Lucera, Piazza del Duomo

fotografia: filipe sousa | 19 junho 2023

 

















Dias 7/8/9 – Sul de Itália (Lucera, Troia, Bovino)
Na estação ferroviária de Lucera, quatro miúdos, acabados de sair da escola, sentam-se à minha frente e começam a fumar. Chamo-lhes à atenção de que é proibido naquele local. E aponto para o aviso na parede. Em resposta, expelem o fumo na minha direcção. E perguntam sobre o que estamos, eu e os que me acompanham, a fazer em Lucera, se não há nada para visitar. Ao dizer-lhes que não viemos em turismo mas em trabalho, largam uma risada. Que trabalho é esse que chama pessoas de fora a Lucera? Incomodado e a perder a paciência, insisto para que não fumem ali. Fitando-me, decidem levar os cigarros até ao fim. Saio para a gare antes disso, a tentar encontrar uma explicação para tanta insolência. Dou-me conta de que estou no sul de Itália, mas tento resistir a generalizações e lugares-comuns, apesar de me perseguirem, naquele instante, algumas cenas d’ O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, com a Sicília em pano de fundo. De regresso a Foggia, revejo o que foram estes últimos dias nesta região do Mezzogiorno.
A janela do meu quarto no Palazzo Cavalli, dos séculos XVII-XIX, abre-se para a Piazza del Duomo, em Lucera, uma das mais belas de Itália, onde pontifica a Basílica Catedral de Santa Maria Assunta, construída no início do século XIV no local antes ocupado por uma mesquita. O palácio será a nossa base para explorar a região das Montanhas de Dauni, no Norte da Apúlia, um território de ocupação antiga por onde passaram gregos, dáunios, romanos, cartagineses, cristãos, lombardos, bizantinos, francos, normandos, suábios, sarracenos, angevinos, aragoneses, bourbons. E que se mantem a salvo, felizmente!, das hordas de turistas que invadem Roma, Milão, Nápoles, Veneza, Florença…, as mecas do turismo transalpino, para não dizer mundial.
Além de Lucera (a Luceria dos romanos, a sentinela da Apúlia, a antiga capital da Capitanata), visito Troia e Bovino, ambas a sul. Troia (a Aecae romana), situada na encruzilhada de rotas que ligavam Roma ao Oriente (via Francigena) e Roma a Brindisi (Via Apia), com a sua catedral românica do século XI, que ostenta na fachada uma rosácea rendilhada e duas portas em bronze assinadas e datadas (1127) por um tal Oderisio da Benavento: a da Prosperidade e a da Liberdade. Bovino (a Vibinum romana, considerada uma das mais belas aldeias italianas), dominando os vales envolventes com o seu castelo que recebeu rainhas e poetas, é hoje anfitriã do Festival do Porco, organizado por associações locais e pelo movimento Slow Food, e do Festival Independente de Curtas Metragens.
Nesta região, a paisagem é feita de planícies ondulantes de cereais, vinho e azeite, a lembrarem o Alentejo, e de montanhas arborizadas, com cumes pouco acima dos mil metros, onde ainda existem lobos!, que explicam parte do nome da região: Monti Dauni.
A não perder, para além dos atractivos da paisagem, os sabores da gastronomia. Aqui, come-se muito e bem, e confraterniza-se melhor! Sobretudo no Verão, ao fim da tarde e durante a noite, depois das horas de maior calor, em que as praças se enchem de gente ávida de convívio e mândria (o dolce fare niente). Tal e qual como no Alentejo e em Moura, ou não fôssemos todos filhos da mesma civilização mediterrânica.

«Fala-se em termos mais gerais dos italianos que dos outros povos: temperamento meridional ou natureza tumultuosa, facilidade de passar da jovialidade à angústia, da brincadeira à cólera e vice-versa. Nenhum povo reúne todas as características mediterrânicas: elas estão espalhadas de uma ponta à outra do Mediterrâneo. Os discursos literários sobre as belezas da Itália levaram muita gente a ver antes de mais nada aquilo que lhe diziam para ver, antes de considerar o que tinha diante dos olhos, levaram-na a deixar de distinguir o passado ou presente das suas imagens, a descobrir em cada parcela da península o Inferno, o Purgatório ou o Paraíso, os conflitos de Roma e das províncias, a rivalidade entre Veneza e Génova, Nápoles ou Palermo, Florença e Siena, e a encontrar em cada cidade as querelas dos guelfos e dos gibelinos, atrás de cada porta os Montéquios e os Capuletos, a procurar em cada negócio a máfia ou a camorra, em cada cidadela os Médicis ou os Bórgias, em todas as capelas os mesmos prelados e os mesmos santos. «Não nos venha dizer o que é o Mediterrâneo», diz-se em certas cidades costeiras aos que repisam o que toda a gente sabe.»

Predrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico (1987), trad. do francês Pedro Tamen, Quetzal Editores, Lisboa, 2019, p. 112. 

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