fotografia: filipe sousa | 23 junho 2022 |
Como diria um famoso grupo de humoristas: «e agora algo completamente diferente».
O mesmo é dizer, bem-vindo a Sófia, bem-vindo à Bulgária!
Começo por referir que a memória mais longínqua que conservo da Bulgária é de uma fotografia de um guarda nacional publicada na extinta revista Pisca-Pisca, quando tinha 9, 10 anos. Durante algum tempo, aquela fotografia resumia todo o meu saber acerca desse distante país da Europa de Leste.
Diga-se, em abono da verdade, que o conhecimento entretanto reunido não vai muito mais além de uns quantos lugares-comuns sobre o assunto: numa parte da actual Bulgária viviam os Trácios; Spartacus, o famoso gladiador, era trácio; os búlgaros foram subjugados pelos turcos otomanos e ocupados pela Alemanha nazi e libertados dos dois opressores com a ajuda dos russos; a “moeda de troca” foi a integração da Bulgária no bloco comunista, também ele cerceador das liberdades individuais, até à queda do muro de Berlim; só há pouco mais de 30 anos, a Bulgária abraçou a democracia; integra a União Europeia e é o estado mais pobre dos 28; os búlgaros usam o alfabeto cirílico e o lev como moeda; os nomes deles acabam invariavelmente em “ov” e o delas em “ova”; destacam-se na halterofilia, no lançamento do peso e do dardo e no xadrez; Yordanov e Balakov, internacionais de futebol, foram jogadores do Sporting; e, claro, as vozes búlgaras.
Como refere Claudio Magris no seu «Danúbio», continua a pairar sobre a Bulgária um grande desconhecimento, que a torna «o mais ignoto de todos os países de Leste, um lugar onde raramente se vai...»
«Em 1860 Guillaume Lejean, cientista e viajante francês, subia o Nilo Branco, até Gondokoro, e o Nilo Azul, desenhando, como dizem as enciclopédias, uma das primeiras cartas fiáveis do rio. Entre 1857 e 1870 percorreu em contrapartida a Península Balcânica, produzindo um imponente material cartográfico em 49 grandes folhas, vinte das quais revistas e completas. Mas o seu amigo e colega vienense Felix Philipp Kanitz lamentava, ao viajar pela Bulgária em 1875, que os mapas geográficos do país fossem inexactos e imprestáveis e contivessem, no que se referia a territórios próximos do Danúbio, localidades imaginárias sem assinalar em compensação outras existentes, e concordava assim com o professor Kiepert, que proclamava que a Bulgária era o mais desconhecido dos países da Europa Oriental. Outros cartógrafos inventavam cidades ou deslocavam-nas centenas de quilómetros, desviavam nos seus mapas os cursos dos rios e atribuíam-lhes uma foz arbitrária. Kanitz corrigia os meritórios mapas de Lejean, menos exactos do que os do Nilo, e podia por isso definir a Bulgária como «uma terra perfeitamente incógnita»; o Danúbio era mais desconhecido do que o Nilo e do que as gentes do seu curso inferior, reiterava o professor Hyrtl, e sabia-se menos dele do que das ilhas dos mares do Sul.
A cartografia realizou indubitavelmente progressos decisivos, mas a Bulgária, de todos os países do Leste, continua ainda hoje a ser o mais ignoto, um lugar onde raramente se vai e que surge na ribalta como palco de intrigas improváveis e inverificáveis, pistas fantasiosas de conspirações sensacionais, acusações desmentidas de genocídio, entrevistas concedidas por representantes da minoria turca dados como assassinados, pela imprensa internacional. Os comunistas ocidentais, quando ouvem dizer que alguém - especialmente alguém não inscrito no partido - esteve na Bulgária, apressam-se a mostrar uma comiseração irónica e distante e sobretudo uma surpresa maravilhada pelas suas impressões positivas.»
A cartografia realizou indubitavelmente progressos decisivos, mas a Bulgária, de todos os países do Leste, continua ainda hoje a ser o mais ignoto, um lugar onde raramente se vai e que surge na ribalta como palco de intrigas improváveis e inverificáveis, pistas fantasiosas de conspirações sensacionais, acusações desmentidas de genocídio, entrevistas concedidas por representantes da minoria turca dados como assassinados, pela imprensa internacional. Os comunistas ocidentais, quando ouvem dizer que alguém - especialmente alguém não inscrito no partido - esteve na Bulgária, apressam-se a mostrar uma comiseração irónica e distante e sobretudo uma surpresa maravilhada pelas suas impressões positivas.»
Claudio Magris, Danúbio (Danubio, 1986), trad. Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992, p. 353.
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