Safara, Rua Doutor Francisco Brito Simões Miranda

fotografia: filipe sousa | agosto 2006

 

















O último dos caleiros (embora todos os mourenses o sejam por apodo, naturais mas também adoptivos, bem entendido!).
Ó mulher cal braaaanca… Olhem que é cal branca mulheeeer…

«Em tempo de inverno todos os dias o fumeiro do lume era caiado. Quando necessário caiavas os baixinhos e anualmente toda a casa por dentro e também por fora se não estivesses de luto carregado, que até nisso se te manifestava o sentimento. Se a cal ia estando escassa no caqueiro começavas a andar inquieta, suspirando por um caleiro. A vila de Moura detinha o exclusivo do abastecimento de cal branca de grande parte da margem esquerda do Guadiana e um bom número de filhos seus percorriam as povoações no comércio da cal, que transportavam em carros acogulados das famosas pedras, puxados por parelhas de muares mais ou menos estafadas. Assim, não só pelo azeite, mas também pela cal, ficou famosa a notável vila, hoje digna cidade, ao ponto de cá na região os mourenses serem apodados de caleiros quando se pretende com eles fazer ironia.
Aqueles dignos profissionais pareciam todos escolhidos a dedo. Dotados de prodigiosas vozes de tremenda intensidade, embora de alturas e timbres diversos, a letra era sempre a mesma: Ó mulher cal braaaanca... Olhem que é cal branca mulheeeer... . Com esta lenga lenga acordei fulo, muitas vezes, às seis da manhã. Mas elas, afanosas, sobraçando o espartão adequado, lá iam comprar a arroba de cal, pesada na balança romana do vendedor, cuja língua se destravava se lhe chamavam a atenção para a escassez do peso ou para a má qualidade do produto. Brutos que nem caleiros, salvo seja quem não é.»

Bento Caldeira, «Oh Mulher Cal Braaaanca», Memórias de um médico (Clinicando no agro alentejano), Edições Colibri, Lisboa, 1992, pp. 48-49.

Praia da Rocha

fotografia: filipe sousa | agosto 1990

 















Com a Feira do Livro de Lisboa à porta, revisito esta apropriada memória. Subíamos, eu e a Clara, o Parque Eduardo VII, no dia 10 de Junho de 1991, quando, ao passarmos por um dos stands da Caminho, somos surpreendidos com a presença de Manuel da Fonseca. O escritor não se encontrava no exterior do stand, na área reservada para autógrafos e dedicatórias dos autores, como de costume. Estava, sim, no interior, atrás do balcão, sozinho, fazendo as vezes de um vendedor, recomendando os seus, mas também outros livros de outros autores da editora, e por isso o espanto de o vermos naquele papel e naquele sítio. Entabulámos conversa e acabámos a falar do Alentejo. Ele, do seu torrão natal: Santiago do Cacém. Nós, da intenção de trocarmos Lisboa pelo distrito de Portalegre, sem pressentirmos que o futuro há muito estava traçado e passaria por Moura, mais a sul. Antes da despedida, entre votos de sorte e felicidade, comprámos as suas Crónicas Algarvias, que fez questão de autografar “muito afectuosamente”. Trata-se de um dos melhores livros que conheço sobre o Algarve e um dos melhores sobre viagens escrito em português. Reúne as crónicas publicadas no vespertino A Capital, de 1 a 16 de Agosto de 1968. Vindo a lume apenas em 1986, inclui as partes cortadas pela Censura. A obra é pioneira na abordagem do que viria a ser o boom turístico do Algarve. A sua divisa resume-se a “o menos possível de paisagem”, pois “o que interessa são as pessoas”, como nesta passagem sobre a praia da Rocha:

«Para lá das arribas avermelhadas, a praia, que o bater das marés abriu às meias luas e cerca os leixões sanguíneos na enchente, corre, branca-e-oiro, para os lados de Alvor.
Em frente dos toldos, deitados na areia, corpos torram ao calor deste meio-dia de sol. Na água, há gente ao banho e à braçada. Cabeças que surgem, desaparecem ao compasso da vaga, que é como uma funda respiração do mar.
Como o bar da esplanada está fechado, e apenas funciona a venda de bilhetes-postais ilustrados e recordações da província, entro na casa de chá. Sento-me na única mesa livre da fila que dá para a praia, e peço uma cerveja. A meu lado, o bebé que dorme no carrinho é pretexto para a conversa com a senhora de idade. É a avó, como ela me disse. Os pais do bebé estão na praia. Mas devem chegar daí a pouco, pois vão sendo horas de ir almoçar.
Depois de umas tantas frases próprias de tais circunstâncias, refiro-me à praia da Rocha num certo sentido.
-Compreende-se - diz-me a senhora. -É a praia de maiores tradições de todo o Algarve. Há muitas moradias de portugueses. Muitos não são daqui, mas são moradias antigas que vão passando de pais para filhos. Também de ingleses e, agora, de alemães. É muito procurada por uma certa gente, a praia da Rocha. Como lhe disse, isso entende-se. Repare como tudo isto convida à calma e ao sossego. Na verdade é de férias o tempo que aqui se passa.
Eu, da minha mesa, e a senhora, da mesa ao lado, olhamos para o mar, para o azul intenso do céu, para o doirado da areia da praia.
-É a minha praia desde criança - recomeça a senhora de idade. -Os meus pais já vinham para aqui. Vim eu, depois, os meus filhos e, agora, esta minha netinha.
No sorriso bonito da velha senhora há a expressão agradada de quem sente, a demorar-se no tempo através de gerações, o prazer e a beleza daquela praia.
Olha de novo para o mar. Volta-se. E como a comunicar-me todas as boas recordações do passado, todas as alegrias do presente e as outras, as alegrias imaginadas no futuro, resume tudo isso em quatro palavras:
-A praia da Rocha!...»

