Lyon, Rue Saint Jean 6

TOMA TOMA TOMA

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos, 
mas para rachar as cabeças.

O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses  
matraquilhos da comédia humana.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (A Saca de Orelhas, 1979), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 349.


fotografia: filipe sousa | 17 setembro 2019

Anemzi

fotografia: filipe sousa | dezembro 1993

Mértola, rio Guadiana

«São muitas as especies de peixe que habitam e frequentam o rio Guadiana, e a costa de Villa Real Santo Antonio, desde Cacella até à ponte de Santo Antonio, e d'aqui até Mertola. Algumas d'estas especies vivem constantemente no rio, e outras procuram-o nos mezes da primavera e verão, epocha em que desovam, saíndo depois para o mar, e deixando as crias no rio, desenvolvendo-se.
Segundo as informações que colhi, parece que havia antigamente maior abundancia de quasi todas as especies, porém actualmente, e de alguns annos a esta parte, tem havido diminuição, tendo mesmo desapparecido, quasi por completo, algumas classes.
Os pescadores d'este rio querem attribuir a falta ou diminuição do peixe às aguas saídas das minas de cobre existentes nas duas margens do rio, e as quaes são mina de S. Domingos na margem portuguesa, e as minas Lagunazo, Cabeza del Pasto, e Vuelta Falsa na margem hespanhola.
(...)
Quadro Indicativo das Differentes Especies de Peixe que habitam e frequentam o rio e a costa no districto maritimo de Villa Real de Santo Antonio
Bárbo - Existia em grande quantidade em todo o rio; porém, de alguns annos para hoje, tem diminuido sensivelmente, principalmente no inverno. É peixe só do rio. Encontra se ainda em Mertola e para o N. d'este ponto, e em mais abundancia no verão. Vive sempre no rio e nos pontos lodosos. Desova em abril e maio, proximo das margens de cascalho.
Bordállo - Havia grande abundancia d'este peixe. Tem diminuido bastante. Encontra-se mais no verão que no inverno, epocha em que quasi desapparece. Vive só no rio. Desova em abril e maio, procurando as margens de lodo, onde parece que vive.
(...)
Boga - Existe em grande quantidade em todo o rio, quer de verão, quer de inverno. Parece crear-se do lodo. Desova em janeiro, fevereiro e março, procurando os pontos em que a agua corre com mais violencia, e os menores fundos junto às margens.
(...)
Eiró - Existe em grande quantidade n'este rio, de Alcoutim para o N. do rio. É pescada mais de verao que de inverno, em que apparece menos.
(...)
Lampreia - Apparece em Mertola e suas immediações de março em diante, e em regular quantidade, ainda que hoje mais diminuta que antigamente. Depois de desovar desapparece, deixando a creação nos mesmos pontos em que desova.
(...)
Mugem - Existe grande abundancia d'este peixe dentro d'este rio e na costa, de onde entra no rio adiante dos temporaes, e nas phases da lua, lua nova e lua cheia. Vive do lodo. Desova em março, abril e maio, nos fundos de pedra e nos de lodo.
(...)
Picão - É em tudo similhante ao barbo, porém de menores dimensões. Existe, em grande quantidade em Mertola e suas imediações. É peixe do rio. Desova em abril e maio, nas margens de cascalho.
(...)
Peixe rei - Apparece algumas vezes dentro do rio e só próximo da foz. Desova no verão, junto às pedras da margem.
(...)
Savel - Entra no rio em março, abril, maio e junho, dirigindo-se para o norte do rio, proximidades de Mertola, onde desova, saíndo depois para o mar no começo das chuvas, e portanto quando as ribeiras desaguam no rio. Alimenta-se, enquanto no rio, de diversos resíduos. Apparece hoje menos que n'outros tempos. Desova de março a junho, junto ao cascalho na margem.
Sabóga - Entra no rio ao mesmo tempo que o savel. Depois de desovar e deixando as crias no rio, desenvolvendo-se, sai para o mar de julho em diante. Passa o inverno no mar. Desova ao mesmo tempo que o savel e nas margens de cascalho.
Sôlho - Ha annos em que apparece em grande quantidade em Mertola e para o norte d'este ponto. Desova nas cascalheiras em abril e maio. Entra no rio em abril e maio, desova e volta para o mar, deixando as crias no rio. Já se tem apanhado crias d'este peixe, regularmente desenvolvidas, em novembro e dezembro.
Saltão - É em tudo similhante ao mugem, e é assim chamado pelos saltos que dá fora de agua como a tainha. Depois de desovar nos mezes de primavera, e tão sómente de Alcoutim para o norte, sai para o mar do mez de julho em diante. 
(...)
Taínha - É o mesmo que o mugem, sendo contudo de maiores dimensões. Apparece no rio em quantidade regular. Desova dentro do rio nos mezes quentes.»

