Corfu, Παλαιοκαστρίτσια / Paleocastrizzia

fotografia: filipe sousa | 17 junho 2023

 






















Dia 5 - Ilha de Corfu (Paleocastrizzia)
Se Paleocastrizzia, na costa oeste de Corfu, é um dos lugares onde a lenda situa o naufrágio de Ulisses, antes de este atingir a Ítaca natal, e o seu encontro, na praia, com a princesa Nausícaa, não custa também imaginar que o mosteiro que se ergue neste penhasco sobranceiro ao mar é o palácio de Alcínoo, rei dos Feácios e pai de Nausícaa, com os seus jardins magníficos, tais como são descritos na Odisseia. Poderá haver melhor lugar para nos sentarmos a sonhar de olhos abertos do que os degraus deste mosteiro, com o mar e o céu azul em fundo? Tudo na Grécia é concebido para a eternidade.

«Fora do pátio, começando junto às portas, estendia-se
o enorme pomar, com uma sebe de cada um dos lados.
Nele crescem altas árvores, muito frondosas,
pereiras, romãzeiras e macieiras de frutos brilhantes;
figueiras que davam figos doces e viçosas oliveiras.
Destas árvores não murcha o fruto, nem deixa de crescer
no inverno nem no verão, mas dura todo o ano.
Continuamente o Zéfiro faz crescer uns, amadurecendo outros.
A pêra amadurece sobre outra pêra; a maçã sobre outra maçã;
cacho de uvas sobre outro cacho; figo sobre figo.

Aí está também enraizada a vinha com muitas videiras:
parte dela é um local plano de temperatura amena,
seco pelo sol; na outra, homens apanham uvas.
Outras uvas são pisadas. À frente estão uvas verdes
que deixam cair a sua flor; outras se tornam escuras.

Junto à última fila da vinha crescem canteiros de flores
de toda a espécie, em maravilhosa abundância.
Há duas nascentes de água: uma espalha-se por todo
o jardim; do outro lado, a outra flui sob o limiar do pátio
em direcção ao alto palácio: dela tirava o povo a sua água.
Tais eram os belos dons dos deuses em casa de Alcínoo.»

Homero, Odisseiacanto VII, vs. 112-132, trad. Frederico Lourenço, Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p. 119.

Κέρκυρα / Kérkyra / Corfu, Γαρδίκι / Gardiki

fotografia: filipe sousa | 17 junho 2023

 






















Dia 5 - Ilha de Corfu (Gastouri, Gardiki, Paleocastrizzia)
Chego a Gastouri com a expectativa não tanto de visitar o pesado Achilleon, o palácio de Sissi, menos conhecida por Elisabeth, imperatriz da Áustria, mas o seu magnífico jardim suspenso sobre a costa, a escassos dez quilómetros a sul da cidade de Corfu. Acabo por bater com o nariz no portão. Encerrado durante os próximos dois anos por motivo de obras de conservação, informa-me um guarda.
A decepção dura até encontrar bem perto as primeiras oliveiras monumentais, responsáveis por boa parte do coberto vegetal da ilha e cujo plantio foi incentivado pelos venezianos a partir do final do século XIV. Este interesse explica-se porque os camponeses corfiotas recebiam uma recompensa de dez moedas de ouro por cada olival de cem oliveiras plantadas. Ao mesmo tempo, pagavam os impostos em azeite. A maioria das árvores é desse tempo, atingindo dimensões invulgares devido a nunca terem sido podadas! De entre os que foram tocados pela sua beleza, conta-se Edward Lear (1812-1888), que visitou a ilha em duas ocasiões, 1848 e 1855, e nos deixou magníficas gravuras destas oliveiras centenárias, de troncos amplos e retorcidos.
Vou confirmando, nos vários olivais que visito, que as azeitonas são varejadas de forma tradicional ou então, nos olivais instalados em declives, caem naturalmente sobre redes, sem tocarem no chão, que as encaminham para lugares de recolha em zonas mais baixas. Em Paleocastrizzia, encontrei um olival assim, tão próximo da costa que havia restos de azeitonas na praia e até no fundo do mar!
Aqui não há vestígios de tratamentos químicos e as árvores são intocáveis, o que faz com que passear nestes olivais seja um prazer e o azeite obtido de uma grande pureza. Em vez de olivais intensivos e superintensivos, encontramos florestas cerradas em que as oliveiras são respeitadas como divindades. Pura poesia! Chego assim a Lawrence Durrell e Eugénio de Andrade, e à homenagem de ambos às oliveiras de Corfu.

