Faial da Terra

fotografia: filipe sousa | 24 julho 2016






























«68-205 Quando considero a pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade que precede e na que segue, o pequeno espaço que ocupo e que vejo devorado pela imensidão infinita dos espaços que ignoro e que me ignoram, enche-me de terror e espanto achar-me aqui em vez de ali, porque não há razão alguma para estar aqui e não ali, agora e não outrora. Quem me pôs aqui? (...)»

Blaise Pascal, Pensamentos (Pensées, 1669), Publicações Europa-América, Mem Martins, 1978, p. 96. 

Paço de Arcos

fotografia: filipe sousa | 25 dezembro  2019



























«Paço de Arcos, dizem que é a praia aristocrática dos subúrbios de Lisboa. Não sei bem donde é que esta fama lhe procede. Custa tanto já hoje a assinalar na sociedade portuguesa o ponto em que a aristocracia principia e o ponto em que ela acaba!
Há por exemplo viscondes que ninguém considera aristocratas. Há famosos e antigos apelidos cujos possuidores passam igualmente pelas pessoas menos aristocratas do mundo.
Aristocrata chama-se em Portugal  ao indivíduo que tem certos hábitos de vida, certos desvelos de roupa branca, certas convivências de salão, um pouco de ar, de maneiras, de toilette e de mão de rédea.
Que estas condições se dêem mais especialmente nos banhistas de Paço de Arcos do que nos outros, eis o que não me atrevo a afirmar.
Como quer que seja, o corpo diplomático patenteia por Paço de Arcos uma predilecção manifesta. Isto imprime à vida dos seus salões o carácter grave e reservado que a diplomacia impõe. (...)
Paço de Arcos tem um hotel habitável - o do Bugio -, e um clube em cujo salão há soirées aos sábados. Os banhistas portugueses são apresentados e pagam uma quota. Para os estrangeiros há convites.
Senhoras espanholas a banhos nestes subúrbios são convocadas em cada semana a levarem aos sábados de Paço de Arcos o doce tributo da sua presença, da sua toilette e da sua expansiva vivacidade.
Assim como pela manhã se pergunta para o banho - «há maré?» - assim à noite se pergunta para o baile  - «há espanholas?»
Havendo espanholas, todos os portugueses que estão em Paço de Arcos concorrem ao clube; muitos vêm para esse fim das praias circunvizinhas: da Boa Viagem, da Cruz Quebrada, do Dafundo. A valsa toma nessas noites mais velocidade, mais ímpeto, mais arranque. A pronúncia espanhola lança no ruído geral do baile um elemento de rebate, de alarme, como se se pressentisse ao longe o frémito dos pandeiros, o frenesi das castanholas, a vertigem do bolero.»

Ramalho Ortigão, As praias de Portugal - guia do banhista e do viajante (1ª ed. 1876), Frenesi, Lisboa, 2001, pp. 101-103.  

Roma, Curia Iulia

fotografia: filipe sousa | 11 julho 2009






























«TITO ANDRÓNICO
Para seu corpo glorioso mais convém outra cabeça
Que esta, que treme de velhice e abatimento.
Para quê vestir a toga e importunar-vos?
Ser escolhido hoje por aclamação,
E amanhã devolver o mando, ceder a vida,
E de novo a todos dar que fazer?
Roma, fui quarenta anos teu soldado,
Conduzi as forças da pátria com sucesso,
E sepultei vinte e um valentes filhos,
Armados cavaleiros na batalha,
Valorosamente mortos pelas armas,
Pela causa e pelo serviço de sua nobre pátria.
Dai-me um bordão  de honra para a minha idade,
E não um ceptro para dominar o mundo:
Empunhou-o bem, senhores, o último a empunhá-lo.

MARCO
Tito, receberás o império, se o pedires.

SATURNINO
Como podes dizer isso, tribuno soberbo e orgulhoso?

TITO ANDRÓNICO
Acalmai-vos, príncipe Saturnino.

SATURNINO
Romanos, fazei-me justiça.
Patrícios, puxai das espadas e não as volteis a embainhar
Até Saturnino ser imperador de Roma.
Andrónico, antes fosses embarcado para o inferno,
Que roubares-me ao coração do povo.

LÚCIO
Orgulhoso Saturnino, estorvo do bem
Que o generoso Tito quer para ti!

