Bourdeaux / Bordéus, Place de Quinconces

fotografia: filipe sousa | 8 janeiro 2020

 















— Ora a bicicleta resolveu o problema. Remedeia a nossa lentidão e suprime a fadiga. O homem tem agora à disposição todos os meios. O vapor e a electricidade não passam de progressos que serviam o seu bem‑estar. A bicicleta é um aperfeiçoamento do próprio corpo, quer dizer, o seu acabamento. É um par de pernas mais rápidas que lhe é oferecido. O homem e a máquina são um só. Não são dois seres diferentes como o homem e o cavalo, dois instintos em oposição. Não, é um só ser, um autómato feito de uma só peça. Não há um homem e uma máquina. Há só um homem mais rápido.

Maurice Leblanc, Voici des ailes!, 1897, in De Bicicleta, Antologia de textos, trad. José Cláudio, Júlia Ferreira, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2012, pp. 11-12. 

Lagoa da Albufeira

fotografia: filipe sousa | 23 dezembro 2024

 






















«EPIDAURO

O cardo floresce na claridade do dia. Na doçura do dia se abre o figo. Eis o país do exterior onde cada coisa é
trazida à luz
trazida à liberdade da luz
trazida ao espanto da luz (…)»
Sophia de Mello Breyner Andersen, Poemas escolhidos (Geografia, 1967), Círculo de Leitores, 1981, p. 98.

Bourdeaux / Bordéus

fotografia: filipe sousa | 9 dezembro 2024

 

















Soneto do vinho

Em que reino, em que século, sob que silenciosa
Conjugação astral, em que secreto dia
Que o mármore não salvou, surgiu a valorosa
Ideia singular de inventar a alegria?
Com outonos dourados a inventaram. O vinho
Vai fluindo vermelho pelas gerações
Como o rio do tempo e no árduo caminho
Oferece-nos a música, o fogo, os leões.
Na noite jubilosa ou na jornada adversa
Ele exalta a alegria ou suaviza o espanto
E o ditirambo novo que agora lhe canto
Outrora lhe cantaram o árabe e o persa.
Vinho, ensina-me a arte de ver minha história
Como se ela já fosse cinza na memória.
Jorge Luís Borges, O Outro, o Mesmo (1964), Poesia completa, trad. Fernando Pinto do Amaral, Quetzal, Lisboa, 2022, p. 228.

Reserva Botânica da Mata dos Medos

fotografia: pedro sousa | 1 dezembro 2024

 






















«O que será amanhã, evita perguntar; e seja qual for, dos dias possíveis, aquele que a Sorte dará, regista-o como lucro (…)»

Quinto Horácio Flaco (65 a.C. – 8 a.C.), Poesia Completa, texto latino, estabelecido, traduzido e anotado por Frederico Lourenço, Odes, Livro I, frag. 1.9.13-15, Quetzal, Lisboa, 2023, pp. 45-47.

«(…) Mas tal como é, gozemos o momento,
Solenes na alegria levemente (…)»

Ricardo Reis, Poesia I, Odes, 16-6-1914, Fernando Pessoa, Obra completa de Ricardo Reis, ed. de Jerónimo e Jorge Uribe, Tinta-da-China, Lisboa, 2024, p. 41.

Mata dos Medos, Arriba Fóssil da Costa de Caparica

fotografia: filipe sousa | 30 novembro 2024

 






















UM DIA

Um dia mortos, gastos voltaremos 
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados, irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais, na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Sophia de Mello Breyner Andersen, Poemas escolhidos (Dia do Mar, 1947), Círculo de Leitores, 1981, p. 19.

Monte da Esperança, Moura

fotografia: filipe sousa | 12 setembro 2023 


















(...)
E também Pisa me incita, donde vêm 
para os homens os cantos outorgados pelos deuses,
quando ao vencedor, cumprindo as ordens antigas de Héracles,
o severo arbítrio etólio coloca, sobre as frontes,
à volta dos cabelos,
o adereço de cor glauca da oliveira, que outrora
de junto das nascentes sombrias do Istro
trouxe o filho de Anfitrião,
como belíssima recordação dos jogos em Olímpia, (,,,)

Píndaro (518 a.C.- 438 a.C), Ode Olímpica III a Terão de Agrigento, vencedor na corrida de cavalos (476 a.C.), frag. 9-15, trad. do grego por Frederico Lourenço, Poesia Grega, Quetzal, Lisboa, 2020, pp. 183-185.

