София / Sófia, бул. княгиня Мария Луиза / Boulevard Knyaginya Maria Luiza

fotografia: filipe sousa | 24 junho 2022






 














A Bulgária moderna é um cadinho de culturas muito antigas, «que mergulham as suas raízes no confronto arcaico entre a civilização agrária do Sudeste e os invasores nómadas das estepes».
Um breve passeio, como o que realizei ontem, pelo centro de Sófia (a antiga Sérdica) é bem revelador da riqueza dessa amálgama cultural.

«O crisol búlgaro é muito mais antigo do que estas pitorescas mesclas balcânico-caucasianas, tem profundidades míticas maiores, mergulha as suas raízes no confronto arcaico entre a civilização agrária do Sudeste e os invasores nómadas das estepes. A Bulgária é um núcleo essencial da grande Eslávia, é de facto o território onde se constitui a língua de Cirillo e Método, paleo-eslava ou, como outros dizem, vetero-búlgara. Pelo seu lado os proto-búlgaros, provenientes de Altai, atravessam o Danúbio no século VII com Kahn Asparuh e fundam um poderoso império que põe várias vezes a saque o Império de Bizâncio, mas são pouco a pouco absorvidos pelos Eslavos, chegados um século antes, e que eles tinham começado por submeter. Amalgamam-se com os vencidos e adoptam a sua língua, são tragados pela grande força de assimilação e solidificação da civilização eslava que por vezes, nas suas origens, parece delegar noutros povos a função de guiar a sua expansão, como quando a eslavização é confiada aos Ávares, vitoriosos conquistadores rapidamente desaparecidos, que fazem progredir a cultura eslava e não a sua própria cultura.
Mas muito mais profundo do que este fundo eslavo sempre reemergente é o trácio, a vastíssima comunidade de povos que constitui o substrato de toda a civilização cárpato-danubiano-balcânica. Os Trácios, diz Anton Doncev - que escreveu, com uma pietas que inclui mesmo a herança turca, frescos épico-mítico sobre as origens do seu país -, são oceano, os proto-búlgaros, huno-gondoros e onoguros, que chegam do mar Cáspio e do mar de Azov, são a onda que agita e move o oceano originário, os Eslavos são a terra e a mão paciente que a amassa e lhe dá forma: os búlgaros modernos são a fusão dos três elementos.»

Claudio Magris, Danúbio (Danubio, 1986), trad. Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992, pp. 363.

София / Sófia, булевард Свети Наум / Boulevard Sveti Naum

fotografia: filipe sousa | 23 junho 2022

 















Como diria um famoso grupo de humoristas: «e agora algo completamente diferente».
O mesmo é dizer, bem-vindo a Sófia, bem-vindo à Bulgária!
Começo por referir que a memória mais longínqua que conservo da Bulgária é de uma fotografia de um guarda nacional publicada na extinta revista Pisca-Pisca, quando tinha 9, 10 anos. Durante algum tempo, aquela fotografia resumia todo o meu saber acerca desse distante país da Europa de Leste.
Diga-se, em abono da verdade, que o conhecimento entretanto reunido não vai muito mais além de uns quantos lugares-comuns sobre o assunto: numa parte da actual Bulgária viviam os Trácios; Spartacus, o famoso gladiador, era trácio; os búlgaros foram subjugados pelos turcos otomanos e ocupados pela Alemanha nazi e libertados dos dois opressores com a ajuda dos russos; a “moeda de troca” foi a integração da Bulgária no bloco comunista, também ele cerceador das liberdades individuais, até à queda do muro de Berlim; só há pouco mais de 30 anos, a Bulgária abraçou a democracia; integra a União Europeia e é o estado mais pobre dos 28; os búlgaros usam o alfabeto cirílico e o lev como moeda; os nomes deles acabam invariavelmente em “ov” e o delas em “ova”; destacam-se na halterofilia, no lançamento do peso e do dardo e no xadrez; Yordanov e Balakov, internacionais de futebol, foram jogadores do Sporting; e, claro, as vozes búlgaras.
Como refere Claudio Magris no seu «Danúbio», continua a pairar sobre a Bulgária um grande desconhecimento, que a torna «o mais ignoto de todos os países de Leste, um lugar onde raramente se vai...»

«Em 1860 Guillaume Lejean, cientista e viajante francês, subia o Nilo Branco, até Gondokoro, e o Nilo Azul, desenhando, como dizem as enciclopédias, uma das primeiras cartas fiáveis do rio. Entre 1857 e 1870 percorreu em contrapartida a Península Balcânica, produzindo um imponente material cartográfico em 49 grandes folhas, vinte das quais revistas e completas. Mas o seu amigo e colega vienense Felix Philipp Kanitz lamentava, ao viajar pela Bulgária em 1875, que os mapas geográficos do país fossem inexactos e imprestáveis e contivessem, no que se referia a territórios próximos do Danúbio, localidades imaginárias sem assinalar em compensação outras existentes, e concordava assim com o professor Kiepert, que proclamava que a Bulgária era o mais desconhecido dos países da Europa Oriental. Outros cartógrafos inventavam cidades ou deslocavam-nas centenas de quilómetros, desviavam nos seus mapas os cursos dos rios e atribuíam-lhes uma foz arbitrária. Kanitz corrigia os meritórios mapas de Lejean, menos exactos do que os do Nilo, e podia por isso definir a Bulgária como «uma terra perfeitamente incógnita»; o Danúbio era mais desconhecido do que o Nilo e do que as gentes do seu curso inferior, reiterava o professor Hyrtl, e sabia-se menos dele do que das ilhas dos mares do Sul.
A cartografia realizou indubitavelmente progressos decisivos, mas a Bulgária, de todos os países do Leste, continua ainda hoje a ser o mais ignoto, um lugar onde raramente se vai e que surge na ribalta como palco de intrigas improváveis e inverificáveis, pistas fantasiosas de conspirações sensacionais, acusações desmentidas de genocídio, entrevistas concedidas por representantes da minoria turca dados como assassinados, pela imprensa internacional. Os comunistas ocidentais, quando ouvem dizer que alguém - especialmente alguém não inscrito no partido - esteve na Bulgária, apressam-se a mostrar uma comiseração irónica e distante e sobretudo uma surpresa maravilhada pelas suas impressões positivas.»

