Berlin / Berlim, Konrad-Adenauer-Straße 1

Cem anos do movimento Bauhaus, de Walter Gropius.

«O objectivo final de todas as artes é o edifício! Embelezar os edifícios já foi a mais nobre das funções da arte; elas eram as componentes indispensáveis da boa arquitectura. Hoje as artes existem isoladamente, de que só podem ser resgatadas através do esforço consciente e colaborativo de todos os artesãos. Arquitectos, pintores e escultores têm de reconhecer novamente e aprender a compreender o carácter compósito de um edifício, enquanto entidade, ou através das suas componentes individuais. Só então poderá o seu trabalho ser imbuído do espírito arquitectónico que perdeu enquanto "arte de salão".»

Walter Gropius, Bahaus Manifesto and Program (1919). 

fotografia: filipe sousa | 4 junho 2019


Moura, Rua 5 de Outubro 15 A

«Comecei e terminei uma viagem de quarenta e dois dias à volta do meu quarto. As observações interessantes que fiz, e o prazer contínuo que experimentei ao longo do caminho, levaram‑me a desejar torná‑la pública; a certeza de ser útil fez com que tomasse esta decisão. O meu coração sente um contentamento inexprimível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um meio seguro contra o tédio e um alívio para os males de que padecem. O prazer que se sente ao viajar no próprio quarto está ao abrigo da inveja inquieta dos homens; é independente da fortuna. Terá uma pessoa de ser realmente assaz infeliz, assaz abandonada, para não ter um reduto onde possa recolher‑se e esconder‑se de toda a gente? Aqui estão todos os preparativos da viagem.
(...)
O meu quarto situa‑se a quarenta e cinco graus de latitude, segundo as medições do padre Beccaria; está orientado no sentido nascente‑poente; forma um paralelogramo com trinta e seis passos de perímetro rasando a parede muito de perto. A minha viagem, no entanto, terá maior extensão, visto que irei atravessá‑lo amiúde de um lado ao outro, ou então na diagonal, sem seguir regra ou método. — Farei mesmo ziguezagues e todas as linhas possíveis em geometria se houver necessidade.»

Xavier de Maistre, Viagem à volta do meu quarto seguido de Expedição nocturna à volta do meu quarto (Voyage autour de ma chambre (1795) / Expédition nocturne autour de ma chambre (1825), trad. Carlos Sousa Almeida, Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2015, pp, 15, 21.

fotografia: filipe sousa | 21 agosto 2011

Évora, Rua do Cardeal Rei 6

«Repetia-se no Liceu a Universidade de Coimbra como eu a ia guardando para sempre. Mas era como se o tempo habitasse os claustros de mais longe, talvez pelo silêncio dessa manhã despovoada, talvez pela imensidão da planície, que lhe dava um ar de ruína. Um empregado escuro olhou-me vagarosamente, longo bigode caído, olhos redondos de pasmo como os de um retrato egípcio. Adiantei a minha identidade, o homem atravessou uma sala para me anunciar ao reitor. Mas o reitor não estava. Pela porta entreaberta vi apenas um grande cão perdigueiro que adormecia o seu tédio sobre uma esteira.  A presença do cão dava ao empregado a certeza de que o reitor já viera. Apareceria portanto dentro em pouco. E eu saí de novo para o claustro. Havia no centro um jardim tratado, em cujos canteiros verdes morriam as últimas rosas de Verão. Sobre um pequeno lago erguia-se uma taça de mármore onde vinham pombos beber. Até que, para o silêncio de uma porta à entrada, ouvi uma forte descarga de água e um homem alto apareceu. Segui-o com os olhos, convencido de que era enfim o reitor. E, com efeito, o homem alto e vagaroso abriu uma porta secreta e entrou no edifício. Fui de novo à secretaria e o empregado sem uma palavra, penetrou na reitoria para me anunciar. Mas eu já estava ali à porta à espera de um aviso.
-Que faça o favor de entrar - ouvi de dentro.
Entrei, cumprimentei, disse o meu nome:
-Alberto Soares.
-Doutor Alberto Soares. O novo professor do 1º grupo. Professor efectivo. Em que liceu esteve este ano? Mas sente-se. Tem aí essa cadeira.
Sentei-me. Tinha feito apenas o serviço de exames desse ano. Em Coimbra.
-É portanto o primeiro liceu em que ensino - acrescentei.»

