Bastia

fotografia: filipe sousa | outubro 2005 

















«Os faróis são também um legado mediterrânico, que é preciso evitar entregar exclusivamente às autoridades administrativas, costeiras ou marítimas. São em geral classificados de acordo com a sua idade e a sua grandeza, com a maneira como são construídos e com os locais em que se situam: molhes, ilhéus, cabos, promontórios. Há também a considerar o modo como o mar os cerca, até que ponto estão isolados, quais as suas ligações com os portos mais próximos, se aspiram a tornar-se portos eles mesmos e, finalmente, para quem, na rota de que navio, lançam os seus feixes luminosos (diz-se, também, num registo sentimental, que a sua luz é pálida, intermitente, nostálgica, etc). Nem pensar em dissertar sobre as razões que levaram certos faroleiros a optar por viver na solidão, iluminando o mar. Aos faróis cabe um lugar respeitável nas cartas marítimas de grande formato, e também os náufragos os não omitem nas suas memórias: os mediterrâneos não brilham pela sua extrema gratidão, embora tanto prometam, e mais ainda quando exprimem os seus agradecimentos (note-se em sua defesa que eles mesmos acreditam em tais promessas no momento em que as fazem). Os faroleiros, que mais se aparentam a monges de antigos mosteiros que a marítimos, não esperam de parte alguma espécie de agradecimento. Às vezes é a eles que se dedica um quadro nas casas dos que perderam um parente próximo no mar: o ex-voto é uma fé popular e pagã, com santuários espalhados pelo Mediterrâneo.»

Predrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico (1987), trad. do francês Pedro Tamen, Quetzal Editores, Lisboa, 2019, p. 52.   

Rabaçal

fotografia: filipe sousa | 19 setembro 2020

«A dissimetria entre as duas encostas da ilha comanda também a organização da rega. Para regar a encosta sul vai-se buscar água à encosta norte, que recebe precipitações mais abundantes e cujo solo está menos ocupado pelo homem. (…) Não há barragens nem albufeiras de qualquer espécie. As nascentes são colectadas frequentemente a altitudes consideráveis (1600 metros nas montanhas ocidentais, 1500 no planalto do Paúl da Serra): um rego onde circula um pequeno fio de água incorpora progressivamente outras nascentes que aumentam o seu caudal. (…) Certas levadas destinam-se a regar terrenos da encosta setentrional da ilha. Outras, geralmente as mais curvas e mais antigas, colectam as águas dos cumes e dos barrancos da encosta meridional. As mais compridas destinam-se a trazer as águas da encosta norte para as regiões mais povoadas e mais cultivadas do Sul da ilha. Estas levadas são o resultado de trabalhos de grande envergadura. As duas levadas do Rabaçal, que permitem regar todo o Sudoeste da Madeira com as águas da bacia de recepção da Ribeira da Janela, foram construídas de 1835 a 1890; a maior tem uns 24 km de comprimento.»

Orlando Ribeiro, A Ilha da Madeira até meados do século XX - estudo geográfico (1949), 2ª ed., Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1985, pp. 63-66.

Porto da Cruz

fotografia: filipe sousa | 18 setembro 2020

 







Ponta de S. Lourenço

fotografia: filipe sousa | 18 setembro 2020

 
















Hoje, trinta e um anos depois, regresso à Madeira. Desta vez preparado para uma digressão mais “geográfica”, com o mestre Orlando Ribeiro como cicerone. Na mochila, para além de uma boa reserva de água, o seu estudo A ilha da Madeira até meados do século XX, publicado originalmente em 1949.

Começo pelo extremo leste, a Ponta de São Lourenço, o espaço árido da ilha, em contraste com o verde do restante território, e onde as consequências do vulcanismo são mais impressivas. A curta distância, os vultos das três Desertas.