SOBRE O DESEJO


Hei-de levar este esplendor para um poema, dizia eu, sempre que me estendia à sombra branca e miúda de uma oliveira. Mas fosse onde fosse, em terras de Corfu ou de Maiorca, nos campos de Siena ou no chão da minha infância, sempre adormeci sobre o desejo.
Hoje, que a violência do estio me levou a escarvar a própria pedra, queria apenas uma dessas árvores de bruma, por mais exígua, e adormecer à sua sombra.

Eugénio de Andrade, «Memória Doutro Rio» (1976-1977), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed., Limiar, Porto, s.d., pp. 252-253.


OLIVES

The grave one is patron of a special sea,
Their symbol, food and common tool is one,
Yet chthonic as ever the ancients realized,
Nothing your tips in trimmings kindled quick,
Your mauled roots roared with confused ardours,
Holding in heat, like great sorrows contained
By silence; dead branch or alive grew pelt
Refused the rain and haboured the ample oil
For lamps to light the human eye.

So the poets confused your attributes,
Said you were the Other but also the domestic useful,
And as the afflatus thrives on special discontents,
Little remedial trespasses of the heart, say,
Which grows it up: poor heart, starved pet of the mind:
They supposed your serenety compassed the humann span, 
Momentous, deathless, a freedom for the chain,
And every one wished they were like you,
Who live or dead brought solace,
The gold spunk of your berries making children fat.
Nothing in you being lame of fraudulent
You discountenanced all who saw you.

No need to add how turning downwind 
You pierce again today the glands of memory,
Or how in summer calms you still stand still
In etchings of a tree-defining place.

Lawrence Durrell, Poems, Faber and faber Limited, London, 2006, p. 47.

Κέρκυρα / Kérkyra / Corfu

fotografia: filipe sousa | 17 junho 2023

 

















Dia 5 - Ilha de Corfu (cidade de Corfu)
Acordo com o apito de um navio de cruzeiro a ecoar na cabeça, que me faz saltar da cama para a marginal de Corfu. Por muito grande e atenta que seja a deambulação exploratória, como é a minha, em vão se procuram traços gregos na arquitectura da cidade de Corfu. Em vez do habitual casario térreo cubista desalinhado e padrão cromático azul e branco característico de muitas das ilhas helénicas, aqui vigora o estilo veneziano, fruto da presença da Sereníssima na ilha durante mais de quatrocentos anos (de 1386 a 1797), bem visível nas suas casas altas apalaçadas, de fachadas com molduras e combinações harmoniosas de ocre e rosa. Para não falar das antigas fortalezas, também elas de feitura veneziana, decisivas para proteger a cidade dos frequentes ataques turcos no passado, e que possibilitam hoje excelentes vistas sobre a cidade, a baía de Garitsas e as montanhas da Albânia, do outro lado do estreito. Isto para quem quiser dar-se ao trabalho de subir o morro até ao farol ou ao topo onde se ergue uma enorme cruz de ferro, bem entendido. Há ainda redutos em que são notórias influências francesas, como os edifícios com galerias junto à Esplanada central ou o bonito largo onde se encontra a principal Igreja da cidade, consagrada a Santo Espiridão. Acabo de chegar ao largo, a tempo de assistir a uma missa segundo o rito bizantino.
Mas se a arquitectura é, no essencial, veneziana, o ambiente que se vive em Corfu prima por ser cosmopolita. Foi assim no passado; é assim no presente. Por exemplo, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, convergia para aqui uma fauna de refractários, excêntricos e abonados do mundo inteiro à procura do seu Paraíso, o que quer que isso fosse. Muitos vieram por pouco tempo; e muitos acabaram por ficar uma vida ou grande parte dela. Como aconteceu com os Durrell (para quem viu a série ou para quem é leitor de Lawrence Durrell, o autor do Quarteto de Alexandria, sabe do que estou a falar).
Hoje em dia, as esplanadas enchem-se sobretudo de nórdicos e ingleses que chegam para viver, por breves horas que seja, os prazeres da cidade, sobretudo passageiros em trânsito dos navios de cruzeiro. Há também uma elite de jovens abastados - indicam-no a roupa de marca que vestem e os perfumes caros que emanam -, que aqui encontra bons motivos de diversão. Basta percorrer a baixa da cidade numa sexta-feira ou sábado à noite para confirmar que Corfu se transformou numa Meca para uma certa juventude de latitudes mais a norte, ávida de céu e mar azul, que aqui pode dar largas ao seu desejo de viver a vida fora de casa, mas não tão longe assim que a faça temer pela sua segurança. Privilégio de quem nasceu deste lado do mundo.
Enquanto peço um café na Esplanada e constato que há poucos jovens na rua – com certeza estarão ainda a dormir depois de uma noite de folia -, não duvido que um Durrell tenha estado exactamente onde estou agora, recolhendo impressões para a sua escrita.
Abro o livro que trago comigo, titulado Corfu, e a descrição de Robert Dessaix ganha subitamente uma dimensão real:

