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fotografia: filipe sousa | dezembro 1993
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Ontem, falei de burros. Hoje, falo de mulas, a propósito da cooperativa Mula. Que descobri há poucos dias, virtualmente.
A Mula apresenta-se como um projecto cooperativo, com epicentro no Barreiro, cujos princípios são a «autodeterminação e organização comunitária, para promover a participação local e social». Vale a pena espreitar a página no facebook (https://www.facebook.com/coopmula
) para perceber o alcance da sua intervenção em prol de um mundo melhor: cantina solidária, bar, mercearia, horta, programas culturais… Ademais, o nome é um achado; um trocadilho com a Mula da Cooperativa, do Max, a que deu um coice no telhado. Quem se lembra?
Não escondo que gosto particularmente de realidades híbridas, cruzadas, traçadas, mutantes, que dizem muito do que a mula é.
A fotografia foi tirada junto ao moinho de água que dista meia hora a pé da aldeia de Massou, em pleno Alto Atlas marroquino. O moleiro e o almocreve seguram uma mula pela arreata que transportou até ali os alforges cheios de cereal e que regressará com eles cheios de farinha. Nos finais de 1993, escasseando os transportes motorizados na região, era comum recorrer a muares para transporte de bens, mercadorias, pessoas e utilização na agricultura. Nós próprios alugámo-los em duas ocasiões para o acarreto das mochilas.
José Cardoso Pires completa o panegírico da mula.
««Chó, recruta, que fala o cabo. Mulas é preciso conhecê-las e saber levá-las aonde se quer. Há animal desses que se agarra a um arado que nem o boi mais valente. E para cavalgar no cascalho? E para acarretar esterco, lenha ou seja o que for?» Empinado sobre os companheiros, Três-Dezasseis conta que se não fossem as mulas nunca a gente de Álvaro poderia governar-se. «Sem as mulas, metade da minha terra andava com a outra metade às costas...Faço-me compreender?» Os recrutas aceitam, compreendem. Pelo que lhes chegara ao conhecimento do passado do cabo, Álvaro ficava nas voltas do penhascos da raia onde só as bestas de carga conseguiam chegar. Burros e mulas - as mulas, sobretudo, que são animais castigados e servo do pobre, embora rancorosos. Mas pode haver pior sorte do que ser criado do pobre? Haverá? Daí o ódio das mulas - destas da tropa ou de qualquer outro dono. Lá andam por Álvaro, coitadas; lá as vamos achar abrindo lume na rocha com os cravos das ferraduras, mergulhando em valados de tojo ou batendo trilhos de contrabandistas. E são bichos úteis, valiosíssimos, ainda que, como sabemos, alimentados de rancor.»
José Cardoso Pires, O hóspede de Job (1963), 2ª ed., Editora Arcádia, Lisboa, 1964, pp. 27-28.
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