Safara, Rua 1º Maio 27

fotografia: filipe sousa | 4 outubro 2024

 
























ALENTEJO

Agonia
dos lentos inquietos
amarelos,
a solidão do vermelho
sufocado,
por fim o negro,
fundo espesso,
como no Alentejo,
o branco obstinado.

Eugénio de Andrade, «Escrita da Terra» (1970-1978), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed., Limiar, Porto, s.d., pp. 144.

Lisboa, Rua Marquês de Fronteira 2

fotografia: filipe sousa | 28 setembro 2024 


«Saí para o jardim, onde caminhei no meio das árvores. É um jardim de muito verde, quase sem flores. O verde é uma cor tranquilizante. As linhas do jardim também. Horizontais e verticais. Árvores e água. Céu, um lago, placas de cimento ladeadas de arbustos, e vastas extensões de prado.
Sentei-me numa cadeira do pequeno anfiteatro ao ar livre. Havia outras pessoas por ali, algumas lendo livros ou jornais, pares de namorados abraçavam-se, crianças corriam em baixo, na relva, seguidas pelo olhar de duas ou três mães sentadas. Um grupo em fato de treino praticava artes marciais. Por cima de nós um avião riscou o céu, deixando atrás de si um traço branco que levou algum tempo a desaparecer.»

Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses, (1ª ed. 2011), 6ª ed., Porto Editora, Porto, 2019, p. 12   

Estação Aeroporto (Metropolitano de Lisboa)

fotografia: filipe sousa | 12 maio 2024























TROMPE L'OEIL

Lembras-te jóia, daquele bacalhau
que comemos em Viana do Castelo?
Parece que foi ontem, mas já lá vão dez anos!
Ainda tinhas tu muito cabelo...

Chovia nesse dia, bem me lembro.
Deixaste no comboio o guarda-chuva.
Quem te mandou levar toda a viagem
a fazer olhinhos à viúva?

Contos largos... Mas quando o bacalhau,
como tu disseste: deu à costa,
esqueceste o guarda-chuva e a viúva
e perguntaste a mim: góta não góta?

Ó jóia! E o azeitinho! Aquilo sim!
P´ra comer só no Norte, só no Norte!
E depois... Na pensão... Os pés juntinhos...
Foi mais forte que nós, muito mais forte!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (Dispersos), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 528.

Amareleja

fotografia: filipe sousa | 23 julho 2024

 






















«Halito do inferno, já duas vezes o suão, ou vento levante, passando o Estreito, todo abrasado da escandencia das areias africanas, veio sobre esses grandes vales argilosos do districto de Beja, lançar a morte; e o verão do paiz sem agua, o verão alemtejano, martyrizante, irradiante, começa a encher d'angustias a provincia, e prepara scenario á colheita cerealifera, que, est'anno foi, sempre lh'o digo, d'uma victoriosa e esplendida abundancia.

(....)

      A ceifa, assêfa, como elles dizem, é o trabalho mais angustiado e estragador da gente alemtejana, por causa do sol, e por isso se paga, conforme os annos e a pressa, duplo ou triplo das outras operações anteriores da sementeira. Nada mais que observando, do caminho de ferro, crepitando, reverberando a luz por entre syncopes de sêde, em colinas sem arvores, ou com sobreiras e azinheiras cuja sombra metalica ainda parece mais asphyxica, em planicies sem fontes, onde nos meados de abril quasi que não ha ribeiros circulantes, para de longe se interpretar a agonia que seja viver hi enterrado, com a fouce na mão, os olhos cegos, a bocca em lama fétida, a pelle dos dedos gretada pelo bisel cortante das gavelas, respirando a moinha palustre que derrama no corpo uma brotoeja insupportavel, onde os insectos se abatem, para sugar o sangue dos irritados borbotões...»

