Ilhéu de Vila Franca do Campo

«Eram seis quilómetros, que se faziam bem a pé, a toda a volta desta nossa ilha, começando lá no alto, por entre o tojo e os abrunheiros, de onde se viam as rochas escarpadas no mar circundante, e descendo para as pequenas clareiras ponteadas de prímulas. Indo a direito, atravessava-se duas colinasitas, continuava-se ao comprimento da ilha pelos campos rochosos, onde as vacas ruminavam deitadas, prosseguia-se por entre a aveia escassa, até chegar, outra vez, ao tojo; e, depois, descia-se até à beira das escarpas mais baixas - não eram precisos mais do que vinte minutos. E, ao chegar à beira, via-se em frente outra ilha maior. Mas, no meio, havia o mar.  E, quando se voltava para trás pela turfa onde baloiçavam primaveras baixinhas, próximas da terra, via-se, para leste, outra ilha - essa minúscula, como se fosse o vitelo da vaca. A ilha minúscula pertencia, também, ao nosso ilhéu.
Assim, parece que até as ilhas gostam da companhia umas das outras.» 

D.H.Lawrence, «O homem que amava ilhas» («The man who loved islands», 1928) in Amor no feno e outros contos (Love among the haystacks and other stories, 1930), trad. Maria Teresa Guerreiro, Assírio & Alvim, Lisboa, 1988, pp. 101-102.

fotografia: filipe sousa | 24 julho 2016





Quintos

SONETO MENOR À CHEGADA DO VERÃO

Eis como o verão
chega de súbito,
com seus potros fulvos,
seus dentes miúdos,

seus múltiplos, longos
corredores de cal,
as paredes nuas,
a luz de metal,

seu dardo mais puro
cravado na terra,
cobras que despertam
no silêncio duro -

eis como o verão
entra no poema.

Eugénio de Andrade, «Ostinato Rigore» (1963-1965), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed., Limiar, Porto, s.d., p. 115.

fotografia: filipe sousa | 25 julho 2017



Forcalquier, Artemisia Museum

Também conhecido por losna, o absinto (artemisia absinthiumentra na composição da bebida com o mesmo nome, musa inspiradora de escritores, pintores e outros criadores, de Van Gogh e Baudelaire a Rimbaud e Picasso, sem esquecer o nosso Fernando Pessoa. 
Mito ou realidade, devam muito, pouco ou nada a literatura, a pintura e as outras artes aos poderes alucinogénios da planta, uma coisa parece evidente: o tema do absinto foi profusamente glosado ao longo dos últimos três séculos e por isso pretexto para criações como as que se seguem, em que as virtudes da fada verde, como era conhecida a bebida pela sua cor marcante, competem com as do ópio, tabaco e vinho tinto.  
Mas a ser verdade que Baudelaire, Pessoa e O'Neill estavam com um grãozinho na asa quando escreveram estes poemas, então é caso para dizer: bendito absinto!

fotografa: filipe sousa | 21 maio 2019



























LE POISON

Le vin sait revêtir le plus sordide bouge
D'un luxe miraculeux,
Et fait surgir plus d'un portique fabuleux
Dans l'or de sa vapeur rouge,
Comme un soleil couchant dans un ciel nébuleux.
L'opium agrandit ce qui n'a pas de bornes,
Allonge l'illimité,
Approfondit le temps, creuse la volupté,
Et de plaisirs noirs et mornes
Remplit l'âme au delà de sa capacité.
Tout cela ne vaut pas le poison qui découle
De tes yeux, de tes yeux verts,
Lacs où mon âme trembe et se voit à l'envers...
Mes songes viennent en foule
Pour se désaltérer à ces gouffres amers.
Tout cela ne vaut pas le terrible prodige
De ta salive qui mord,
Qui plonge dans l'oubli mon âme sans remords,
Et charriant le vertige,
La roule défaillante aux rives de la mort.

Charles Baudelaire, Les fleurs du mal, 1857. 


A PASSAGEM DAS HORAS (a José de Almada Negreiros)

(...) Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo... (...)

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), 1916


BILHETE-POSTAL A ALEXANDRE PINHEIRO TORRES

Absinto-me cansado
             na outonalma.
De absinto, no outono,
             encharco a alma...

Muito deve a literatura 
             ao absinto.
Em qualidade, muito mais
             que ao tinto...

Ó Alexandre, manda-me absinto
             na volta do correio,
que eu já sinto, com tanto tinto,
             estancar-se-me o veio...