«As concreções calcárias da Ponta de S. Lourenço mostram que existiu uma drenagem de certa importância em direcção ao Sul; porém, as cabeças dos barrancos foram decapitadas pela abrasão da costa setentrional. Observam-se ali arribas absolutamente verticais e até mesmo desaprumadas. Durante as tempestades, as vagas quebram-se com fragor contra esta muralha rochosa. (…) A aridez aparente da Ponta de S. Lourenço (…) deve-se menos à sua situação oriental do que ao seu fraco relevo. (...) Os exploradores abordaram a ilha pelo Leste, depois de terem dobrado a Ponta de S. Lourenço

Orlando Ribeiro, A Ilha da Madeira até meados do século XX - estudo geográfico (1949), 2ª ed., Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1985, pp. 24, 46.

Lisboa, Esplanada D. Carlos I

fotografia: filipe sousa | 15 setembro 2020



























Os números impressionam. Doze toneladas de areia, 25 toneladas de rocha vulcânica, 78 troncos de árvores, 40 espécies de peixes tropicais de água doce, 46 espécies de plantas aquáticas e o envolvimento de 90 pessoas de 6 nacionalidades diferentes para criar o maior aquário de natureza do mundo, com 160 m3 de volume, 40 m de comprimento, 2,5 m de largura e 1,45 m de altura. Mas mais impressionante é a genialidade do criador desta obra de arte inspirada na natureza, o japonês Takashi Amano (1954-2015). Integrada na exposição Paisagens Submersas, patente no Oceanário de Lisboa, recria as florestas tropicais do planeta, seguramente dos habitats mais ameaçados, apesar da sua importância ecológica: mais de metade da biodiversidade existe aqui.
Enquanto fotógrafo da natureza, Takashi viajou pelas florestas do mundo em busca da harmonia das paisagens pristinas. Tornou-se mestre internacional de aquariofilia de água doce com a criação de aquários plantados. Concilia nas suas obras técnicas de jardinagem com o conceito japonês "wabi sabi", que define a beleza como impermanente, imperfeita e incompleta: nada dura, nada está acabado e nada é perfeito.
Mais de 3 milhões de pessoas já visitaram a exposição desde a sua inauguração e ontem foi a minha vez. Por breves 30 segundos tive o privilégio de ficar sozinho na sala, numa experiência de contemplação única, embalado pela música original de Rodrigo Leão.
A propósito de jardinagem e da estética "wabi sabi", a evocação, por um conhecido compatriota de Takashi, o poeta e viajante Matsuo Bashô, que viveu no século XVII, da paisagem de Matsushima, «a mais formosa do Japão», com a assinatura de um outro jardineiro maior ou Deus da Montanha.

«Já é um lugar comum dizê-lo: a paisagem de Matsushima é a mais formosa do Japão. Não é inferior às de Doteiko e Seiko na China. O mar penetra a partir de sudeste numa baía de aproximadamente três "ri", transbordante como o rio Sekiko da China. É impossível contar o número das ilhas: uma quase toca o céu, outra apresenta-se estendida, a boca debaixo das ondas; aquela parece desdobrar-se e, a mais afastada, divide-se em três; algumas, vistas da direita parecem ser uma só e vistas do lado contrário multiplicam-se. Há umas que parecem levar um menino às costas; outras é como se o levassem ao colo, algumas parecem mulheres acariciando o seu filho ou o seu neto. O verde dos pinheiros é sombrio e o vento salgado dobra sem cessar as suas ramagens, de maneira que as suas linhas curvas parecem obra de um jardineiro. A cena tem a fascinação misteriosa de um rosto formoso.
Dizem que esta paisagem foi criada pelo Deus da Montanha, na época sagrada. Nem pincel de pintor, nem pena de poeta podem descrever as maravilhas do céu.»

Matsuo Bashô, O caminho estreito para o longínquo Norte (Oku no Hosomichi, 1691), trad. Jorge de Sousa Braga, 2ª ed., Fenda Edições, Lisboa, 1995, pp. 31-32. 

Venezia / Veneza, Gran Canale

fotografia: filipe sousa | julho 2003



























Foram os turcos e os portugueses que ajudaram ao declínio da Sereníssima. A lembrar os seus tempos áureos, todos os anos, no primeiro Domingo de Setembro, Veneza veste-se a preceito para ver passar a Regata Storica na "passadeira vermelha" do Grande Canal, «a mais esplêndida rua do mundo». No último fim-de-semana, cumpriu-se a tradição, apesar da pandemia.