Fialho de Almeida, Ceifeiros, separata ed. Livraria Clássica Editora, Empresa Industrial Gráfica do Porto, s.d., pp. 5-7. 

Moura, rua 5 de Outubro 17

fotografia: filipe sousa | 22 junho 2024

 






















«Procurando uma síntese definidora do Alentejo, tal como o vejo, direi que ele é a luz da cal e a extensão, a seara cor de sol, sob a intensidade do azul; e que nessa extensão acontece, de longe em longe, a quieta serenidade dos sobreiros e das azinheiras. Pureza, miragem do absoluto, voto de vida livre e de transcendência. Um povo pobre e altivo. Terra de muito poucos e, ao mesmo tempo, terra de ninguém. Ou terra de todos para todos, terra do impossível. Do sonho feito vida.»  

Urbano Tavares Rodrigues, A Luz da Cal, 1ª ed., Edição Éter, Ponta Delgada, p.11.

Frankfurt am Main, Großer Hirschgraben 21

fotografia: filipe sousa | 14 junho 2024

 

















«(...)
FAUSTO

Abrir o arquitexto é uma tentação,
Para, com sentir puro e leal,
Verter o sagrado original
No meu tão amado idioma alemão.

           Abre um volume e prepara-se para o trabalho.

«Ao princípio era o Verbo!», é o que está escrito.
Quem me ajuda? Logo aqui hesito!
Tanto não vale o verbo. Não,
Outra vai ter de ser a tradução,
Se bem me inspira o Espírito. Atento
Esta linha tem de ser bem pensada,
Para que a pena não corra apressada!
É o Pensamento que tudo mova e cria?
Certo é: «Ao princípio era a Energia!»
Mas agora que esta versão escrevi,
Algo me avisa já para não parar aí.
Vale-me o Espírito, já vejo a solução,
E escrevo, confiante: «Ao princípio era a Acção!»»

Johann W. Goethe, Fausto (Faust, Eine Tragödie, 1808, 1832), trad. João Barrento, Relógio d'Água Editores, Lisboa, p. 84, vv. 1220-1237.

Berlin / Berlim, Tiergarten

fotografia: filipe sousa | 13 junho 2024

 


















«Os povos do Meio-Dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e austeridade aquela religião dos bosques, tão sagrada para as nações do Norte. (...) há muito pouco entre nós o culto das árvores.»

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (1846), ed. didáctica de Luís Amaro Oliveira, 1977, cap. XXVII, p. 174.

Dresden, Großer Garten

fotografia: filipe sousa | 11 junho 2024

 

















«Andávamos de bicicleta - porque é que isso dá prazer? Muda-se de paisagem mas é o fruto do nosso esforço, sentimo-nos compensados. E há o triunfo do equilíbrio na aresta das duas rodas, todo o nosso corpo subutilizado nesse mínimo de suporte. E há a ascensão de nós nesse movimento alado. E há a simplicidade, quase o esquematismo dessa máquina de andar.»

Vergílio Ferreira, Para sempre, 3ª ed., Livraria Bertrand, Lisboa, 1983, p. 226.

Berlin / Berlim, Hauptstrasse 155

fotografia: filipe sousa | 12 junho 2024

 






















«O Tony Visconti e eu fomos para os estúdios Hansa para terminar a produção do novo disco. Estávamos finalmente em Berlim. Nem o Jim, nem eu perdemos muito tempo a olhar para as listas de êxitos. Berlim chamava-nos, por isso mergulhámos nela como gatos vadios. Passávamos horas nos seus cafés e nos seus cabarés.

Contámos com uma cicerone fabulosa: a Romy Haag, que, num abrir e fechar de olhos, caiu na minha teia de sedução. Parecia saída da Berlim dos anos 1930. envolvemo-nos em tudo o que a cidade nos oferecia e fizemos as nossas farras, embora sem perder as estribeiras. Tinha de ter atenção para os traficantes de Berlim não se aproximarem demasiado do Jim e ele fazia o mesmo comigo. As coisas eram assim: tínhamos de cuidar um do outro.