Alexandre O'Neill, Poemas com endereço, 1962

Berlin / Berlim, Alt-Moabit 89

Onde era, em 1934, a Secretaria da Infância e da Juventude da subprefeitura de Tiergarten, em Berlim, encontramos hoje, no 94 de Alt-Moabit, um moderno condomínio fechado, com vistas para o Spree. No edifício mais próximo, cuja construção data de 1892-1893 e que resistiu aos bombardeamentos aliados, funciona hoje o hotel Tiergarten, além de acolher uns quantos apartamentos, onde reside alguém com o familiar apelido «Filho».
Mas o que tem a ver o 94 de Alt-Moabit com a história de Francisco Buarque de Holanda (Chico Buarque), que hoje completa 75 anos?

«Berlim NW 21, Alt-Moabit 94
O subprefeito  
da Administração Regional de Tiergarten, Berlim
Cidade de Berlim/Subprefeitura de Tiergarten
Secretaria da Infância e da Juventude. Tutela Pública

Ao Senhor
Sergio de Hollander
Rio de Janeiro
Rua Maria Angélica, 39
América do Sul

24.9.1934

Prezado Senhor de Hollander!

Já anos atrás tentei entrar em contato com o senhor por intermédio da legação da Alemanha no Rio de Janeiro, a fim de obter do senhor pensão alimentícia para meu pupilo Sergio Ernst, do qual o senhor é pai natural. Infelizmente, minha tentativa resultou vã. Se hoje, portanto, torno a contatá-lo, eu o faço na suposição de que é também seu desejo que a criança gerada pelo senhor tenha um lar bom e duradouro e uma educação correta.
Há um bom tempo, Sergio Ernst, nascido em 21 de dezembro de 1930, encontra-se sob os cuidados da casal Gunther, NO 50, Grefswalder Strasse 212/13, pátio 2. O casal se afeiçoou ao menino e pensa adotá-lo. O contrato de adoção foi firmado, a guarda foi autorizada judicialmente, e o documento se encontra no momento no Tribunal Regional de Berlim, para concessão de dispensa de idade mínima de cinquenta anos completos e para legitimação.
A corte de legitimação solicita agora comprovação da origem ariana. Esta pode ser demonstrada pelo lado materno. Mas o menino precisa ter ascendência ariana também por parte do pai, Tenho, assim, de pedir ao senhor que me envie sua certidão de nascimento, as de seus pais e as de seus avós maternos e paternos. Dessas certidões deve ser possível depreender a religião de seus antepassados.
Acreditando que, no interesse do menino, o senhor não há de se recusar a atender minha solicitação, espero ter notícias suas e aguardo a chegada das certidões.

Com o cumprimento alemão,
Heil Hitler!
p/
Tutor Municipal»


fotografia: filipe sousa | 5 junho 2019






































«Sergio Gunther, filho de Sergio Buarque de Holanda e Anne Ernst (ou Anne Margrit Ernst, ou Annemarie Ernst), nasceu em Berlim, em 21 de dezembro de 1930. Em 1931 ou 1932, foi entregue pela mãe à Secretaria da Infância e da Juventude do distrito de Tiergarten, Berlim. Em 193?, Arthur Erich Willy Gunther e sua mulher, Pauline Anna, adotaram o menino Sergio Ernst, que seria criado com o nome de Horst Gunther. Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber da identidade de seus pais naturais, optando por retomar o prenome Sergio. Entrou para o exército da RDA em 194? e no fim dos anos 50 foi admitido na televisão do Estado, onde desenvolveu múltiplas atividades. Gravou um número incerto de discos, hoje fora de circulação. Morreu de câncer em 12 de setembro de 1981.
Tomei conhecimento do destino do meu irmão Sergio Gunther graças ao empenho do historiador João Klug e do museólogo Dieter Lange. Seus trabalhos de pesquisa em Berlim basearam-se nos documentos constantes neste livro, preservados por minha mãe, Maria Amelia Buarque de Holanda. O contato com Klug e Lange se deu por intermédio do editor Luiz Schwarcz e do historiador Sidney Chalhoub.
Em maio de 2013 estive em Berlim com minha filha Silvia Buarque, cuja contribuição foi fundamental para as entrevistas com a filha de Sergio, Kerstin Prugel, a neta, Josepha Prugel, a ex-mulher, Monika Knebel, e os amigos Werner Reinhardt e Manfred Schmitz.

Chico Buarque »

Chico Buarque, O Irmão Alemão (2014), Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2015, pp. 163-164, 183-184.