«Caminhei lentamente com a multidão em direcção à cidade que ficava na colina, com os olhos postos na fabulosa cidadela veneziana elevando-se do mar num amontoado rochoso à minha direita. E sobre o topo das suas muralhas, proclamando a morte e ressurreição de Jesus aos infiéis na Albânia para lá do estreito, erguia-se a cruz mais ostensiva e monstruosa da cristandade. (...)

Não há nada de grego na cidade de Corfu. De facto, essa é provavelmente a razão por que muitos estrangeiros a acham tão atraente. É uma cidade veneziana, um labirinto de ruas estreitas pavimentadas por paralelepípedos entre duas sólidas fortalezas venezianas. Ao fim e ao cabo os Venezianos estiveram aqui mais de quatrocentos anos. Ao longo do cume dos penhascos, entre o Forte Velho, sobressaindo em direcção ao mar com a cruz ao topo, e a elegância das colunatas da velha cidade, há uma faixa de parque, resplandecente de árvores-da-Judeia violáceas na altura da Páscoa, onde os Corfiotas gostam de passear em grupos barulhentos e de vez em quando jogar críquete. (...)

...fiz o que as pessoas com tempo para gastar fazem em lugares estranhos: sentei-me a uma mesa debaixo dos arcos de frente para o parque (mais Paris do que Veneza, na verdade, esta faixa de cafés, construídos pelos Franceses para se lembrarem da rue de Rivoli), pedi um café e comecei a escrever um postal. Era aqui que, no tempo de Durrell antes da Segunda Guerra Mundial, todos se juntavam (todos bem vestidos, ou seja, todos com dinheiro no bolso para se escandalizarem uns aos outros com bocados de bisbilhotices sumarentas. Talvez o façam ainda em momentos mais tranquilos, mas nesse dia as mesas estavam atravancadas com Atenienses exageradamente vestidos, para não referir as hordas de Dinamarqueses e Holandeses imponentes.»

Robert Dessaix, Corfu (Corfu, 2001), trad. Ana Teresa Castro, rev. lit. Maria da Piedade Ferreira, editora Gótica, Algés, 2004, pp. 41-42.     