O IGGY E EU TÍNHAMOS PROBLEMAS GRAVES COM AS DROGAS. PARA RESOLVÊ-LOS, MUDÁMO-NOS PARA BERLIM, CAPITAL MUNDIAL DA HEROÍNA.

O Jim andava todos os dias catorze quilómetros para se pôr em forma. Eu gostava de me perder pelos bairros dos operários estrangeiros e passar horas nas suas pequenas lojas sem que ninguém me reconhecesse. Depois juntávamo-nos e púnhamos as notícias em dia.

Os imigrantes, os cabarés e um muro de betão a dividir a cidade ao meio: tudo aquilo era Berlim. Não podia deixar de pensar num par de namorados a beijar-se em frente do Muro para desafiar aquela estrutura de arame farpado e desconfiança. Assim nasceu »Heroes», um hino que recordava que nada era mais transgressor do que o afecto entre duas pessoas.»

María Hesse, Fran Ruiz, Bowie, Uma biografia (Una biografia, 2018), trad. Lucília Filipe, Penguin Random House, Lisboa, 2019, p. 85.

Praha / Praga, Vězeňská 1

fotografia: filipe sousa | 8 junho 2023

 






















DESEJO DE SE TORNAR ÍNDIO

       Oh, se fôssemos índios, já preparados e, em cima de um cavalo que corre, inclinados contra o vento, estremecêssemos repetidamente sobre o solo que treme até largarmos as esporas porque nunca houve esporas, até deitarmos fora as rédeas porque nunca houve rédeas e quase não víssemos a terra à nossa frente revelar um prado ceifado e liso, agora que o cavalo perdeu o pescoço e a cabeça.

Franz Kafka, «Observação» («Betrachtung», 1913), trad. José Maria Vieira Mendes, in Os Contos, 1º vol., Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 46.

Praha / Praga, Petřín

fotografia: filipe sousa | 8 junho 2024

 

















«Ao chegar ao Monte Petřín, uma colina verdejante que se ergue no centro de Praga, percebeu com espanto que não estava lá ninguém. Era estranho porque habitualmente, e seja a que horas for, as suas áleas estão sempre cheias de gente que lá vai apanhar ar. Sentia-se extremamente angustiada, mas o monte estava tão silencioso e o silêncio era tão tranquilizante que se entregava confiadamente a ele. Subiu, parando de vez em quando para olhar para trás. A seus pés, descobria-se uma infinidade de torres e de pontes. Os santos, com os seus olhos petrificados e posto nas nuvens, erguiam ameaçadoramente os punhos. Era a cidade mais bonita do mundo.»  

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser (Nesnesitelná lehkost byti, 1983), trad. Joana Varela, 25ª ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002, p. 179.

Praha / Praga, Karlův Most / Ponte Carlos

fotografia: filipe sousa  | 7 junho 2024

 






















A JANELA PARA A RUA

Quem leve uma vida solitária e tenha de vez em quando a necessidade de algum tipo de contacto, que, atento às mudanças da hora do dia, mudanças de clima, das relações profissionais e afins, queira ter um simples braço, um qualquer a que se possa agarrar - uma pessoa destas não conseguirá aguentar muito tempo sem uma janela que dê para a rua. E se esta pessoa por acaso não estiver à procura de nada e apenas se aproximar do parapeito, como um homem cansado, para passear os olhos, para cima e para baixo, alternando entre o público e o céu, e não quiser olhar e incline a cabeça um pouco para trás, então, nesse caso, os cavalos lá em baixo arrastá-lo-ão consigo no seu cortejo de carruagens e barulho e assim finalmente em direcção à harmonia humana.

Franz Kafka, «Observação» («Betrachtung», 1913), trad. José Maria Vieira Mendes, in Os Contos, 1º vol., Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 44.

Firenze / Florença

fotografia: filipe sousa | 11 maio 2024
















«Florença tem o tamanho exato das cidades para sempre amadas: tudo se pode conhecer num dia; e todos os dias haverá, dentro dela, coisas para ver - até o fim do mundo, que é mais do que o fim da vida.»