Alfredo Ghira, Relatório sobre a pesca marítima e fluvial e industria de pesca no Districto Marítimo de Villa Real de Santo Antonio, Imprensa Nacional, Lisboa, 1889, pp. 3, 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17.

fotografia: filipe sousa | abril 1990

Venezia / Veneza, Gran Canale, Ponte dell'Accademia

«A artéria central de Veneza é o Grande Canal, e desta incomparável via rápida brotam canais mais pequenos como veias, por onde flui todos os dias o sustento da cidade, como insulina no sistema de um diabético. Diz-se que há 177 canais, num total de 45 quilómetros. Seguem antigos cursos de água e serpenteiam em curvas imprevisíveis pela cidade, ora largos, belos e esplêndidos, ora de uma tortuosidade imprevisível. O Grande Canal tem três quilómetros de comprimento; 60 metros no ponto mais largo e 35 no mais apertado; tem uma profundidade média de dois metros e meio (quatro metros na Ponte do Rialto, segundo a Tabela do Almirantado); e anima-o um tráfego incessante. As outras vias aquáticas de Veneza são de uma importância infinitamente menor - têm uma largura média de três metros e meio e uma profundidade média que equivale à de uma banheira familiar de tamanho generoso.
(...)
Todos os dias, correm para os canais toneladas de porcaria que emprestam aos bairros decrépitos aquele fedor típico - meio de esgoto, meio da pedra em decomposição - que tanto repugna o turista mais enjoado, mas que proporciona ao amante de Veneza um prazer perverso e relutante.
(...)
Olhando de um terraço para os canais quando a maré está baixa, vê-se uma variedade extraordinária de entulho e escombros que a água esconde, brilhando como um falso mistério através do verde-água; e é horrível observar a moleza do leito do canal quando um bate-estacas inicia o seu trabalho.
Os venezianos nunca se deixaram intimidar por este substrato. No século XV, queimavam paus de incenso e enterravam perfumes e especiarias no solo para abafar o mau cheiro: mas ainda há pouco tempo até as famílias mais elegantes se banhavam com regularidade no Grande Canal, e diz-se que havia uma tabuleta junto à Ponte do Rialto avisando severamente os transeuntes de que era «Proibido Cuspir nos Banhistas».»

Jan Morris, Veneza (Venice, 1960), Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2009, pp. 161,162,164,165.


fotografia: filipe sousa | julho 2003

København / Copenhaga, Sankt Jakobs Gade 11

«Um nada fica a lembrar-se para sempre, nós alugávamos duas bicicletas, partíamos ao sol pela estrada fora. Já alguém falou do prazer de uma bicicleta? Mas tanta coisa dá prazer e não sabemos de quê. Andar, movimentar-nos, contemplarmos um horizonte marinho, como eu o via da Biblioteca. Ou sentarmo-nos à sombra num banco de jardim ou de esplanada. Ou tomar um duche quente ou frio. Ou mudar de roupa, sobretudo de lençóis. Ou cantarolar na banheira - há quem. Ou ver um espectáculo mas acompanhado. Ou. Andávamos de bicicleta - porque é que isso dá prazer? Muda-se de paisagem mas é o fruto do nosso esforço, sentimo-nos compensados. E há o triunfo  do equilíbrio  na aresta das duas rodas, todo o nosso corpo subtilizado nesse mínimo de suporte. E há a ascensão de nós nesse movimento alado. E há a simplicidade, quase o esquematismo dessa máquina de andar.»

Vergílio Ferreira, Para sempre, 3ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa, 1983, p. 216.  


fotografia: filipe sousa | agosto 2001