Praia da Rocha

fotografia: filipe sousa | agosto 1990

 















Com a Feira do Livro de Lisboa à porta, revisito esta apropriada memória. Subíamos, eu e a Clara, o Parque Eduardo VII, no dia 10 de Junho de 1991, quando, ao passarmos por um dos stands da Caminho, somos surpreendidos com a presença de Manuel da Fonseca. O escritor não se encontrava no exterior do stand, na área reservada para autógrafos e dedicatórias dos autores, como de costume. Estava, sim, no interior, atrás do balcão, sozinho, fazendo as vezes de um vendedor, recomendando os seus, mas também outros livros de outros autores da editora, e por isso o espanto de o vermos naquele papel e naquele sítio. Entabulámos conversa e acabámos a falar do Alentejo. Ele, do seu torrão natal: Santiago do Cacém. Nós, da intenção de trocarmos Lisboa pelo distrito de Portalegre, sem pressentirmos que o futuro há muito estava traçado e passaria por Moura, mais a sul. Antes da despedida, entre votos de sorte e felicidade, comprámos as suas Crónicas Algarvias, que fez questão de autografar “muito afectuosamente”. Trata-se de um dos melhores livros que conheço sobre o Algarve e um dos melhores sobre viagens escrito em português. Reúne as crónicas publicadas no vespertino A Capital, de 1 a 16 de Agosto de 1968. Vindo a lume apenas em 1986, inclui as partes cortadas pela Censura. A obra é pioneira na abordagem do que viria a ser o boom turístico do Algarve. A sua divisa resume-se a “o menos possível de paisagem”, pois “o que interessa são as pessoas”, como nesta passagem sobre a praia da Rocha:

«Para lá das arribas avermelhadas, a praia, que o bater das marés abriu às meias luas e cerca os leixões sanguíneos na enchente, corre, branca-e-oiro, para os lados de Alvor.
Em frente dos toldos, deitados na areia, corpos torram ao calor deste meio-dia de sol. Na água, há gente ao banho e à braçada. Cabeças que surgem, desaparecem ao compasso da vaga, que é como uma funda respiração do mar.
Como o bar da esplanada está fechado, e apenas funciona a venda de bilhetes-postais ilustrados e recordações da província, entro na casa de chá. Sento-me na única mesa livre da fila que dá para a praia, e peço uma cerveja. A meu lado, o bebé que dorme no carrinho é pretexto para a conversa com a senhora de idade. É a avó, como ela me disse. Os pais do bebé estão na praia. Mas devem chegar daí a pouco, pois vão sendo horas de ir almoçar.
Depois de umas tantas frases próprias de tais circunstâncias, refiro-me à praia da Rocha num certo sentido.
-Compreende-se - diz-me a senhora. -É a praia de maiores tradições de todo o Algarve. Há muitas moradias de portugueses. Muitos não são daqui, mas são moradias antigas que vão passando de pais para filhos. Também de ingleses e, agora, de alemães. É muito procurada por uma certa gente, a praia da Rocha. Como lhe disse, isso entende-se. Repare como tudo isto convida à calma e ao sossego. Na verdade é de férias o tempo que aqui se passa.
Eu, da minha mesa, e a senhora, da mesa ao lado, olhamos para o mar, para o azul intenso do céu, para o doirado da areia da praia.
-É a minha praia desde criança - recomeça a senhora de idade. -Os meus pais já vinham para aqui. Vim eu, depois, os meus filhos e, agora, esta minha netinha.
No sorriso bonito da velha senhora há a expressão agradada de quem sente, a demorar-se no tempo através de gerações, o prazer e a beleza daquela praia.
Olha de novo para o mar. Volta-se. E como a comunicar-me todas as boas recordações do passado, todas as alegrias do presente e as outras, as alegrias imaginadas no futuro, resume tudo isso em quatro palavras:
-A praia da Rocha!...»

Manuel da Fonseca, Crónicas algarvias (1ª ed. 1986), 2ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 1987, pp. 213-215.  

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