Cecília Meireles, «Voz em Florença» in Crônicas de viagem 2 (1953), reimpr. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, p. 76.


«Florença por dois dias, duas semanas, dois meses? Florença pelo tempo de um suspiro? Mas esta cidade é vasta como um continente, inesgotável como o universo.»

José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia - Ensaio de romance, 1ª edição, Moraes Editores, Lisboa, p. 183.

Firenze / Florença, Oltrarno, San Miniato al Monte

fotografia: filipe sousa | 11 maio 2024























«As oliveiras são plantas estranhas; parecem-se com salgueiros, também ficam ocas, a casca estala e salta. Mas têm um aspecto mais sólido. Vê-se que a madeira cresce lentamente e a sua estrutura é extremamente fina. A folha é do tipo da do salgueiro, mas com menos folhas por ramo. Nos montes à volta de Florença só se vêem oliveiras e vinhas, e entre elas ocupa-se a terra com cereais.»

J.W.Goethe, Viagem a Itália (Italienische Reise, 1786-1787), trad. João Barrento, Relógio d'Água Editores, Lisboa, pp. 140-141.

Firenze / Florença, via Dante Alighieri

fotografia: filipe sousa | 11 maio 2024

 






















«Fiorenza dentro dalla cerchia antica,
onde ella togle ancora a terza e nona,
si stava in pace sobria e pudica.»

«Florença dentro lá da cerca antiga 
aonde a terça e a nona inda ressoa, 
pudica e sóbria estava em paz amiga.»

Dante Alighieri, A Divina Comédia (La Divina Commedia, sec. XIV)Parte III - Paraíso, Canto XV, versos 97-99trad. Vasco Graça Moura, 6ª ed, Bertrand Editora, Chiado, 2002, p. 275. 

Firenze / Florença, Piazza Santa Croce

fotografia: filipe sousa | 11 maio 2024

 


















«Tinha atingido aquele ponto emocional em que as sensações celestiais das belas-artes e os sentimentos apaixonados se encontram. Ao sair de Santa Croce, o meu coração batia forte, a vida esvaziava-se de mim e eu caminhava com medo de cair.» (tradução livre).
Stendhal, Rome, Naples et Florence (1817), éd. Delaunay, Paris,1826, tome II, p. 102.

Rimini

fotografia: filipe sousa | 8 maio 2024


 
















«…nasci em Itália, em Rimini, a 15 de Junho de 1927.

- Porque nasceu em Rimini?

-Porque os meus pais se encontravam lá a banhos, em casa da minha tia Eglantine, irmã de meu pai. Ela casara com um jockey célebre, originário de Urbino. Nasci perto da praia de Lido di Ravenna – entre Ravena e Rimini -, num casebre, não na praia propriamente dita.

-Não há nesse casebre uma placa que assinale o seu nascimento?

-Ouça lá, eu não sou Garibalbi – a mulher dele, Anita, morreu bem perto desse local. Dez dias depois os meus pais regressaram comigo a Veneza.»

Hugo Pratt, O Desejo de Ser Inútil, Memórias e Reflexões (Le Désir D'Être Inutile - Souvenirs et Refléxions, 1991), trad. António Sabler, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2005, pp. 17, 21.
 

«Em direcção a Rimini, Agosto
(…)
Agora começam as praias da minha infância e da minha adolescência: já não se trata de descobertas, mas de constatações.
A Riccione ia veranear quando estava no secundário. Chego: não reconheço quase nada. A nouvelle vague dos banhistas e dos industriais conferiu à praia uma nova violência, um novo sentido no qual triunfam os jovens de hoje, que de novo tudo sabem.
A alameda central, com as duas filas de árvores muito verdes, a sua angústia proto-novecentista, os seus bares cheios como exércitos em formatura, continua mais ou menos igual, Sento-me a uma mesa e, após tantos anos sem o fazer, como um gelado.
Antes, quando com uma alegria interior, comia um gelado todos os dias, tudo aqui era mais absoluto e mais eterno. Os dias eram longuíssimos, eram entidades dotadas de verdadeiro valor e verdadeira duração: o período de férias era um período de vida.»

