fotografia: filipe sousa | 19 outubro 2019 |
Lyon, Rue Saint Jean 6
TOMA TOMA TOMA
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.
O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.
Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.
Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.
Alexandre O'Neill, Poesias Completas (A Saca de Orelhas, 1979), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 349.
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.
O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.
Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.
Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.
Alexandre O'Neill, Poesias Completas (A Saca de Orelhas, 1979), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 349.
fotografia: filipe sousa | 17 setembro 2019 |
Mértola, rio Guadiana
«São muitas as especies de peixe que habitam e frequentam o rio Guadiana, e a costa de Villa Real Santo Antonio, desde Cacella até à ponte de Santo Antonio, e d'aqui até Mertola. Algumas d'estas especies vivem constantemente no rio, e outras procuram-o nos mezes da primavera e verão, epocha em que desovam, saíndo depois para o mar, e deixando as crias no rio, desenvolvendo-se.
Segundo as informações que colhi, parece que havia antigamente maior abundancia de quasi todas as especies, porém actualmente, e de alguns annos a esta parte, tem havido diminuição, tendo mesmo desapparecido, quasi por completo, algumas classes.
Os pescadores d'este rio querem attribuir a falta ou diminuição do peixe às aguas saídas das minas de cobre existentes nas duas margens do rio, e as quaes são mina de S. Domingos na margem portuguesa, e as minas Lagunazo, Cabeza del Pasto, e Vuelta Falsa na margem hespanhola.
(...)
Quadro Indicativo das Differentes Especies de Peixe que habitam e frequentam o rio e a costa no districto maritimo de Villa Real de Santo Antonio
Bárbo - Existia em grande quantidade em todo o rio; porém, de alguns annos para hoje, tem diminuido sensivelmente, principalmente no inverno. É peixe só do rio. Encontra se ainda em Mertola e para o N. d'este ponto, e em mais abundancia no verão. Vive sempre no rio e nos pontos lodosos. Desova em abril e maio, proximo das margens de cascalho.
Bordállo - Havia grande abundancia d'este peixe. Tem diminuido bastante. Encontra-se mais no verão que no inverno, epocha em que quasi desapparece. Vive só no rio. Desova em abril e maio, procurando as margens de lodo, onde parece que vive.
(...)
Boga - Existe em grande quantidade em todo o rio, quer de verão, quer de inverno. Parece crear-se do lodo. Desova em janeiro, fevereiro e março, procurando os pontos em que a agua corre com mais violencia, e os menores fundos junto às margens.
(...)
Eiró - Existe em grande quantidade n'este rio, de Alcoutim para o N. do rio. É pescada mais de verao que de inverno, em que apparece menos.
(...)
Lampreia - Apparece em Mertola e suas immediações de março em diante, e em regular quantidade, ainda que hoje mais diminuta que antigamente. Depois de desovar desapparece, deixando a creação nos mesmos pontos em que desova.
(...)
Mugem - Existe grande abundancia d'este peixe dentro d'este rio e na costa, de onde entra no rio adiante dos temporaes, e nas phases da lua, lua nova e lua cheia. Vive do lodo. Desova em março, abril e maio, nos fundos de pedra e nos de lodo.
(...)
Picão - É em tudo similhante ao barbo, porém de menores dimensões. Existe, em grande quantidade em Mertola e suas imediações. É peixe do rio. Desova em abril e maio, nas margens de cascalho.
(...)
Peixe rei - Apparece algumas vezes dentro do rio e só próximo da foz. Desova no verão, junto às pedras da margem.
(...)
Savel - Entra no rio em março, abril, maio e junho, dirigindo-se para o norte do rio, proximidades de Mertola, onde desova, saíndo depois para o mar no começo das chuvas, e portanto quando as ribeiras desaguam no rio. Alimenta-se, enquanto no rio, de diversos resíduos. Apparece hoje menos que n'outros tempos. Desova de março a junho, junto ao cascalho na margem.
Sabóga - Entra no rio ao mesmo tempo que o savel. Depois de desovar e deixando as crias no rio, desenvolvendo-se, sai para o mar de julho em diante. Passa o inverno no mar. Desova ao mesmo tempo que o savel e nas margens de cascalho.
Sôlho - Ha annos em que apparece em grande quantidade em Mertola e para o norte d'este ponto. Desova nas cascalheiras em abril e maio. Entra no rio em abril e maio, desova e volta para o mar, deixando as crias no rio. Já se tem apanhado crias d'este peixe, regularmente desenvolvidas, em novembro e dezembro.