Vergílio Ferreira, Aparição, Editorial Verbo, Lisboa, 1971, p. 20. 

fotografia: filipe sousa | 10 setembro 2019

Évora, Rua Romão Ramalho 59

FOGO POSTO

I

Estou no centro do país, rodeado de incêndios.
Os pinheirais em fogo esbraseiam o ar.
Reguei o telhado e o quintal por que as velhas são muitas.
A vizinha cega, sem qualquer progresso, vai tocando o seu órgão Tornado 4.
A irmã apanha velhas, mostra-mas na mão,
apagadas ou parecendo ou quase,
e fala do carteiro - motorizada aqui,
saco acolá, sapato mais além -
que, presuntivo pirómano, a si mesmo se teria apagado nas águas do Tejo.

II 

O aeroplano da lista vermelha é que semeia fogo.

Von Richthofen - passe-montanha, óculos «à aviador», dentes cerrados -
é que vem semear o fogo no reino do verde pino.

Abatido em 18, ressurgiu
com o estampido do guarda-chuva que se abre
e - pano, arame, madeira - ganha altura
para, numa vrille desaparafusada,
vir castigar-nos com sua espada de fogo.

Disse Deus: - Ó aviador, vai-me a essa gente remota
e avia-lhes uns fogos que se vejam!

Polegar para baixo, Von Richthofen
incendiou milhares de hectares em Portugal.
Sua lista vermelha (laranja? limão?)
é vista com frequência na zona centro do país.

Disse Deus: - Basta. Já sinto calor na cara.

Este, que foi um herói ao serviço do Kaiser
- Cruz da Águia Vermelha
  Cruz da Águia Negra
  Cruz de Ferro -,
descer, quando Deus quer, a incendiário de pinhais?

Credo, custa-me a crê-lo!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (As horas já de números vestidas,1981), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, pp. 470-471.


fotografia: filipe sousa | 7 agosto 2019



Ponta do Escalvado (posto de vigia da baleia), Várzea dos Açores

«1.
(...)
11 E eles disseram-lhe: «Que te faremos para que o mar desista de nós?» ˂Isto˃ porque o mar continuava a vir e fazia levantar uma ondulação ainda maior.
12 E Jonas disse-lhes: «Levantai-me e atirai-me ao mar, e o mar desistirá de vós. Pois eu pensei que é por causa de mim que esta ondulação enorme está sobre vós.» 
13 E os homens esforçavam-se para regressar à terra, mas não conseguiam, porque o mar continuava a vir e a levantar-se mais contra eles.
14 E eles clamaram ao Senhor e disseram: «Não, Senhor! Que não pereçamos por causa da vida deste homem. E não ponhas sobre nós sangue justo, porque Tu, Senhor, procedeste como querias.» 
15 E pegaram em Jonas e atiraram-no ao mar; e o mar parou a sua agitação. 16 E os homens temeram o Senhor com grande temor; e sacrificaram um sacrifício; e oraram orações. 