Ιόνιο Πέλαγος / Mar Jónico

fotografia: filipe sousa | 16 junho 2023

 

















Dia 4: Igoumenitsa-Ilha de Corfu
O ferry zarpa do porto de Igoumenitsa com a proa apontada à ilha de Corfu. São dezoito milhas náuticas entre um ponto e outro, no mar Jónico, que se vencem em uma hora e meia de tranquila navegação. Uma viagem de sonho, por que esperei a vida inteira.
À medida que os contornos das ilhas de Paxos e Antípaxos, à esquerda, se vão esfumando na distância, a costa leste de Corfu e as montanhas albanesas começam a desenhar-se no horizonte, num crescendo de nitidez. Mais a sul, fica o penhasco da ilha de Lefkada, de onde Safo saltou para a eternidade. E mais a sul ainda, adivinha-se Ítaca, com a sua aura de lenda homérica.
Entretanto, o tempo dá sinais de querer mudar de novo. Céu e mar fundem-se na mesma cor de chumbo e a chuva é uma inevitabilidade à entrada da cidade de Corfu. Tornando os ocres e os rosas dos edifícios venezianos ainda mais brilhantes, como numa pintura renascentista.
A partir do momento em que piso a ilha, sei que tenho dois dias bem contados para pôr o meu plano em prática: visitar o Achilleon, o palácio de Elisabeth, imperatriz da Áustria, mais conhecida por Sissi, deambular pela cidade de Corfu, na peugada dos Durrell, visitar a Casa Branca onde viveram e também Paleocastrizzia e Kassiopi, conhecer algumas praias paradisíacas, banhar-me nas suas águas transparentes, cor de safira, e abraçar as oliveiras colossais da ilha, convocando Edward Lear e as suas aguarelas. Como alguém disse: estar em Corfu ultrapassa o estado de felicidade; é a ventura absoluta! A descrição de Lawrence Durrell não podia ser mais apropriada à ocasião:

«(...) à frente do navio está a terra e à direita a corcova duma ilha. A ilha é fácil de identificar - aquelas montanhas imponentes, polidas como peças de fruta numa loja, são albanesas. São grandes e calvas, com as cores quentes que o sol lhes dá ao elevar-se com esforço por cima dos ombros delas para brilhar sobre o mar. Corfu jaz como uma foice pousada junto aos flancos do litoral continental e forma uma baía grande e tranquila que se estreita em ambas as extremidades, de modo que as marés espremem-se e acalmam-se ao entrarem nela. (...) gradualmente o canal principal torna-se visível, e com ele o antigo farol veneziano que indica os baixios. Agora o navio vira abruptamente, com se rodasse nos calcanhares, e aponta a sul, deixando a Albânia à sua esquerda. À direita é o canal, tão estreito que as primeiras aldeias estão, ou parecem estar, apenas a umas centenas de metros de distância. De facto, no seu ponto mais estreito, o extremo norte de Corfu está separado da Albânia apenas por dois quilómetros de mar.»

Lawrence Durrell, As Ilhas Gregas (The Greek Islands, 1978), trad. Carlos Leite, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2016, pp. 21-22.     

Ηγουμενίτσα / Igoumenitsa

fotografia : filipe sousa | 16 Junho 2023

 

















Dia 4: Tessalónica - Igoumenitsa
Quatro horas e meia, o equivalente a trezentos e vinte quilómetros, foi quanto o autocarro demorou para ligar o mar Egeu ao mar Jónico, o mesmo é dizer Tessalónica a Igoumenitsa, cruzando as regiões de Macedónia e Epiro. Um percurso montanhoso, ora atravessando túneis ora sobre as nuvens, com a morada dos deuses à esquerda (Olimpo) e a dos ursos-pardos à direita, a julgar pelo número invulgar de sinais de trânsito que nos alertam para a sua presença ao longo de florestas a perder de vista.
Sob chuva tocada a vento, às vezes copiosa, vi-me grego para chegar ao destino, perto da fronteira entre a Grécia e a Albânia. Só descansei na descida para Igoumenitsa, com a aparição das primeiras oliveiras e dos primeiros raios de sol.
Nada comparável com a tormenta que Ulisses enfrentou, instigada pelo irascível Poseidon, e o fez naufragar não longe daqui, junto à ilha dos Feácios.
É para lá que me dirijo agora, a bordo do ferry Corfu Spirit.