TITO ANDRÓNICO
Alegra-te, príncipe; devolver-te-ei
O coração do povo, desviando-o de si mesmo.

BASSIANO
Andrónico, eu não te lisonjeio
Mas venero-te, e fá-lo-ei até à morte.
Se quiseres, com teus amigos, reforçar o meu partido,
Ser-te-ei profundamente grato; e, para os homens honrados,
A gratidão é honrada recompensa.

TITO ANDRÓNICO
Povo de Roma e tribunos do povo aqui presentes,
Peço vossos votos e sufrágios:
Quereis confiá-los generosos a Andrónico?

TRIBUNOS
Para agradar ao bom Andrónico,
E celebrar o seu regresso ileso a Roma,
O povo aceita quem ele designar.

TITO ANDRÓNICO
Tribunos, eu vos agradeço, e faço este pedido:
Que elejais o primeiro filho do nosso imperador,
O senhor Saturnino, cujas virtudes, espero,
Se reflectirão em Roma como na Terra os raios do Titã,
E farão madurar a justiça nesta república.
Se quiserdes então eleger aquele que aconselho,
Coroai-o e dizei: "Viva o nosso imperador!"

MARCO
Com as vozes e aplausos de todos,
Patrícios e plebeus nomeamos
O senhor Saturnino grande imperador de Roma,
E dizemos: "Viva Saturnino, o nosso imperador!"»

William Shakespeare, Tito Andrónico (The Most Lamentable Romaine Tragedie of Titus Andronicus, 1593?), trad. José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto, Luís Miguel Cintra, Ed. Teatro Nacional D. Maria II e Edições ELO, Lisboa, 2003, pp. 19-21.

Torino / Turim, Mirafiori Sud

«29 de Dezembro (de 1949)
Passeata a Milão, volta por Roma. Será o prazer de mudar de sítio, de viajar, que regressa? Ao voltar de Milão após 24 horas de ausência, redescobri Turim. Será isto sempre o que há de belo no facto de viajar: redescobrir o lugar em que se vive.»

Cesare Pavese, O Ofício de Viver - Diário (1935-1950), Il mestiere di vivere (1952), trad. Alfredo Amorim e Margarida Periquito, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2004, p. 366.


fotografia: filipe sousa | 12 abril 2018

Venezia / Veneza, Gran Canale

fotografia: filipe sousa | julho 2003


























«Em Veneza, a água começa logo que se se deixa o trem. O gondoleiro solícito equilibra montes de malas na sua gôndola, com assombrosa segurança. As gôndolas parecem cisnes pretos. Parecem instrumentos de música, com aquele ferragem que têm, na ponta, como cravelha. O gondoleiro com o seu remo para cá e para lá é como um rabequista com seu arco. Vamos assim musicalmente pelo Grande Canal, e antes de chegar a cada esquina d'água o gondoleiro clama: "Ou! Ou!"...- o que é incomparavelmente mais belo que a buzina de um automóvel.
Do outro lado não respondem? Podemos seguir.»

Cecília Meireles, «Cidade líquida» in Crônicas de viagem 2 (1953), reimpr. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, pp. 79-80.  

Marseille / Marselha, La Canebière 19

fotografia: filipe sousa | 18 outubro 2019

As madalenas estão de volta. Em busca do tempo das madalenas ou a memória involuntária em Proust.

«Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos estão cativas em algum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada, efectivamente perdidas para nós até ao dia, que para muitos não chega nunca, em que acontece passarmos junto da árvore, ou entrar na posse do objecto que é a sua prisão. Então elas estremecem, chamam por nós e, mal as reconhecemos, quebra-se o encanto. Libertadas para nós, venceram a morte e tornam a viver connosco.
O mesmo acontece com o nosso passado. É trabalho baldado procurarmos evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido, fora do seu domínio e do seu alcance, em algum objecto material (na sensação que esse objecto material nos daria) de que não suspeitamos. Depende do acaso encontrarmos esse objecto antes de morrermos, ou não o encontrarmos.
Havia já muitos anos que, de Combray, não existia para mim tudo o que não fosse o teatro e o drama do meu deitar, quando, num dia de Inverno, ao regressar a casa, a minha mãe, vendo-me com frio, me propôs que, contra meu hábito, tomasse um chá. Comecei por recusar e, não sei porquê, mudei de opinião. Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e roliços chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na concha estriada de uma vieira. E não tardou que, maquinalmente, abatido pelo dia taciturno e pela perspectiva de um triste dia seguinte, levei à boca uma colher de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou no céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. (...) Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não deveria ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É evidente que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela despertou-a, mas não a conhece, e não pode mais que repetir indefinidamente, cada vez com menos força, aquele mesmo testemunho que não sei interpretar e que, pelo menos, quero poder tornar a pedir-lhe e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um decisivo esclarecimento. Poiso a xícara e volto-me para o meu espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo ele o país escuro que tem a explorar e onde não lhe servirá de nada toda a sua bagagem. Explorar? Não só: criar. Está diante de algo que não é ainda e que só ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz. (...)
Não há dúvidas de que o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a recordação visual, que, ligada a este sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito confusamente; mal posso discernir o reflexo neutro onde se confunde o inapreensível turbilhão de cores agitadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como único intérprete possível, que me traduza o testemunho do seu contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me diga de que especial circunstância, de que época do passado se trata. (...)
E de repente a recordação surgiu-me. Aquele gosto era o do pedacinho de madalena que em Combray, ao domingo de manhã (porque nesse dia não saía antes da hora da missa), a minha tia Léonie, quando lhe ia dar os bons-dias ao quarto, me oferecia, depois de o ter ensopado na sua infusão de chá ou de tília. A visão da minúscula madalena nada me fizera lembrar até a ter provado; (...) Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembrados, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações sobre a sua gotinha quase impalpável o edifício imenso da memória.
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena ensopado na tília que a minha tia me dava (se bem que então ainda não soubesse e tivesse que deixar para muito mais tarde a descoberta de porque é que aquela recordação me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta sobre a rua , onde ficava o seu quarto, veio, como um cenário de teatro, juntar-se ao pequeno pavilhão que dava para o jardim, que havia sido construído para os meus pais nas traseiras (aquela superfície truncada, a única que até então tinha tornado a ver); e com a casa, a cidade, desde manhã até à noite e com toda a espécie de tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas onde ia fazer compras, os caminhos que se tomavam quando estava bom tempo.» 

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - Do lado de Swann, (À la Recherche du Temps Perdu - Du côté de chez Swann, 1913), trad. Pedro Tamen, Relógio d'Água, Lisboa, 2003, vol. I, pp. 51,52, 54.

EN 255-1

«Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas.
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade. 
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida.»

Sophia de Mello Breyner Andersen, inédito, sem data.

fotografia: filipe sousa | março 2016

Guarda

«As estações de serviço merecem ponderada especulação, têm muito que se lhe diga. Estão para os tempos de agora como as malas-postas para os remotos viajantes do princípio do século dezanove e, bem assim, as postas de muda dos períodos e lugares em que existiram, como no Império Romano e na mais antiga Pérsia. (...)
São tão populares e bem-amadas as estações de serviço que aos fins-de-semana esvaziam as aldeias, vilas e povoados em redor e toda a gente acorre em excursão a perambular no vistoso palácio da estrada, entre as casa de banho, o self-service, a tabacaria, o balcão dos cafés e das cervejas, tudo do mais fino disaine, muito parecido com outro que há em Insbruck, outro na Lovaina, outro em Salonica. Uma das vantagens destes edifícios, mai-lo seu recheio, é precisamente essa. Deixamos de saber em que terra estamos, viajamos para Singapura, ou para Helsínquia, sem tirar os pés da sacra Pátria lusitana: Mas é preciso conceder, faça-se justiça e pereça o mundo, que as sandes de fiambre aguado com alface requeimada sempre serão mais tragáveis que o bodum do carneiro de outrora, e que as rodelas de chouriço não têm comparação com  a iguaria equivalente da Dinamarca.»

Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina, 3ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 103-104.


fotografia: filipe sousa | 31 outubro 2019

Lyon, Rue Saint Jean 6

TOMA TOMA TOMA

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos, 
mas para rachar as cabeças.