Claudio Magris, Danúbio (Danubio, 1986), trad. Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992, p. 353.

Bergamo / Bérgamo, Via Sudorno

fotografia: filipe sousa | 21 junho 2022

 






















Bérgamo.
Para quem não se recorda, foi o epicentro da primeira vaga de pandemia de Covid-19 em Itália, e na Europa também. Só nos meses de Fevereiro e Março de 2020 morreram nesta cidade lombarda cerca de 4.500 pessoas.
Passaram entretanto dois anos.
Quem a viu em 2020, através dos relatos e lentes dos jornalistas da SkyNews – que nos deram conta do inferno vivido nos hospitais, das morgues improvisadas, dos funerais realizados ao mínimo ou dos cemitérios e crematórios sobrelotados –, e quem a vê em 2022, como eu a vi hoje, "renascida das cinzas", exibindo o mesmo encanto que lhe notei há dezoito anos quando aqui estive pela primeira vez. É como o dia e a noite. O paraíso que sucede ao inferno.
Guiado por este simbolismo, pus-me também eu a caminho do paraíso. Da Città Bassa à Città Alta, preferindo o esforço de subir a escadaria da Via Salita di Scaletta, entre muros antigos e frondosas árvores, à comodidade do funicular disponível perto da porta San Giacomo.
Para lá da Città Alta encontrei finalmente a redenção total, no Parco dei Colli di Bergamo, lembrando os versos de Dante Alighieri:

«E se le fantasie nostre son basse
a tanta altezza, non è maraviglia;
ché sopra 'l sol non fu occhio ch'andasse.»

«Que nossa fantasia se abaixasse
a tanta altura assim não maravilha;
que sobre o sol não houve olhar que andasse.»

Dante Alighieri, A Divina Comédia (La Divina Commedia, sec. XIV), Parte III - Paraiso, Canto X, versos 46-48, trad. Vasco Graça Moura, 6ª ed., Bertrand Editora, 2002, pp. 676-677.

PS. Esforço baldado e redenção efémera é o que cabe dizer no final desta jornada, porquanto na descida à Città Bassa acabei por ser traído por um prazer mundano, que deitou tudo a perder!, ao passar pelo restaurante La Marianna, a pátria do gelado Stracciatella!

Bologna / Bolonha, Strada Maggiore

fotografia: filipe sousa | 2 junho 2022

 
























Não faltam epítetos a Bolonha. «Dotta», «turrita», «città dei portici», «grassa», «rossa». Mas vamos por partes.
«La dotta»: criada em 1088, a universidade de Bolonha é a mais antiga da Europa, continuando a ser uma referência pela qualidade do ensino e pela sua integração na vida da cidade.
«La turrita»: hoje são menos de vinte (incluindo as torres Asinelli, a maior, com 96 metros, e Garisenda, a mais inclinada), mas, no tempo de Dante, Bolonha chegou a ter 180 torres apontadas ao céu.
«La città dei portici»: são cerca de 40 quilómetros de pórticos e arcadas, que fazem de Bolonha a maior cidade coberta da Europa.
«La grassa»: sempre se comeu muito e bem em Bolonha, considerada a capital gastronómica de Itália.
«La rossa»: as cores dos telhados e fachadas em declinações de vermelho e ocre, mas também o vermelho dos automóveis Ferrari e Maserati e das motos Ducatti, produzidos na região, e ainda o facto de ser o bastião da esquerda em Itália.
Foram estas as coordenadas do meu périplo de dois dias pela cidade de Pasolini (este ano comemora-se o centenário do seu nascimento), facilitado ontem pela ausência de carros nas ruas devido à celebração do Dia Nacional de Itália, a «Festa della Repubblica Italiana».
Regresso a Saramago, também ele nascido há cem anos, também ele rendido aos encantos de Bolonha:

«Cidade dos quatro cognomes - «dotta» (sábia), «turrita» (que tem torres), «città dei portici» (cidade das arcadas), «grassa» (gorda) - Bolonha é sedutora, feminina, macia. Aceitem-se os lugares comuns, que melhor dizem que mil palavras raras. E é também uma cidade muito velha que cometeu o milagre de fixar as suas antiguidades, defendendo-as da rasoira do turista, que tudo uniformiza: veja-se a Casa Isolani, uma habitação particular da Strada Maggiore, datada do século XII, onde vivem pessoas e onde o turista, felizmente, não é admitido. Fico também a pensar, a imaginar o que seria a Bolonha que Dante viu, por alturas de 1287, com as suas cento e oitenta torres nobiliárias, disputando em altura e primazia.»

José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia - Ensaio de romance, 1ª edição, Moraes Editores, Lisboa, p. 183.