«Nada na Terra é mais grandioso que o Grande Canal e as duas esplêndidas curvas com que atravessa a cidade, pleno de barcos que se acotovelam e rodeado de antigos palácios altaneiros que formam a sua guarda de honra (...).»

Jan Morris, Veneza (Venice, 1960), Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2009, pp. 316-317.

«Imagine uma noite de Maio em Veneza no tempo em que casas como esta eram elegantemente novas e o Grande Canal «a mais esplêndida rua do mundo», como o embaixador francês certa vez declarou (com uma generosidade pouco habitual nos seus compatriotas), iluminado pelos palácios sumptuosamente pintados e incrustados de ouro, sulcado por brilhantes e esbeltas gôndolas de todas as cores - vermelho, azul, amarelo, turquesa, até preto - com os bancos forrados a couro debruados com as mais finas rendas de bilros. Mesmo assim, apesar das silhuetas cheias de curvas dos flamejantes palazzi góticos, dos mercados flutuantes, das frotas de galés e das grandes igrejas encimadas por cúpulas, nesta noite particular Veneza já não estava no auge do seu esplendor. Desde que os Turcos tinham tomado Constantinopla, quase um século antes, sentia o seu poder e a sua riqueza declinarem. Vasco da Gama tornara tudo ainda pior ao descobrir um caminho para Oriente à volta de África. O mundo deixava de lhe pertencer - um momento delicioso na história de qualquer cidade, não acha?»

Robert Dessaix, Cartas de Veneza (Night Letters, 1996), trad. Mário Dias Correia, Gótica, Lisboa, 2002, p. 122.

València / Valência, Plaça de l'Ajuntament

fotografia: filipe sousa | 11 março 2020



























PERFILADOS DE MEDO

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (Poemas com Endereço, 1962), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 191.