Pier Paolo Pasolini, A longa Estrada de Areia (La Lunga Strada di Sabbia, 1959), trad. João Coles, Edições do Saguão, Lisboa, 2023, p. 82.

Bologna / Bolonha, Piazza di Porta Ravegnana

fotografia: filipe sousa | 7 maio 2024

 























«Tal como se afigura a Garisenda,
quando passa uma nuvem, inclinada,
de modo tal que ao seu encontro penda, (...)»

Dante Alighieri, A Divina Comédia (La Divina Commedia, sec. XIV)Parte I - Inferno, Canto XXXI, verso 136trad. Vasco Graça Moura, 6ª ed, Bertrand Editora, Chiado, 2002, p. 283. 

«A torre inclinada é uma vista detestável, e no entanto é muito provável que se tenham esmerado por construí-la assim. Encontro a seguinte explicação para este disparate: nos tempos da grande instabilidade urbana todo o grande edifício era uma fortaleza, na qual as famílias poderosas erguiam uma torre. Com o tempo, isto transformou-se numa questão de capricho e prestígio, cada uma queria mostrar a melhor torre, e quando as torres direitas começaram a ficar cada vez mais corriqueiras, alguém mandou construir uma inclinada. E o arquitecto e o proprietário conseguiram o que queriam, porque as pessoas passam pelas muitas torres direitas à procura da inclinada. Subi depois ao cimo desta. As camadas de tijolo são horizontais. Com uma boa massa e esteios de ferro podem fazer-se coisas espantosas.» 

J.W.Goethe, Viagem a Itália (Italienische Reise, 1786-1787), trad. João Barrento, Relógio d'Água Editores, Lisboa, p. 129.

Bologna / Bolonha, Piazza Cavour

fotografia: filipe sousa | 7 maio 2024

 




































«Ao cair do dia livrei-me finalmente desta velha, digna e sábia cidade, das multidões que passeiam, protegidas do sol e do mau tempo por caramanchões abobadados que estenderam por quase todas as ruas, por onde vão olhando, fazendo compras e os seus negócios.»

J.W.Goethe, Viagem a Itália (Italienische Reise, 1786-1787), trad. João Barrento, Relógio d'Água Editores, Lisboa, p. 128.

Cabo Espichel

fotografia: filipe sousa | 4 janeiro 2024

 


«Quando o homem desceu para o oceano por um carreiro talhado na falésia, a amiga dele abeirou-se do precipício e teve medo. Mar para um lado e para o outro, mar e mais mar. Mar à altura dos olhos – no horizonte; mar por baixo dos pés. E ao alto, fechando o mar, um céu fosco arrepiado pela berraria das gaivotas. Tudo ermo. Em relação à terra, campo raso e um pinhalzito antes de se chegar à estrada; em relação ao oceano, o que se sabe. 

(…)

«Apetecia-me ir por aí», disse ela a dada altura (…) 

(…)

A seguir foi sentar-se entre a porta do carro e correu a vista pelo mar, procurando desviar a memória.

(...)

O descampado arrefecia, agora que o sol se afogava na última dobra do mar. Arrefecia o tempo e ia escurecendo a terra, alumiada pobremente por uns farrapos de nuvens afogueadas.

(...)

«Já reparou como se fez noite?»

«É verdade. Pela minha parte tive uma tarde adorável.»

(…)

«Apetecia-me vadiar até se fazer dia…»

(…)

No automóvel, a caminho de Lisboa:

«Que faz você amanhã?»

«Não sei. E você?»

O carro mordia a estrada, aos uivos nas curvas.»

José Cardoso Pires, O Anjo Ancorado (1958), 5ª ed., Moraes Editores, Lisboa, 1977, pp. 35, 62, 68, 142-143, 148.