Saltão - É em tudo similhante ao mugem, e é assim chamado pelos saltos que dá fora de agua como a tainha. Depois de desovar nos mezes de primavera, e tão sómente de Alcoutim para o norte, sai para o mar do mez de julho em diante.
(...)
Taínha - É o mesmo que o mugem, sendo contudo de maiores dimensões. Apparece no rio em quantidade regular. Desova dentro do rio nos mezes quentes.»
Alfredo Ghira, Relatório sobre a pesca marítima e fluvial e industria de pesca no Districto Marítimo de Villa Real de Santo Antonio, Imprensa Nacional, Lisboa, 1889, pp. 3, 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17.
Segundo as informações que colhi, parece que havia antigamente maior abundancia de quasi todas as especies, porém actualmente, e de alguns annos a esta parte, tem havido diminuição, tendo mesmo desapparecido, quasi por completo, algumas classes.
Os pescadores d'este rio querem attribuir a falta ou diminuição do peixe às aguas saídas das minas de cobre existentes nas duas margens do rio, e as quaes são mina de S. Domingos na margem portuguesa, e as minas Lagunazo, Cabeza del Pasto, e Vuelta Falsa na margem hespanhola.
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Quadro Indicativo das Differentes Especies de Peixe que habitam e frequentam o rio e a costa no districto maritimo de Villa Real de Santo Antonio
Bárbo - Existia em grande quantidade em todo o rio; porém, de alguns annos para hoje, tem diminuido sensivelmente, principalmente no inverno. É peixe só do rio. Encontra se ainda em Mertola e para o N. d'este ponto, e em mais abundancia no verão. Vive sempre no rio e nos pontos lodosos. Desova em abril e maio, proximo das margens de cascalho.
Bordállo - Havia grande abundancia d'este peixe. Tem diminuido bastante. Encontra-se mais no verão que no inverno, epocha em que quasi desapparece. Vive só no rio. Desova em abril e maio, procurando as margens de lodo, onde parece que vive.
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Boga - Existe em grande quantidade em todo o rio, quer de verão, quer de inverno. Parece crear-se do lodo. Desova em janeiro, fevereiro e março, procurando os pontos em que a agua corre com mais violencia, e os menores fundos junto às margens.
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Eiró - Existe em grande quantidade n'este rio, de Alcoutim para o N. do rio. É pescada mais de verao que de inverno, em que apparece menos.
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Lampreia - Apparece em Mertola e suas immediações de março em diante, e em regular quantidade, ainda que hoje mais diminuta que antigamente. Depois de desovar desapparece, deixando a creação nos mesmos pontos em que desova.
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Mugem - Existe grande abundancia d'este peixe dentro d'este rio e na costa, de onde entra no rio adiante dos temporaes, e nas phases da lua, lua nova e lua cheia. Vive do lodo. Desova em março, abril e maio, nos fundos de pedra e nos de lodo.
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Picão - É em tudo similhante ao barbo, porém de menores dimensões. Existe, em grande quantidade em Mertola e suas imediações. É peixe do rio. Desova em abril e maio, nas margens de cascalho.
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Peixe rei - Apparece algumas vezes dentro do rio e só próximo da foz. Desova no verão, junto às pedras da margem.
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Savel - Entra no rio em março, abril, maio e junho, dirigindo-se para o norte do rio, proximidades de Mertola, onde desova, saíndo depois para o mar no começo das chuvas, e portanto quando as ribeiras desaguam no rio. Alimenta-se, enquanto no rio, de diversos resíduos. Apparece hoje menos que n'outros tempos. Desova de março a junho, junto ao cascalho na margem.
Sabóga - Entra no rio ao mesmo tempo que o savel. Depois de desovar e deixando as crias no rio, desenvolvendo-se, sai para o mar de julho em diante. Passa o inverno no mar. Desova ao mesmo tempo que o savel e nas margens de cascalho.
Sôlho - Ha annos em que apparece em grande quantidade em Mertola e para o norte d'este ponto. Desova nas cascalheiras em abril e maio. Entra no rio em abril e maio, desova e volta para o mar, deixando as crias no rio. Já se tem apanhado crias d'este peixe, regularmente desenvolvidas, em novembro e dezembro.
Saltão - É em tudo similhante ao mugem, e é assim chamado pelos saltos que dá fora de agua como a tainha. Depois de desovar nos mezes de primavera, e tão sómente de Alcoutim para o norte, sai para o mar do mez de julho em diante.
(...)
Taínha - É o mesmo que o mugem, sendo contudo de maiores dimensões. Apparece no rio em quantidade regular. Desova dentro do rio nos mezes quentes.»