O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses  
matraquilhos da comédia humana.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (A Saca de Orelhas, 1979), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 349.


fotografia: filipe sousa | 17 setembro 2019

Anemzi

fotografia: filipe sousa | dezembro 1993

Mértola, rio Guadiana

«São muitas as especies de peixe que habitam e frequentam o rio Guadiana, e a costa de Villa Real Santo Antonio, desde Cacella até à ponte de Santo Antonio, e d'aqui até Mertola. Algumas d'estas especies vivem constantemente no rio, e outras procuram-o nos mezes da primavera e verão, epocha em que desovam, saíndo depois para o mar, e deixando as crias no rio, desenvolvendo-se.
Segundo as informações que colhi, parece que havia antigamente maior abundancia de quasi todas as especies, porém actualmente, e de alguns annos a esta parte, tem havido diminuição, tendo mesmo desapparecido, quasi por completo, algumas classes.
Os pescadores d'este rio querem attribuir a falta ou diminuição do peixe às aguas saídas das minas de cobre existentes nas duas margens do rio, e as quaes são mina de S. Domingos na margem portuguesa, e as minas Lagunazo, Cabeza del Pasto, e Vuelta Falsa na margem hespanhola.
(...)
Quadro Indicativo das Differentes Especies de Peixe que habitam e frequentam o rio e a costa no districto maritimo de Villa Real de Santo Antonio
Bárbo - Existia em grande quantidade em todo o rio; porém, de alguns annos para hoje, tem diminuido sensivelmente, principalmente no inverno. É peixe só do rio. Encontra se ainda em Mertola e para o N. d'este ponto, e em mais abundancia no verão. Vive sempre no rio e nos pontos lodosos. Desova em abril e maio, proximo das margens de cascalho.
Bordállo - Havia grande abundancia d'este peixe. Tem diminuido bastante. Encontra-se mais no verão que no inverno, epocha em que quasi desapparece. Vive só no rio. Desova em abril e maio, procurando as margens de lodo, onde parece que vive.
(...)
Boga - Existe em grande quantidade em todo o rio, quer de verão, quer de inverno. Parece crear-se do lodo. Desova em janeiro, fevereiro e março, procurando os pontos em que a agua corre com mais violencia, e os menores fundos junto às margens.
(...)
Eiró - Existe em grande quantidade n'este rio, de Alcoutim para o N. do rio. É pescada mais de verao que de inverno, em que apparece menos.
(...)
Lampreia - Apparece em Mertola e suas immediações de março em diante, e em regular quantidade, ainda que hoje mais diminuta que antigamente. Depois de desovar desapparece, deixando a creação nos mesmos pontos em que desova.
(...)
Mugem - Existe grande abundancia d'este peixe dentro d'este rio e na costa, de onde entra no rio adiante dos temporaes, e nas phases da lua, lua nova e lua cheia. Vive do lodo. Desova em março, abril e maio, nos fundos de pedra e nos de lodo.
(...)
Picão - É em tudo similhante ao barbo, porém de menores dimensões. Existe, em grande quantidade em Mertola e suas imediações. É peixe do rio. Desova em abril e maio, nas margens de cascalho.
(...)
Peixe rei - Apparece algumas vezes dentro do rio e só próximo da foz. Desova no verão, junto às pedras da margem.
(...)
Savel - Entra no rio em março, abril, maio e junho, dirigindo-se para o norte do rio, proximidades de Mertola, onde desova, saíndo depois para o mar no começo das chuvas, e portanto quando as ribeiras desaguam no rio. Alimenta-se, enquanto no rio, de diversos resíduos. Apparece hoje menos que n'outros tempos. Desova de março a junho, junto ao cascalho na margem.
Sabóga - Entra no rio ao mesmo tempo que o savel. Depois de desovar e deixando as crias no rio, desenvolvendo-se, sai para o mar de julho em diante. Passa o inverno no mar. Desova ao mesmo tempo que o savel e nas margens de cascalho.
Sôlho - Ha annos em que apparece em grande quantidade em Mertola e para o norte d'este ponto. Desova nas cascalheiras em abril e maio. Entra no rio em abril e maio, desova e volta para o mar, deixando as crias no rio. Já se tem apanhado crias d'este peixe, regularmente desenvolvidas, em novembro e dezembro.
Saltão - É em tudo similhante ao mugem, e é assim chamado pelos saltos que dá fora de agua como a tainha. Depois de desovar nos mezes de primavera, e tão sómente de Alcoutim para o norte, sai para o mar do mez de julho em diante. 
(...)
Taínha - É o mesmo que o mugem, sendo contudo de maiores dimensões. Apparece no rio em quantidade regular. Desova dentro do rio nos mezes quentes.»