Ιόνιο Πέλαγος / Mar Jónico - estreito de Corfu

fotografia: filipe sousa | 16 junho 2023

 

















Ítaca fica a 200 km, para sul, do estreito de Corfu. A minha Ítaca a muitos mais, para oeste. Embalado pelo mar Jónio, ao sabor da brisa e da poesia.


MAR JÓNIO

Há sempre na vigia uma ilha que oscila
Entre a gola do Mar e o turbante do céu

Mas de todas somente a que se chama Ítaca
Há sempre uma rapariga à espera de eu ser eu

David Mourão-Ferreira, Antologia Poética (Do Tempo ao Coração, 1966), Assírio & Alvim, 2022, p. 301.



ÍTACA

Quando saíres a caminho da ida para Ítaca,
faz votos para que seja longo o caminho,
cheio de aventuras, cheio de conhecimentos.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o zangado Poséidon não temas,
coisas assim no teu caminho não acharás nunca,
se o teu pensamento permanecer elevado, se emoção
requintada o teu espírito e o teu corpo tocar.
Os Lestrígones e os Ciclopes,
o selvagem Poséidon não encontrarás,
se com eles não carregares na tua alma,
se a tua alma não os colocar à tua frente.

Faz votos para que seja longo o caminho.
Para que sejam muitas as manhãs de verão
nas quais com que contentamento, com que alegria
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para que pares em feitorias fenícias,
e para que adquiras as boas compras
coisas de nácar e coral, de âmbar e de ébano,
e essências de prazer de qualquer espécie,
quanto mais abundantes puderes essências de prazer
para que vás a muitas cidades egípcias,
para que aprendas e aprendas com os letrados.

Deves ter sempre Ítaca na tua mente.
A chegada ali é o teu destino.
Mas não apresses em nada a tua viagem.
É melhor durar muitos anos;
e já velho fundeares na ilha,
rico do que ganhaste no caminho.
sem esperares que te dê Ítaca riquezas.

Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem Ítaca não terias saído ao caminho.
Mas já não tem para te dar.

E se um tanto pobre a encontrares, Ítaca não te enganou.
Sábio como te tornaste, com tanta experiência,
já hás de compreender o que significam ítacas.

Konstandinos Kavafis, Os Poemas (ΤΑ ΠΟΙΗΜΑΤΑ1905-1915), trad. Joaquim Manuel Magalhães, Nikos Prastinis, 2ª. ed., Relógio d'Água Editores, Lisboa, pp. 65-66. 