Alfredo Ghira, Relatório sobre a pesca marítima e fluvial e industria de pesca no Districto Marítimo de Villa Real de Santo Antonio, Imprensa Nacional, Lisboa, 1889, pp. 3, 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17.
fotografia: filipe sousa | abril 1990 |
Venezia / Veneza, Gran Canale, Ponte dell'Accademia
«A artéria central de Veneza é o Grande Canal, e desta incomparável via rápida brotam canais mais pequenos como veias, por onde flui todos os dias o sustento da cidade, como insulina no sistema de um diabético. Diz-se que há 177 canais, num total de 45 quilómetros. Seguem antigos cursos de água e serpenteiam em curvas imprevisíveis pela cidade, ora largos, belos e esplêndidos, ora de uma tortuosidade imprevisível. O Grande Canal tem três quilómetros de comprimento; 60 metros no ponto mais largo e 35 no mais apertado; tem uma profundidade média de dois metros e meio (quatro metros na Ponte do Rialto, segundo a Tabela do Almirantado); e anima-o um tráfego incessante. As outras vias aquáticas de Veneza são de uma importância infinitamente menor - têm uma largura média de três metros e meio e uma profundidade média que equivale à de uma banheira familiar de tamanho generoso.
(...)
Todos os dias, correm para os canais toneladas de porcaria que emprestam aos bairros decrépitos aquele fedor típico - meio de esgoto, meio da pedra em decomposição - que tanto repugna o turista mais enjoado, mas que proporciona ao amante de Veneza um prazer perverso e relutante.
(...)
Olhando de um terraço para os canais quando a maré está baixa, vê-se uma variedade extraordinária de entulho e escombros que a água esconde, brilhando como um falso mistério através do verde-água; e é horrível observar a moleza do leito do canal quando um bate-estacas inicia o seu trabalho.
Os venezianos nunca se deixaram intimidar por este substrato. No século XV, queimavam paus de incenso e enterravam perfumes e especiarias no solo para abafar o mau cheiro: mas ainda há pouco tempo até as famílias mais elegantes se banhavam com regularidade no Grande Canal, e diz-se que havia uma tabuleta junto à Ponte do Rialto avisando severamente os transeuntes de que era «Proibido Cuspir nos Banhistas».»
Jan Morris, Veneza (Venice, 1960), Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2009, pp. 161,162,164,165.
(...)
Todos os dias, correm para os canais toneladas de porcaria que emprestam aos bairros decrépitos aquele fedor típico - meio de esgoto, meio da pedra em decomposição - que tanto repugna o turista mais enjoado, mas que proporciona ao amante de Veneza um prazer perverso e relutante.
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Olhando de um terraço para os canais quando a maré está baixa, vê-se uma variedade extraordinária de entulho e escombros que a água esconde, brilhando como um falso mistério através do verde-água; e é horrível observar a moleza do leito do canal quando um bate-estacas inicia o seu trabalho.
Os venezianos nunca se deixaram intimidar por este substrato. No século XV, queimavam paus de incenso e enterravam perfumes e especiarias no solo para abafar o mau cheiro: mas ainda há pouco tempo até as famílias mais elegantes se banhavam com regularidade no Grande Canal, e diz-se que havia uma tabuleta junto à Ponte do Rialto avisando severamente os transeuntes de que era «Proibido Cuspir nos Banhistas».»
Jan Morris, Veneza (Venice, 1960), Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2009, pp. 161,162,164,165.
fotografia: filipe sousa | julho 2003 |
København / Copenhaga, Sankt Jakobs Gade 11
«Um nada fica a lembrar-se para sempre, nós alugávamos duas bicicletas, partíamos ao sol pela estrada fora. Já alguém falou do prazer de uma bicicleta? Mas tanta coisa dá prazer e não sabemos de quê. Andar, movimentar-nos, contemplarmos um horizonte marinho, como eu o via da Biblioteca. Ou sentarmo-nos à sombra num banco de jardim ou de esplanada. Ou tomar um duche quente ou frio. Ou mudar de roupa, sobretudo de lençóis. Ou cantarolar na banheira - há quem. Ou ver um espectáculo mas acompanhado. Ou. Andávamos de bicicleta - porque é que isso dá prazer? Muda-se de paisagem mas é o fruto do nosso esforço, sentimo-nos compensados. E há o triunfo do equilíbrio na aresta das duas rodas, todo o nosso corpo subtilizado nesse mínimo de suporte. E há a ascensão de nós nesse movimento alado. E há a simplicidade, quase o esquematismo dessa máquina de andar.»
Vergílio Ferreira, Para sempre, 3ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa, 1983, p. 216.
Vergílio Ferreira, Para sempre, 3ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa, 1983, p. 216.
fotografia: filipe sousa | agosto 2001 |
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