ساحة جامع الفناء / Sāḥat Jāmiʾ al-Fanāʾ / Djemâa el-Fna

fotografia: filipe sousa | 1 fevereiro 2023

 

















Dia 10, mês de Rajab, ano de 1444 da Hégira. 1 de Fevereiro de 2023 da era cristã. Final de tarde em Marraquexe.
Marcamos encontro em Djemâa el Fna, à hora mágica em que a praça se transforma no centro do mundo. Provavelmente, a praça mais fascinante do mundo, como diria Paul Bowles, o escritor nova-iorquino que encontrou em Marrocos o seu lugar de eleição. Há uma espécie de íman que nos atrai para aqui e obrigará a ficar pela noite dentro. Há uma multidão à nossa volta que experimenta o mesmo apelo.
Acabaste de chegar. Prepara-te, preparemo-nos para a aventura, que as próximas horas serão únicas na tua, na nossa vida. Vamos aproveitar o tempo como se fosse a última vez que visitamos este lugar. Tens, temos um papel a cumprir nesta história. Lembra-te que Marraquexe é terra de emboscadas. Em campo aberto, somos uma presa fácil. É uma questão de tempo até sermos notados, alcançados. Não adianta quereres passar despercebido ou esconder-te, evitares ou recusares, que irão dar contigo e aliciar-te até à exaustão. Encantadores de serpentes, amestradores de macacos, contadores de histórias, escrivães, tatuadoras de henna, acrobatas, místicos, vendedores ambulantes de quinquilharias e babuchas, de tagines e cactos, de albornozes e cuscuz fumegante servido em pequenos potes de barro, e tantos outros figurantes que fazem parte deste teatro de sonho. Todos com o mesmo propósito: fazerem-se pagar pelos seus produtos e serviços, utilizando todo o tipo de manhas e estratagemas. Por aqui, sempre vigorou a lei da sobrevivência. Hoje, não será diferente. Dessa experiência, levaremos muitas histórias para contar, que são, afinal, o melhor que podemos levar da vida. De como não escapámos a víboras do deserto penduradas ao pescoço, de como fomos convencidos a dar colo a macacos da Berbéria, ou de como acabámos a comprar duas djellabas para nos disfarçarmos. (De nada adiantou. Fomos descobertos!).
Quando a noite chegar, subiremos ao terraço do Chegrouni para beber um, dois, três copos de chá de menta e daí abarcar, arrebatados, a imensidão da praça com as suas tendas de comida e o seu mar de gente. Pediremos ainda uma tagine de galinha, com legumes e azeitonas, e um cuscuz de borrego, que saberão pela vida. E não partiremos sem ouvir o almuadem da mesquita em frente chamar para a última oração do dia: Allah u Akbar, Allah u Akbar, Allah u Akbar!
Com a noite adiantada, a praça será tomada pelos ritmos electrizantes da música berbere. Os responsáveis são grupos de virtuosos do alaúde, rebabe (guitarra de duas cordas), bendir (espécie de pandeiro) e qraqeb (espécie de castanholas de metal), que abancarão em círculo com os seus acompanhantes, na expectativa de que mais e mais entusiastas se juntem à festa. Para experiência completa, seremos parte desses ajuntamentos que celebram a vida à luz de lamparinas. Lembro-te de que, por aqui, a música e a dança não estão proscritas. Não será, por isso, surpresa se encontrarmos homens e mulheres dançando juntos, experienciando uma espécie de transe colectivo. Acredita que é impossível ficar indiferente ao efeito hipnótico da atmosfera criada. A exaustão e o êxtase vivem aqui de mãos dadas. Quando chegar o momento, embarcaremos também nessa vertigem, com estas frases de Kafka a ecoarem dentro de nós: «A partir de um certo ponto já não há regresso. É esse o ponto que deve ser alcançado.»

«A Djemâa el Fna é provavelmente a praça ao ar livre mais fascinante do mundo. Todas as tardes Marraquexe inteira vem aqui como se fosse a uma feira. Numa tarde qualquer podem ver-se alguns destros sudaneses dançando junto a uma trupe de Gnaoua, uma trupe de acrobatas, os jilabas bebendo água a ferver, os aissaouas encantando cobras e víboras, macacos treinados, e uma actuação surrealista por dois haddaouas sentados sobre tapetes e rodeados por flores de plástico e pombos vivos.»

Paul Bowles, «O que há de tão diferente em Maraquexe?» (1971), Viagens - Compilação de Escritos, 1950-1993 (Travels - Collected Writings, 1950-1993), trad. Jorge Pereirinha Pires, Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 438. 

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