Bordeaux / Bordéus, Rue Cornac / Rue Notre Dame

fotografia: filipe sousa | 8 janeiro 2020



























«-Mas, afinal, de que acampamento está a falar?... - Dupont.
-Ah! Perdão!... Nesse ponto, não concordo consigo!... São autênticos ciganos!... Vi-os como o estou a ver a si, jovem! - Girassol.
-Oiçam lá, o vosso Girassol não estará um pouco... Ham... Não?... Não pára de falar num acampamento de ciganos... - Dupond.
-Mas, é verdade! Há um acampamento de ciganos aqui perto... - Haddock.
-O quê? É verdade?... Não nos podia ter dito isso há mais tempo? Eis os culpados!... sem sombra de dúvida!... - Dupond.
-Mas porquê? Que provas tem?... - Tintim.
-Provas?... Nós as encontraremos! Aqueles indivíduos são todos ladrões!... Ah! Isto vai ser rápido!... Vamos, leve-nos a esse acampamento! - Dupond.
-Está bem! De boa vontade... Mas, lá porque são ciganos, não tem o direito de suspeitar deles. - Tintim.
-Aliás, muito me espantaria que eles ainda lá estivessem! Devem ter-se raspado depois do golpe... - Dupond.
-Não acredito nisso! - Tintim.
-Então, esse acampamento?... - Dupond.
-OH! - Tintim.
-Então? - Dupont.
-Fo-foram-se embora! E, no entanto, ainda ontem à noite os vi... - Tintim.
-Hem!... O que é que eu lhe disse? Não foi que eles se teriam raspado?... - Dupont.
-Mas não irão longe!... - Dupond.
-...Repito: ordem a todas as brigadas da polícia para interceptarem uma caravana de ciganos que partiu, há algumas horas, de Moulinsart com destino desconhecido... - polícia na esquadra.
Dois dias depois... 
-"O inquérito sobre o roubo de que foi vítima Bianca Castafiore prossegue. Etc... etc... Ah!... Os ciganos sobre quem pesam fortes suspeitas foram postos sob vigilância. No entanto, nos meios judiciários mantem-se a maior discrição sobre este caso que..." - Tintim lendo uma notícia de jornal.
-Coitados!... Eu continuo persuadido da sua inocência. - Tintim.
-Eu, também punha as mãos no fogo, mas... - Haddock.
(...)
-Nós viemos apenas por descarga de consciência... Aaah por abuso de consciência, porque, na verdade, não vemos o que mais ele nos poderá dizer a esse respeito. Duma vez por todas, foram os ciganos, ajudados pelo macaco, que deram o golpe! - Dupond.
-Direi mesmo mais: o caso é claro. É a minha opinião e partilho-a... - Dupont.
-A única coisa que Tintim nos poderia revelar é o local onde a jóia está escondida... É isso... - Dupont.
-Pois bem! É isso mesmo, meus senhores, que, se me quiserem acompanhar, vos irei mostrar! - Tintim.
-Você? - Haddock.
-Não!!! - Dupont.
-Sim??? - Dupond.
-Descobriu o sítio onde os ciganos esconderam a esmeralda?... - Haddock.
-Os ciganos nada esconderam!... - Tintim.
-Olhem lá para cima!... é ali que se encontra, com certeza, a chave do mistério!... - Tintim.
-Lá em cima? - Dupont.
-Lá em cima, onde? - Dupond.
-Sim, lá em cima onde? - Haddock.
-Lá em cima, naquele choupo... - Tintim.
-Naquele choupo? Tudo o que eu vejo é um ninho! - Haddock.
-Sim, mas é um ninho de pega, capitão... - Tintim.
-O quê?...Quer dizer que... - Haddock.
(Os Dupont/d batem com as cabeças nas árvores do bosque e estatelam-se)
-Que foi uma pega que roubou a esmeralda! Sim, sou capaz de pôr a mão no fogo!... - Tintim.
-? - Haddock.
-Raios e coriscos! Então é para trepar até ao ninho que foi buscar o material do tio Vanneau?... - Haddock.
-Exactamente! - Tintim.
-Tintim! Por favor, tenha cuidado!... - Haddock.
-Sim... - Tintim.
-HÉ-É-ÉK! - pega.
-Por amor de Deus, Tintim, seja prudente!... - Haddock.
-Esteja sossegado, eu... - Tintim
CRAC - um ramo parte-se.
-Cuidado, aí!... Partiu-se um ramo!... - Tintim. 
(Na fuga, os Dupont/d batem de novo com as cabeças nas árvores e voltam a estatelar-se)
-Não aconteceu nada de mal!... E você, encontrou alguma coisa?... Haddock.
-Sim, aqui está o dedal de Irma!... - Tintim.
-E A ESMERALDA! AQUI ESTÁ A ESMERALDA!... - Tintim.
-Bocados de vidro!... Um berlinde de ágata... Um monóculo... É tudo... vou descer. - Tintim.
-Hê-ê-ék! Ladrão! - pega.
-Magnífico!... Tintim, você é um ás!... Mas por que razão se lembrou de repente da pega? - Haddock.
-Qual era o título da ópera de que o jornal falava há bocado? - Tintim.
-Eu já não sei... Qualquer coisa como "pizza" ou "ragazza"... - Haddock.
-La "Gazza Ladra", o que quer dizer: a pega ladra!... Para mim, foi a luz! - Tintim.
-Disse para comigo mesmo: "Há uma gazza ladra nas imediações! Onde?... Junto do sítio onde a tesoura, caída do ninho da gatuna, foi encontrada pela pequena Mirka"... Fui a correr ver nesse sítio: havia um ninho!... E eis os ciganos fora da questão! - Tintim.
-Já é pouca sorte nossa! Da única vez que tínhamos encontrado os culpados, arranjaram maneira de os ilibar!... - Dupont, com o olho negro.
-É verdade, realmente parece que fazem de propósito!... - Dupond, com o olho negro.»

Hergé, As Jóias de Castafiore  (Les bijoux de la Castafiore, 1961/1962), Difusão Verbo, Bélgica, 2000, pp. 47, 48, 58, 59, 60.