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fotografia: filipe sousa | 22 junho 2022 |
«É assim, vem um gajo, numa boa, todo manselinho, o dia tá porreiro, lá a ver os meus velhotes, e zá e zá, que isto é só ternura, pá, com lágrimas que eu não mostro porque eu choro pra dentro e mijo pra fora, ó para esta cara mais querida, aqui na minha frente, mamã, mamã, ó para este pai, esta figura, esta firmeza facial e marcial, se faz favor, que até parece um senador ou o caraças, não me sacudas a mão, pai, que eu ia só fazer uma festa amigável, é assim: podias ao menos dar-me um abraço, eu não tenho pulgas, um gajo lá por usar rabo de cavalo e não ter tempo pra cortes de cabelo e essas macaquices, não obriga a andar carregado de vermes e carraças e fiocos de palha e essas merdas, quero dizer, desculpe lá, essas trampas, vá lá, pai, seja tolerante, que eu falo à moderna, linguagem viva, do povo mesmo, percebes? É assim: trato por tu porque é o que eu costumo com toda a gente e por maioria de razão com o meu pai que me é mais chegado, mas se não quer, por mim, tudo bem, isto cada um, pá, é como cada qual, e amigo não empata amigo. É assim: eu é que não fossilizei no tempo, essa é que é essa, eu sou desenrascado, abertura prò mundo que está a mudar, escutem os sinais, vejam os sinais, meus, agora vocês, eu compreendo, já há artrose, escoliose, ancilose, salvo seja, e mesmo que quisessem não percebiam, é assim: não podem perceber, vão à janela e vejam-me esses muros, as portas dos prédios, os candeeiros e o camandro, pá, lá está o meu tag, eu tou a deixar a minha marca nas paredes, e há uns gajos que sabem que sou eu, o Lencastre, o filho do coronel que riscou aquilo e que impediu a burguesia de ter ideias incolores contra os muros brancos, muro liso não tem expressão, os tags, atenção, atenção, não os grafitti, são vida e libertação, o grafitte amocha, faz o jeito ao burguês, tem harmonia, cores, armado ao artístico, o tag não!, é pra desconstruir, para emporqueirar e dar sobressaltos. A volúpia do perigo, pá, nunca ouviu falar?, assim mesmo, pás, mas porque é que o pai há-de ter esse feitio?, não ouve, só sabe mandar, escute, quando passo por um muro e deixo o meu rasto, o tag secreto e o tag exógeno, pá, é como aqueles gajos que libertam continentes inteiros, sei lá, o Simão Bolívar, o Fidel Castro e essa malta toda, fixe, mas que é que tem o facto de eu ter quarenta e dois anos? É assim: eu tenho a culpa? Está aqui o vosso filho, na frente, em carne e osso, e pensam é no BI, a burocracia já chegou à família, catano? Os piercings não faz mal, é prata, não infecta, é tudo do simbólico, o pai não usava galões? Chegue pra lá a mão, chegue pra lá a mãozinha, são símbolos, pá, um gajo constrói o mundo que quer, depois desconstrói, passa as mensagens que quer, eu até posso ganhar bem, que é que tem?, é assim: um gajo é três vezes mestre de palco em três concertos e tá safo prò resto do ano, orienta-se com umas gajas, com umas ganzas, isto é vida, a nova cultura, o hip-hop, só cá é que é esta merda tradicionalista, pequeno-burguesa, tudo certinho, tudo direitinho e o caraças, o que eu gostava, percebe, deixe lá o «de», mãe, quem é que liga a isso da gramática, dos acentos e coisa e tal, era o dia mais feliz da minha vida era dar umas sprayadas na merda dos painéis de São Vicente e encher aquela bodega toda com o meu tag e repintar aquilo tudo que é um convite ao imobilismo e ao passadismo, pai, pai, não vale a pena perder a cabeça, um pai, onde é que já se viu, a bater num filho adulto só por não ser capaz de ouvir umas verdades, obrigado mamã, sempre me protegeu, fez o que pôde, olhe pai, não me bata, eu sou mais alto que o pai, porra, já me rompeu a polpa do beiço eu não mereço isto, ó, ó para os meus braços, lisinhos, aqui nunca furou agulha, charros não digo que não, mas é assim: os maiores especialistas do mundo garantem - tá escrito, tá escrito! - que faz bem ò sistema, e passam atestados e tudo, ali, estou limpo ou não, mãe?, há razão prò pai me bater? Mamã, agora a sério, mamã é um aperto, houve um mal-entendido, são só cinquenta euros, eu devolvo já amanhã, sempre fui sério de contas, ó pai não se meta, caraças, se não tem respeito pelo seu filho, tenha dó da sua mulher. Caraças, pai, porra, vou-me já embora desta puta de casa. Vê, vê? É assim: tenho o sobrolho a sangrar, tá a ver? Mamã? Vou telefonar pràs televisões, vou escrever em todas as paredes que o coronel Amílcar Lencastre é todo antigo regime, pá, tem maus bofes e dá porrada no filho, e aquilo é só por ódio à modernidade e à humanidade...»
Mário de Carvalho, Fantasia para dois coronéis e uma piscina, 3ª ed. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 73-75.