermos uma rua bem estreita, que juraria passada a pente fino, encontramos a porta, deixada entreaberta (por descuido?), que um transeunte assegura conduzir à açoteia da fotografia. A porta ostenta uma mão de Fátima como aldraba e, por cima, a inscrição: «Em nome de Alá». Bem protegida, é com certeza uma casa muçulmana! Não há janelas para a rua, só a imensa parede de taipa a isolar o casulo do mundo exterior. Descalçados os ténis, entramos devagar para habituar os olhos à penumbra. Aos poucos, vão-se revelando encantos em cada um dos aposentos, através de véus de seda que pendem sobre os vãos. Tacteio a suavidade do tadlakt cor de jade e a rugosidade dos zelliges azul-turquesa que revestem as paredes. Aprecio os tectos abobadados e o pavimento coberto de mosaicos antigos. Ao fundo do corredor abre-se o pátio, com a fonte no centro, onde me demoro a ouvir o som da água a correr. E, finalmente, o jardim, um pequeno oásis invadido por jasmins e buganvílias. Tudo aqui é harmonia e quietude. Um bálsamo para a alma. Nem a mente mais prodigiosa poderia adivinhar, do limiar da porta, a beleza interior que se esconde neste El Badiî em miniatura. De súbito, sinto uma voz a chamar dentro de mim:
-«Anda, apressa-te! Não há mais nada além do estipulado:
a taça e a minha bela lua cheia.
Não sejas preguiçoso, anda ver
a névoa que cobre o jardim e o vinho:
é que o jardim está oculto até que venhas
e só então ficará a descoberto.» (1)
Reparo agora que estou sozinho. Há quanto tempo? Não sei avaliar. Se calhar, demorei-me uma eternidade. Sigo um fio de luz que vem de cima. Desemboco na açoteia e encontro-te sentada, de taça na mão, a saborear um vinho antigo e a lua içada no céu.
-Desculpa, estás aqui há muito tempo?
-Quase há uma eternidade. Que te aconteceu?
-Acho que, por momentos, perdi a noção do tempo e deste lugar. Ainda não estou em mim. E o poema, vais dizê-lo agora?
-Já o disse. Como nunca mais chegavas, e a lua estava a despontar…
-Mas não podes dizê-lo outra vez? Gostaria muito.
-Lamento. Perdeu-se a oportunidade, como aquele cometa que só passa uma vez nas nossas vidas. Lembras-te?
-Quem te disse que não passa uma segunda vez? Podemos tentar.
-Como assim?
-Ficando aqui para sempre neste terraço, a olhar esta noite mágica sobre Marraquexe. Que me dizes? Agora és tu que estás a ver o copo meio vazio. Apanhei-te!
Ris-te. Rimo-nos. Enches a minha taça de vinho. Brindamos ao momento. As nossas gargalhadas não param de ecoar na cidade adormecida.