Manuel da Fonseca, Crónicas algarvias (1ª ed. 1986), 2ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 1987, pp. 213-215.  

Paris, Boulevard Marguerite-de-Rochechouart

fotografia: filipe sousa | 16 fevereiro 2022

 






















Foram as memórias de Paul Bowles da sua estada em Paris (1931-1932) que me conduziram até ao Perfume do Metro (Parfum du Métro), de que nunca ouvira falar. Aspergida a partir dos próprios comboios, a fragrância servia para amenizar o cheiro a borracha queimada, suor e esgotos acumulado nos subterrâneos da Cidade Luz. A eficácia do perfume surge bem demonstrada no final deste filme promocional dos anos 50: https://www.youtube.com/watch?v=8tPiSj2-7Fw
Não faltam referências sugestivas às “estações odoríferas” do metro parisiense: Lilas, Jasmin, Bel-Air.
Depois de um interregno, sem perfume, a RATP (Régie Autonome des Transports Parisiens) resolveu recentemente, no final dos anos 90, retomar a ideia e testar uma fragância chamada "Madeleine", composto de limão, lavanda, jasmim e almíscar. Com consumos de perto de duas toneladas de perfume por mês, o projecto revelou-se insustentável e voltou a ser abandonado. Hoje em dia, ao que pude apurar, tenta manter-se um cheiro aceitável no métro de Paris através de limpeza regular das estações e tratamento das infiltrações nos túneis. Com diferentes graus de sucesso...

«Dois anos antes, na minha primeira visita a Paris, eu perdera-me de amores pelo métro. Aquilo transportava uma pessoa pela cidade sem a fúria e o tumulto do metropolitano de Nova Iorque, que parecia estar sempre empenhado numa corrida contra o tempo. No metropolitano uma pessoa tinha a compulsão de olhar para o seu relógio; no métro, uma pessoa em vez disso procurava o DUBO-DUBON-DUBONNET. O cheiro do metropolitano nova-iorquino era o de metal quente misturado com esgotos portuários; o métro exalava um odor característico que se escapava das estações para a rua. Eu nunca cheirara aquela fragrância particular em mais lado algum, e para mim aquilo era um símbolo de Paris. Anos mais tarde, numa droguerie de Tânger descobri um desinfetante que vinha em três perfumes diferentes: Lavande, Citron e Parfum du Métro.»

Paul Bowles, «17 Quai Voltaire» (1931-1932), Viagens - Compilação de Escritos, 1950-1993 (Travels - Collected Writings, 1950-1993), trad. Jorge Pereirinha Pires, Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 20.

Carrasqueira

fotografia: filipe sousa | 8 gosto 2022

 















Regresso ao porto palafítico da Carrasqueira, na baixa-mar, trinta e alguns anos depois. Um labirinto de passadiços avançando estuário do Sado adentro, onde os pescadores de hoje teimam em perpetuar a actividade dos primitivos concheiros, que por aqui viveram há milhares de anos. Apercebo-me de que o pontão principal foi alvo de melhoramentos, permitindo caminhar sem ser de forma instável, como outrora. A construção de uma lota é outra das novidades. Ainda assim, o espírito do lugar permanece intacto. Não há fotografias que consigam traduzir a beleza deste sítio. Único em Portugal e, ao que parece, em toda a Europa.

«Construção palafítica, erguida sobre estacas enterradas no lodo, à maneira dos avieiros, o porto da Carrasqueira parece ter crescido por ondas sucessivas, num entrançado de varas que se desenvolve suspenso sobre o sapal, num milagre de equilíbrio.»

José Manuel Fernandes, Maurício de Abreu, O Homem e o Mar - o litoral português, Círculo de Leitores, 1987, p. 140.

Serra da Arrábida

fotografia: filipe sousa | 8 agosto 2022

 















A manhã de ontem surgiu e manteve-se velada, camoniana, durante a travessia da serra: «(…) anda a névoa cega / sobre os montes da Arrábida viçosos, / enquanto a eles a luz do sol não chega.» Depois veio a tarde corroborar Camões e iluminar de vez «essa nesga mediterrânica entre terras e águas atlânticas», Orlando Ribeiro dixit. De facto, ao avistar o areal da Figueirinha a partir do convento franciscano foi como se tivesse visto, por instantes, Palombaggia ou algum paraíso de férias das ilhas gregas, com as suas enseadas escondidas e águas azul-turquesa.

«Com os enrugamentos calcários cavalgantes sobranceiros ao litoral, despenhando-se por escarpas brutais num mar de rara serenidade, franjada de baías luminosas fechadas por promontórios intransponíveis, a Arrábida é o único troço verdadeiramente mediterrâneo da costa portuguesa: tanto pela arquitectura do terreno, dobrado e cortado de grandes deslocações, como pelas águas tépidas, tranquilas e abrigadas, que mais parecem de um mar interior.»

Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1ª ed. 1945), 5ª ed., Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1987, p. 125.