«Durante dezassete dias naveguei sobre o mar;
no décimo oitavo dia apareceram as montanhas sombrias
da vossa terra: alegrou-se à sua vista o coração deste homem
malfadado: pois na verdade eu estavas prestes a sofrer algo
de terrível que contra mim mandara Posídon, Sacudidor da Terra.
Agitou os ventos, assim atando o meu percurso; encrespou
o mar de modo indizível, a ponto de as ondas não deixarem
que eu fosse levado, gemendo sem cessar, pela jangada,
que seria despedaçada pela tempestade. Mas eu atravessei
a nado o grande abismo do mar, até que atingisse
a vossa terra, levado pelo vento e pelo mar.
Mas ao tentar sair da água, as ondas atiravam-me contra a costa,
contra os grandes rochedos, sítio que nada tinha de aprazível.
Recuei e pus-me de novo a nadar, até que cheguei a um rio, que me pareceu o melhor sítio:
livre de rochas; abrigado do vento.»

Homero, Odisseiacanto VII, vs. 267-282, trad. Frederico Lourenço, Livros Cotovia, Lisboa, 2003, pp. 123-124.

Θεσσαλονίκη / Tessalónica, Άνω Πόλη / Ano Poli

fotografia: filipe sousa | 15 junho 2023

 

















Dia 3 - Tessalónica
Debaixo de viadutos ou entre prédios modernos, as ruínas do passado despontam como cogumelos em Tessalónica, marcando a fisionomia da cidade. Umas mais preservadas do que outras, mas todas importantes para a história do lugar, revelam o que foram torres, muralhas, arcos, anfiteatros, igrejas, oratórios… Dos períodos micénico, helenístico, romano, bizantino e otomano, mas também de tempos recentes como as casas devolutas, dos séculos XIX-XX, da cidadela de Ano Poli, onde Tessalónica teve início. É este o local ideal, a partir do mirante do convento bizantino de Vlatadon, para descobrir a beleza oculta da cidade, feita de amálgamas e vicissitudes, de construções e reconstruções, de antigo e moderno, de ordem e desleixo, de mundos tão diversos que, longe de destoarem, lhe conferem uma aura especial. Como já notara Lawrence Durrell, um incondicional amante do mundo helénico, «a Grécia é um jardim selvagem onde tudo cai em ruínas, violenta, vertical e blasfema…mas não domada».
Algo a que também foi sensível o nosso Eugénio de Andrade quando por aqui passou.

«Parco de haveres, nascido em terras onde a luz à noite era de azeite e o pão tinha a cor das pedras, todo o excesso me parece uma falta de gosto, todo o luxo uma falta de generosidade. Dito isto, não poderá estranhar-se que me sinta tão religado ao solo pobre e arcaico da Grécia e à fecunda harmonia da sua cultura: o mar de Homero entre as colunas de Súnion, as ruas de Salónica com os muros acabados de caiar, a sombra luminosa dos degraus de Epidauro, onde ressoam ainda os versos supremos de Esquilo, têm para mim um prestígio que nenhum parque de Londres, ou praça de Paris, ou avenida de Nova York poderão alcançar a meus olhos.»

Eugénio de Andrade, À Sombra da Memória, Fundação Eugénio de Andrade, Porto, 1993, p. 130.

Αιγαίο Πέλαγος, Θερμαϊκός Κόλπος / Mar Egeu, Golfo Termaico

fotografia: filipe sousa | 14 junho 2023

 

















Dia 2 - Mar Egeu, ao largo do golfo Termaico
O meu baptismo nos mares da Grécia aconteceu quando Poseidon me convenceu a subir a bordo de um trirreme fundeado no porto de Tessalónica, comandado pelo próprio deus dos mares. Com a promessa de cerveja gelada na amurada, mar azul, céu luminoso e uma Ítaca perdida no horizonte. Já ao largo do golfo Termaico, brindámos à minha iniciação, ao concretizar de um sonho antigo, Ele empunhando o seu tridente e eu a minha cerveja bem alto. Foi então que Ele me falou de alguém do meu país, uma tal de Sophia, que amava a Grécia como poucos mortais e conhecia a linguagem dos deuses. E com a omnisciência que O caracteriza, traduziu-me assim a felicidade da poetisa quando também ela sulcou os Seus mares pela primeira vez, há precisamente sessenta anos, uma vírgula de tempo para um Deus:

