fotografia: filipe sousa | 1 fevereiro 2023 |
No terraço do edifício vizinho daquele onde me encontro, Mohamed prostra-se sobre um tapete, em profunda meditação, voltado para os picos nevados do Alto-Atlas, que distam uns bons cinquenta quilómetros e de cujas aldeias berberes, encavalitadas nas encostas, são originários muitos dos comerciantes e artesãos que encontrarei mais tarde na medina. O ritual da oração a que se entrega Mohamed cinco vezes por dia é em tudo semelhante à manifestação de crença em Alá de Yusuf ibn Tashfin, chefe almorávida e co-fundador de Marraquexe, no ano de 1062 (454 da Hégira), que daqui partiu para glorificar o nome do Profeta na Península Ibérica.
Entretanto, o sol começa a aclarar a oriente, iluminando o percurso, de três quilómetros, que daí a pouco farei a pé até ao coração secular da cidade.
Duas horas depois, deixo as avenidas largas e rasgadas de El Gueliz para me perder no labirinto intrincado da medina.
Sucedem-se, como tentáculos, vielas apertadas e sinuosas onde sou parte ínfima de uma multidão compacta que, à mistura com motoretas, bicicletas e carroças, se desloca, miraculosamente, sem se atropelar e ser atropelada.
Aventuro-me, de olhos e espírito abertos, nas zonas mais recônditas dos souks, onde os caminhos levam a túneis por baixo de casas, onde os cheiros a especiarias, comida feita e urina impregnam o ar.
Esgueiro-me à justa por entre famílias amesendadas, no meio da rua, alheias ao que se passa à sua volta. Tento esquivar-me às investidas de engraxadores, mendigos e vendedores de tudo e mais alguma coisa que surgem dos sítios mais inesperados. Tento não ser notado enquanto observo os que martelam latão e cobre, cardam, fiam e tecem tapetes, batem sola ou costuram albornozes no fundo das suas lojas.
Com destino incerto, sigo os passos misteriosos de mulheres mais ou menos veladas e de homens, com ar de sábios, embiocados nas suas djellabas.
De súbito, o caminho bifurca-se. Vou perdendo o rasto aos que seguem na dianteira. Até que, sozinho, entro num beco de paredes de terra rosada, com a beleza atrás de mim. O cerco fecha-se. Estou definitivamente perdido. Capturado. Não há como evitá-lo.
«Marraquexe é uma cidade de grandes distâncias, plana como uma tábua. Quando sopra o vento, o pó rosado das planícies estende-se para o céu, obscurecendo o Sol, e toda a cidade, pintada com uma demão da terra rosada sobre a qual assenta, reluz em vermelho sob a luz cataclísmica. À noite, da janela de um carro, não parece diferente de uma das nossas cidades ocidentais: longos quilómetros de candeeiros de rua estendendo-se em linha reta sobre a planície. Somente durante o dia se vê que muitas dessas luzes iluminam apenas extensões vazias de palmeirais e deserto. Ao longo dos anos, as franjas exteriores da medina passaram a permitir a circulação de automóveis e das carruagens puxadas por cavalos, das quais ainda existem muitas, mas é necessário um homem destemido para conduzir o seu carro no labirinto de vielas em serpentina cheias de moços de fretes, bicicletas, carroças, burros e vulgares pedestres. Além disso, a única maneira de se ver alguma coisa na medina é caminhando. Para se estar realmente presente, é preciso ter-se os pés sobre a poeira, ou ter-se a consciência do odor quente e poirento dos muros de argila junto ao nosso rosto.»
Paul Bowles, «A Rota para Tassemsit» (1963), Viagens - Compilação de Escritos, 1950-1993 (Travels - Collected Writings, 1950-1993), trad. Jorge Pereirinha Pires, Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 348.
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