Alfredo Ghira, Relatório sobre a pesca marítima e fluvial e industria de pesca no Districto Marítimo de Villa Real de Santo Antonio, Imprensa Nacional, Lisboa, 1889, pp. 3, 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17.

fotografia: filipe sousa | abril 1990

Venezia / Veneza, Gran Canale, Ponte dell'Accademia

«A artéria central de Veneza é o Grande Canal, e desta incomparável via rápida brotam canais mais pequenos como veias, por onde flui todos os dias o sustento da cidade, como insulina no sistema de um diabético. Diz-se que há 177 canais, num total de 45 quilómetros. Seguem antigos cursos de água e serpenteiam em curvas imprevisíveis pela cidade, ora largos, belos e esplêndidos, ora de uma tortuosidade imprevisível. O Grande Canal tem três quilómetros de comprimento; 60 metros no ponto mais largo e 35 no mais apertado; tem uma profundidade média de dois metros e meio (quatro metros na Ponte do Rialto, segundo a Tabela do Almirantado); e anima-o um tráfego incessante. As outras vias aquáticas de Veneza são de uma importância infinitamente menor - têm uma largura média de três metros e meio e uma profundidade média que equivale à de uma banheira familiar de tamanho generoso.
(...)
Todos os dias, correm para os canais toneladas de porcaria que emprestam aos bairros decrépitos aquele fedor típico - meio de esgoto, meio da pedra em decomposição - que tanto repugna o turista mais enjoado, mas que proporciona ao amante de Veneza um prazer perverso e relutante.
(...)
Olhando de um terraço para os canais quando a maré está baixa, vê-se uma variedade extraordinária de entulho e escombros que a água esconde, brilhando como um falso mistério através do verde-água; e é horrível observar a moleza do leito do canal quando um bate-estacas inicia o seu trabalho.
Os venezianos nunca se deixaram intimidar por este substrato. No século XV, queimavam paus de incenso e enterravam perfumes e especiarias no solo para abafar o mau cheiro: mas ainda há pouco tempo até as famílias mais elegantes se banhavam com regularidade no Grande Canal, e diz-se que havia uma tabuleta junto à Ponte do Rialto avisando severamente os transeuntes de que era «Proibido Cuspir nos Banhistas».»

Jan Morris, Veneza (Venice, 1960), Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2009, pp. 161,162,164,165.


fotografia: filipe sousa | julho 2003

København / Copenhaga, Sankt Jakobs Gade 11

«Um nada fica a lembrar-se para sempre, nós alugávamos duas bicicletas, partíamos ao sol pela estrada fora. Já alguém falou do prazer de uma bicicleta? Mas tanta coisa dá prazer e não sabemos de quê. Andar, movimentar-nos, contemplarmos um horizonte marinho, como eu o via da Biblioteca. Ou sentarmo-nos à sombra num banco de jardim ou de esplanada. Ou tomar um duche quente ou frio. Ou mudar de roupa, sobretudo de lençóis. Ou cantarolar na banheira - há quem. Ou ver um espectáculo mas acompanhado. Ou. Andávamos de bicicleta - porque é que isso dá prazer? Muda-se de paisagem mas é o fruto do nosso esforço, sentimo-nos compensados. E há o triunfo  do equilíbrio  na aresta das duas rodas, todo o nosso corpo subtilizado nesse mínimo de suporte. E há a ascensão de nós nesse movimento alado. E há a simplicidade, quase o esquematismo dessa máquina de andar.»

Vergílio Ferreira, Para sempre, 3ª edição, Livraria Bertrand, Lisboa, 1983, p. 216.  


fotografia: filipe sousa | agosto 2001

Berlin / Berlim, Konrad-Adenauer-Straße 1

Cem anos do movimento Bauhaus, de Walter Gropius.

«O objectivo final de todas as artes é o edifício! Embelezar os edifícios já foi a mais nobre das funções da arte; elas eram as componentes indispensáveis da boa arquitectura. Hoje as artes existem isoladamente, de que só podem ser resgatadas através do esforço consciente e colaborativo de todos os artesãos. Arquitectos, pintores e escultores têm de reconhecer novamente e aprender a compreender o carácter compósito de um edifício, enquanto entidade, ou através das suas componentes individuais. Só então poderá o seu trabalho ser imbuído do espírito arquitectónico que perdeu enquanto "arte de salão".»

Walter Gropius, Bahaus Manifesto and Program (1919). 

fotografia: filipe sousa | 4 junho 2019