fotografia: filipe Sousa | 12 março 2020 |
«Normalidade são armas e a América normal que realmente quer ser novamente grande. Depois há outra normalidade se a pele da pessoa é da cor errada e outra se tem instrução e outra ainda se acha que a instrução é lavagem ao cérebro e há uma América que acredita nas vacinas para as crianças e outra que diz que é uma vigarice e tudo aquilo em que uma normalidade é mentira para outra normalidade e todas elas estão na televisão conforme o sítio para onde se olha, de maneira que sim, é confuso. Estou a tentar a sério perceber qual dos istos é agora a América. Zap zap zap. Um homem com a cabeça num saco a ser morto por um homem de camisa despida. Um homem gordo de chapéu vermelho a berrar a homens e mulheres também gordos e também com chapéus vermelhos sobre a vitória, Temos pouca instrução e comemos de mais. Estamos cheio de orgulho por sabe-se lá que porra seja. Vamos às urgências de carro e mandamos a nossa Avozinha ir buscar as nossas armas e cigarros. Não precisamos da merda de aliados porque somos estúpidos e podem chupar nesta. Somos Beavis e Butt-Head sob esteroides. Bebemos Roundup pela lata. O nosso presidente parece um presunto de Natal e fala como Chucky. Somos a América, cabrão. Zap. Imigrantes a violarem todos os dias as nossas mulheres. Precisamos da Força Espacial por causa do Estado Islâmico Espacial. Zap. A normalidade é a Terra de Pernas para o Ar. (...)
Talvez, segundo a minha ínsula, seja assim que as coisas são nesta altura na América: que para alguns de nós o mundo tenha deixado de fazer sentido. Tudo pode acontecer. O aqui pode ser além, o então pode ser agora, o cimo pode ser o fundo e a verdade pode ser mentira. Está tudo a deslaçar e não há nada a que nos possamos agarrar. Rebentou tudo pelas costuras. Para alguns de nós, que começaram a ver aquilo que os outros são demasiado cegos para ver. Ou estão demasiado apostados em não ver. Para eles, é deixar andar, tudo como dantes, a Terra ainda é plana e ainda não há alterações climáticas. Lá em baixo na rua, há carros cheios de deixa-andares a circular, os peões deixa-andar vão para o trabalho, o fantasma de Woody Guthrie caminha pela sua fita de autoestrada a cantar esta terra foi feita para ti e para mim. Nem Woody ouviu as notícias do fim-do-mundo.»
Salman Rushdie, Quichotte, trad. J. Teixeira de Aguilar, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2019, pp. 177-178, 184-185.
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