2.
1 E o Senhor ordenou a um grande ser marinho que engolisse Jonas. E Jonas esteve nas entranhas do ser marinho durante três dias e três noites.
2 E Jonas rezou ao Senhor seu Deus a partir das entranhas do ser marinho; 3 e disse:
«Gritei em minha aflição ao Senhor meu Deus;
E Ele ouviu-me.
Das entranhas do Hades ouviste meu grito e minha voz.
4 Atiraste-me para ˂as˃ profundezas
Do coração do mar; e os rios me cercaram.
Todas as Tuas ondas e as Tuas vagas
Passaram por cima de mim.
5 E eu disse: "Fui afastado dos Teus olhos."
Será que eu olhe de novo
Para o Teu templo sagrado?
6 Derramou-se água à minha volta até à alma;
O abismo mais fundo me rodeou.
A minha cabeça decaiu
Para dentro das fendas das montanhas.
7 Desci à terra, cujas trancas me detêm, eternas;
E que suba a ruína da minha vida, ó Senhor meu Deus!
8 Quando a minha alma me abandonava,
Lembrei-me do Meu Senhor.
E que chegue a ti minha oração,
Ao Teu templo santo.
9 Os que dão importância a coisas vãs e falsas
Abandonaram a sua própria misericórdia.
10  Porém eu, com voz de louvor e de reconhecimento
Sacrificarei para Ti.
O que jurei ˂sacrificar˃
Pagar-Te-ei a Ti, Senhor, pela ˂minha˃ salvação

11  E foi ordenado ao ser marinho; e atirou Jonas para fora, para cima de ˂terra˃ seca. »

Bíblia - Antigo Testamento, Os Livros Proféticos, Livro de Jonas, trad. do texto grego Frederico Lourenço, Quetzal Editores, Lisboa, 2017, vol. III, pp. 180-183.


fotografia: filipe sousa | 21 julho 2016

Cabroeira

«A pedra representa o êxtase absoluto, a serenidade absoluta, o estado morto e angélico das coisas.»

«Agir é construir, pedra a pedra, gota a gota de suor, e destruir com a rapidez das detonações espantosas.»

«Agir é construir, destruindo.»

Teixeira de Pascoaes, Aforismos, selecção e organização de Mário Cesariny, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998, pp. 26, 32.

fotografia: filipe sousa | 31 agosto 2019

Berlin / Berlim, Tempelhofer Feld

«Letreiro encontrado ao lado duma bota rota e abandonada:
Não a vendo nem a remendo. Dou-a a quem doer.»

Alexandre O'Neill, «Seixos» in Poesias Completas (As horas já de números vestidas, 1981), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 451.

«Não te ataques com os atacadores dos outros.
Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.
O mesmo deves fazer com os açaimos.

E com os botões.»

Alexandre O'Neill, «Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes» in Poesias Completas (A saca de orelhas, 1979), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 368.


fotografia: filipe sousa | 5 junho 2019


EM 522

Alvenaria de pedra seca; Alvenaria insossa

«Um muro, em senso comum, é um conjunto de pedras em altura.
Os muros ao longo da História serviram para:
Defender | muralhas
Proteger | diques
Abrigar | abóbadas
Transportar | aquedutos
Conter | de suporte
Significar | pirâmides ou arcos do triunfo
Demarcar | vizinhança
Decorar | volutas
Suportar | Schinkel
Evocar | Mies
Ver por | casa da mãe do Corbusier
Serem vistos | Vila Adriana
Receber | esculturas do Parthenon
Subir descer | escadas
Ventilar | chaminés do Palladio
Passar | pontes

Os muros são quase toda a história da Arquitectura.
Hoje é impossível usá-los (desenhá-los) na sua plena função (estática). (...)
Os muros estão hoje a desaparecer, são uma espécie mineral em vias de extinção. Devemos estudá-los, classificá-los, tratá-los para os devolver de novo à sua geografia. (...)
Os muros não podem cair, nem ser demolidos (nem o de Berlim), pois são a nossa "casa".»

Eduardo Souto de Moura, Porto, 19 Setembro 2002.

fotografia: filipe sousa | 29 agosto 2019

Azinhaga entre Porto da Espada e Odres

Perguntai ao muro

Muro, em que meditas,
ao longo da estrada, por estas quintas,
casas, ermos, entre paixões
de alma dos espectros
presentes e vindouros? E os vivos, 
porque se escondem
por trás da tua fronte alta,
quieta, seca, que cobiça os astros,
sem saber que o teu corpo
de xisto corre, avança,
mas não pode soltar-se da Terra
e alcançar o Alto?

Fiama Hasse Pais Brandão, As Fábulas, Edições Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2002, p.18.

fotografia: filipe sousa | 29 agosto 2019