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fotografia: filipe sousa | 17 junho 2023 |
Dia 5 - Ilha de Corfu (cidade de Corfu)
Acordo com o apito de um navio de cruzeiro a ecoar na cabeça, que me faz saltar da cama para a marginal de Corfu. Por muito grande e atenta que seja a deambulação exploratória, como é a minha, em vão se procuram traços gregos na arquitectura da cidade de Corfu. Em vez do habitual casario térreo cubista desalinhado e padrão cromático azul e branco característico de muitas das ilhas helénicas, aqui vigora o estilo veneziano, fruto da presença da Sereníssima na ilha durante mais de quatrocentos anos (de 1386 a 1797), bem visível nas suas casas altas apalaçadas, de fachadas com molduras e combinações harmoniosas de ocre e rosa. Para não falar das antigas fortalezas, também elas de feitura veneziana, decisivas para proteger a cidade dos frequentes ataques turcos no passado, e que possibilitam hoje excelentes vistas sobre a cidade, a baía de Garitsas e as montanhas da Albânia, do outro lado do estreito. Isto para quem quiser dar-se ao trabalho de subir o morro até ao farol ou ao topo onde se ergue uma enorme cruz de ferro, bem entendido. Há ainda redutos em que são notórias influências francesas, como os edifícios com galerias junto à Esplanada central ou o bonito largo onde se encontra a principal Igreja da cidade, consagrada a Santo Espiridão. Acabo de chegar ao largo, a tempo de assistir a uma missa segundo o rito bizantino. Mas se a arquitectura é, no essencial, veneziana, o ambiente que se vive em Corfu prima por ser cosmopolita. Foi assim no passado; é assim no presente. Por exemplo, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, convergia para aqui uma fauna de refractários, excêntricos e abonados do mundo inteiro à procura do seu Paraíso, o que quer que isso fosse. Muitos vieram por pouco tempo; e muitos acabaram por ficar uma vida ou grande parte dela. Como aconteceu com os Durrell (para quem viu a série ou para quem é leitor de Lawrence Durrell, o autor do Quarteto de Alexandria, sabe do que estou a falar).
Hoje em dia, as esplanadas enchem-se sobretudo de nórdicos e ingleses que chegam para viver, por breves horas que seja, os prazeres da cidade, sobretudo passageiros em trânsito dos navios de cruzeiro. Há também uma elite de jovens abastados - indicam-no a roupa de marca que vestem e os perfumes caros que emanam -, que aqui encontra bons motivos de diversão. Basta percorrer a baixa da cidade numa sexta-feira ou sábado à noite para confirmar que Corfu se transformou numa Meca para uma certa juventude de latitudes mais a norte, ávida de céu e mar azul, que aqui pode dar largas ao seu desejo de viver a vida fora de casa, mas não tão longe assim que a faça temer pela sua segurança. Privilégio de quem nasceu deste lado do mundo.
Enquanto peço um café na Esplanada e constato que há poucos jovens na rua – com certeza estarão ainda a dormir depois de uma noite de folia -, não duvido que um Durrell tenha estado exactamente onde estou agora, recolhendo impressões para a sua escrita.
Abro o livro que trago comigo, titulado Corfu, e a descrição de Robert Dessaix ganha subitamente uma dimensão real:
«Caminhei lentamente com a multidão em direcção à cidade que ficava na colina, com os olhos postos na fabulosa cidadela veneziana elevando-se do mar num amontoado rochoso à minha direita. E sobre o topo das suas muralhas, proclamando a morte e ressurreição de Jesus aos infiéis na Albânia para lá do estreito, erguia-se a cruz mais ostensiva e monstruosa da cristandade. (...)
Não há nada de grego na cidade de Corfu. De facto, essa é provavelmente a razão por que muitos estrangeiros a acham tão atraente. É uma cidade veneziana, um labirinto de ruas estreitas pavimentadas por paralelepípedos entre duas sólidas fortalezas venezianas. Ao fim e ao cabo os Venezianos estiveram aqui mais de quatrocentos anos. Ao longo do cume dos penhascos, entre o Forte Velho, sobressaindo em direcção ao mar com a cruz ao topo, e a elegância das colunatas da velha cidade, há uma faixa de parque, resplandecente de árvores-da-Judeia violáceas na altura da Páscoa, onde os Corfiotas gostam de passear em grupos barulhentos e de vez em quando jogar críquete. (...)
...fiz o que as pessoas com tempo para gastar fazem em lugares estranhos: sentei-me a uma mesa debaixo dos arcos de frente para o parque (mais Paris do que Veneza, na verdade, esta faixa de cafés, construídos pelos Franceses para se lembrarem da rue de Rivoli), pedi um café e comecei a escrever um postal. Era aqui que, no tempo de Durrell antes da Segunda Guerra Mundial, todos se juntavam (todos bem vestidos, ou seja, todos com dinheiro no bolso para se escandalizarem uns aos outros com bocados de bisbilhotices sumarentas. Talvez o façam ainda em momentos mais tranquilos, mas nesse dia as mesas estavam atravancadas com Atenienses exageradamente vestidos, para não referir as hordas de Dinamarqueses e Holandeses imponentes.»
Robert Dessaix, Corfu (Corfu, 2001), trad. Ana Teresa Castro, rev. lit. Maria da Piedade Ferreira, editora Gótica, Algés, 2004, pp. 41-42.
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