София / Sófia, бул. княгиня Мария Луиза / Boulevard Knyaginya Maria Luiza

fotografia: filipe sousa | 22 junho 2022






















«É assim, vem um gajo, numa boa, todo manselinho, o dia tá porreiro, lá a ver os meus velhotes, e zá e zá, que isto é só ternura, pá, com lágrimas que eu não mostro porque eu choro pra dentro e mijo pra fora, ó para esta cara mais querida, aqui na minha frente, mamã, mamã, ó para este pai, esta figura, esta firmeza facial e marcial, se faz favor, que até parece um senador ou o caraças, não me sacudas a mão, pai, que eu ia só fazer uma festa amigável, é assim: podias ao menos dar-me um abraço, eu não tenho pulgas, um gajo lá por usar rabo de cavalo e não ter tempo pra cortes de cabelo e essas macaquices, não obriga a andar carregado de vermes e carraças e fiocos de palha e essas merdas, quero dizer, desculpe lá, essas trampas, vá lá, pai, seja tolerante, que eu falo à moderna, linguagem viva, do povo mesmo, percebes? É assim: trato por tu porque é o que eu costumo com toda a gente e por maioria de razão com o meu pai que me é mais chegado, mas se não quer, por mim, tudo bem, isto cada um, pá, é como cada qual, e amigo não empata amigo. É assim: eu é que não fossilizei no tempo, essa é que é essa, eu sou desenrascado, abertura prò mundo que está a mudar, escutem os sinais, vejam os sinais, meus, agora vocês, eu compreendo, já há artrose, escoliose, ancilose, salvo seja, e mesmo que quisessem não percebiam, é assim: não podem perceber, vão à janela e vejam-me esses muros, as portas dos prédios, os candeeiros e o camandro, pá, lá está o meu tag, eu tou a deixar a minha marca nas paredes, e há uns gajos que sabem que sou eu, o Lencastre, o filho do coronel que riscou aquilo e que impediu a burguesia de ter ideias incolores contra os muros brancos, muro liso não tem expressão, os tags, atenção, atenção, não os grafitti, são vida e libertação, o grafitte amocha, faz o jeito ao burguês, tem harmonia, cores, armado ao artístico, o tag não!, é pra desconstruir, para emporqueirar e dar sobressaltos. A volúpia do perigo, pá, nunca ouviu falar?, assim mesmo, pás, mas porque é que o pai há-de ter esse feitio?, não ouve, só sabe mandar, escute, quando passo por um muro e deixo o meu rasto, o tag secreto e o tag exógeno, pá, é como aqueles gajos que libertam continentes inteiros, sei lá, o Simão Bolívar, o Fidel Castro e essa malta toda, fixe, mas que é que tem o facto de eu ter quarenta e dois anos? É assim: eu tenho a culpa? Está aqui o vosso filho, na frente, em carne e osso, e pensam é no BI, a burocracia já chegou à família, catano? Os piercings não faz mal, é prata, não infecta, é tudo do simbólico, o pai não usava galões? Chegue pra lá a mão, chegue pra lá a mãozinha, são símbolos, pá, um gajo constrói o mundo que quer, depois desconstrói, passa as mensagens que quer, eu até posso ganhar bem, que é que tem?, é assim: um gajo é três vezes mestre de palco em três concertos e tá safo prò resto do ano, orienta-se com umas gajas, com umas ganzas, isto é vida, a nova cultura, o hip-hop, só cá é que é esta merda tradicionalista, pequeno-burguesa, tudo certinho, tudo direitinho e o caraças, o que eu gostava, percebe, deixe lá o «de», mãe, quem é que liga a isso da gramática, dos acentos e coisa e tal, era o dia mais feliz da minha vida era dar umas sprayadas na merda dos painéis de São Vicente e encher aquela bodega toda com o meu tag e repintar aquilo tudo que é um convite ao imobilismo e ao passadismo, pai, pai, não vale a pena perder a cabeça, um pai, onde é que já se viu, a bater num filho adulto só por não ser capaz de ouvir umas verdades, obrigado mamã, sempre me protegeu, fez o que pôde, olhe pai, não me bata, eu sou mais alto que o pai, porra, já me rompeu a polpa do beiço eu não mereço isto, ó, ó para os meus braços, lisinhos, aqui nunca furou agulha, charros não digo que não, mas é assim: os maiores especialistas do mundo garantem - tá escrito, tá escrito! - que faz bem ò sistema, e passam atestados e tudo, ali, estou limpo ou não, mãe?, há razão prò pai me bater? Mamã, agora a sério, mamã é um aperto, houve um mal-entendido, são só cinquenta euros, eu devolvo já amanhã, sempre fui sério de contas, ó pai não se meta, caraças, se não tem respeito pelo seu filho, tenha dó da sua mulher. Caraças, pai, porra, vou-me já embora desta puta de casa. Vê, vê? É assim: tenho o sobrolho a sangrar, tá a ver? Mamã? Vou telefonar pràs televisões, vou escrever em todas as paredes que o coronel Amílcar Lencastre é todo antigo regime, pá, tem maus bofes e dá porrada no filho, e aquilo é só por ódio à modernidade e à humanidade...»

Mário de Carvalho, Fantasia para dois coronéis e uma piscina, 3ª ed. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 73-75.

Pátio do Tronco, Lisboa

fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2024





















Canção X

(…)
agora, peregrino vago e errante,
vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
só por seguir com passos diligentes
a ti Fortuna injusta, que consumes
as idades, levando-lhe diante
ũa esperança em vista de diamante,
mas quando das mãos cai se conhece
que é frágil vidro aquilo que aparece. 
(...)

Luís de Camões, “Canção X” in Rimas (org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595), texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Livraria Almedina, Coimbra, 1994, p. 227.