«11 de Setembro de 1963

Manhã maravilhosa. Acordo antes das 8 e às 9 já estou no deck. Vejo aparecer a ilha de Leukos. Vou para a proa e sento-me num monte de cabos. Manhã deslumbrante. O mar azul, o céu azul, a ilha azul. Azul escuro do mar, azul claro do céu, azul enovoado da ilha. A água coberta de brilhos. Passam golfinhos rente ao navio. Na água, em contra-luz, aparece um arco-íris.
Sem ti deslizo no brilho do mar grego
Sem ti vejo metade do que vejo
Sem ti o sono é breve e o dia mutilado
Como as colunas do templo
Belo mas dos deuses separado.»

Sophia de Mello Breyner Andersen, Fragmentos do diário manuscrito na primeira viagem à Grécia em 1963.

Θεσσαλονίκη / Tessalónica, Av. Leoforos Nikis

fotografia: filipe sousa | 13 junho 2023

 
















Dia 1 - Tessalónica
A viagem começa aqui, com o Mediterrâneo em pano de fundo. Por estes dias, o Destino, a que os gregos chamam Moira, reserva-me outros destinos com que sempre sonhei, do Egeu, Jónico, Adriático e Tirreno. Felizmente que a Moira é dada a ideias fixas e inamovível; e nem os próprios deuses homéricos podem alterá-la. Assim começa a minha pequena odisseia. Na Macedónia grega, à beira do Egeu. Em Tessalónica.

«O tempo deixou de existir, só eu existia, levado pela corrente num barco lento, disposto a conhecer quem aparecesse e a aceitar o que acontecesse. (...) Vais gostar da Grécia… aquela ficou-me gravada na cabeça. «Meu Deus, é mesmo verdade, eu gosto da Grécia», dizia para mim mesmo vezes sem conta, encostado à amurada, enquanto absorvia o movimento e o rebuliço. Inclinei-me para trás e olhei para o céu. Nunca tinha visto um céu como aquele. Era magnífico. Senti-me completamente separado da Europa. Tinha entrado num novo reino como um homem livre – tudo se conjugara para tornar a experiência única e fecunda.»

Henry Miller, O Colosso de Maroussi  (The Colossus of Maroussi, 1941), trad. Raquel Mouta, Tinta-da-China, Lisboa, 2021, pp. 25, 27.

Berlin / Berlim, Tempelhofer Feld

fotografia: filipe sousa | 6 Junho 2019

 

















Ontem, celebrou-se/celebrámos mais um Dia Mundial da Bicicleta, e, no entanto, não há meio de deixarmos de ser o país que menos investe na mobilidade em bicicleta em toda a Europa.
Entretanto, noutras paragens:

«Aqui em Berlim, sigo de bicicleta pelas ciclovias e parece-me tudo muito civilizado, agradável e instruído. Não há carros estacionados ou a andar nas ciclovias, e os ciclistas também não andam nas ruas nem nos passeios. Há umas luzinhas de stop só para os ciclistas e até sinais para virar (os ciclistas têm direito a virar uns segundos antes do resto do trânsito, para permitir que saiam do caminho)! Escusado será dizer que, aqui, a maioria dos ciclistas pára mesmo quando vê estas luzes. E os peões também não se enfiam nas ciclovias! Estou um bocadinho em choque - funciona tudo tão bem. Porque é que não pode ser assim onde eu vivo?»

David Byrne, Diário da Bicicleta (Bicycle Diaries, 2009),  trad. Vasco Teles de Menezes, Quetzal Editores, Lisboa, 2010, p. 64.

Nota: David Byrne (esse mesmo, o fundador dos Talking Heads!) usa a bicicleta, desde o princípio dos anos 1980, como principal meio de transporte em Nova Iorque.