Évora, Rua Romão Ramalho 59

FOGO POSTO

I

Estou no centro do país, rodeado de incêndios.
Os pinheirais em fogo esbraseiam o ar.
Reguei o telhado e o quintal por que as velhas são muitas.
A vizinha cega, sem qualquer progresso, vai tocando o seu órgão Tornado 4.
A irmã apanha velhas, mostra-mas na mão,
apagadas ou parecendo ou quase,
e fala do carteiro - motorizada aqui,
saco acolá, sapato mais além -
que, presuntivo pirómano, a si mesmo se teria apagado nas águas do Tejo.

II 

O aeroplano da lista vermelha é que semeia fogo.

Von Richthofen - passe-montanha, óculos «à aviador», dentes cerrados -
é que vem semear o fogo no reino do verde pino.

Abatido em 18, ressurgiu
com o estampido do guarda-chuva que se abre
e - pano, arame, madeira - ganha altura
para, numa vrille desaparafusada,
vir castigar-nos com sua espada de fogo.

Disse Deus: - Ó aviador, vai-me a essa gente remota
e avia-lhes uns fogos que se vejam!

Polegar para baixo, Von Richthofen
incendiou milhares de hectares em Portugal.
Sua lista vermelha (laranja? limão?)
é vista com frequência na zona centro do país.

Disse Deus: - Basta. Já sinto calor na cara.

Este, que foi um herói ao serviço do Kaiser
- Cruz da Águia Vermelha
  Cruz da Águia Negra
  Cruz de Ferro -,
descer, quando Deus quer, a incendiário de pinhais?

Credo, custa-me a crê-lo!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (As horas já de números vestidas,1981), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, pp. 470-471.


fotografia: filipe sousa | 7 agosto 2019



Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.