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fotografia: filipe sousa | 9 novembro 2019 |
Futebol escreve-se com oito letras: Maradona!
«Mais tarde, em Buenos Aires, a televisão transmitiu o segundo ajuste de contas: a detenção em directo e ao vivo, como se fosse um jogo, para quem gostou de ver o espectáculo do rei nu que a polícia leva preso.
«É um doente», disseram. E disseram: «Está acabado.». O messias convocado para redimir a maldição histórica dos italianos do sul tinha sido, também, o vingador da derrota argentina na Guerra das Malvinas, através de um golo batoteiro e de outro golo fabuloso, que deixou os ingleses a girar como piões durante alguns anos; mas na hora da queda, o Pibe de Ouro passou a ser, apenas, um farsante agarrado ao pó e um putanheiro. Maradona tinha traído os miúdos e desonrado o desporto. Deram-no como morto.
Mas o cadáver levantou-se de um salto. Cumprida a penitência da cocaína, Maradona foi o bombeiro da selecção argentina que queimava as últimas possibilidades de chegar ao Mundial de 1994. Graças a Maradona chegou lá. E, nesse torneio, Maradona voltou a ser, novamente, como nos melhores tempos, o melhor de todos, quando rebentou o escândalo da efedrina.
A máquina do poder tomara-o de ponta. Ele não tinha papas na língua, isso tem o seu preço, esse preço paga-se com dinheiro à vista e sem descontos. E foi o próprio Maradona quem lhes deu a justificação, com a sua tendência suicida de se oferecer de bandeja aos seus muitos inimigos e com a sua irresponsabilidade infantil que o leva a cair em todas as ciladas que se abrem no seu caminho.
Os mesmos jornalistas que o acossam com microfones, censuram a sua arrogância e as birras, acusam-no de falar demais. Não deixam de ter razão; mas não é isso que não lhe perdoam; na verdade, não lhes agrada o que ele às vezes diz. Este fedelho repontão e exaltado tem o hábito de desferir golpes para cima. Em 1986 e em 1994, no México e nos Estados Unidos, denunciou a ditadura omnipotente da televisão, que obrigava os jogadores a derrear-se ao meio-dia, esturricando ao sol, e noutras milhentas ocasiões, ao longo de toda a sua acidentada carreira, Maradona disse coisas que agitaram as águas. Ele não foi o único jogador desobediente, mas foi a voz dele que deu ressonância universal às perguntas mais inconvenientes: Por que razão o futebol não é regido pelas leis universais do direito laboral? Havelange cala-se, ocupado com outros mesteres, e Joseph Blatter, burocrata da FIFA que nunca deu um pontapé numa bola mas que anda em limusinas de oito metros com motorista negro, limita-se a comentar:
-O último astro argentino foi Di Stéfano.
Quando Maradona foi, finalmente, expulso do Mundial de 1994, os campos de futebol perderam o seu rebelde mais clamoroso.. E perderam também um jogador fantástico. Maradona é incontrolável quando fala, mas muito mais quando joga: não há quem consiga prever as diabruras deste inventor de surpresas, que nunca se repete e que se diverte a desconcertar os computadores. Não é um jogador veloz, bezerro de pernas curtas, mas tem a bola corrida no pé e tem olhos no corpo todo. As suas artes malabares incendeiam o relvado. Ele pode decidir um jogo disparando um tiro fulminante de costas para a baliza ou servindo um passe impossível, de longe, cercado por milhares de pernas inimigas, e não há quem o pare quando se põe a fintar rivais.
No frígido futebol do fim de século, que exige vitórias e proíbe o prazer, este homem é um dos poucos que demonstram que a fantasia também pode ser eficaz.»
Eduardo Galeano, Futebol ao sol e à sombra (El fútebol a sol y sombra, 1995), trad. Helena Pitta, Antígona Editores Refractários, Lisboa, 2019, pp. 253-254.