Paris, Avenue de New York

fotografia: filipe sousa | 16 fevereiro 2022






















Ontem, fui conhecer o 102 do Boulevard Haussmann, onde Marcel Proust morou, no 1º andar, entre 1906 e 1919. Aí escreveu boa parte das mais de três mil páginas da Recherche (Em Busca do Tempo Perdido), a sua obra-prima. Dormia de dia e escrevia de noite, na cama. Às vezes, durante várias noites, sem intervalos. Chegava a passar semanas sem se levantar, atormentado pela escrita, pela asma e pelo ciúme. Só saía para jantar no Hotel Ritz, na Place Vendôme, e às horas mais tardias. Ou então para algum périplo mais aventuroso ou mais suspeito pelos lupanares da cidade, movido a injecções de adrenalina e cafeína.
Nos anos da Primeira Grande Guerra, enquanto Paris se defendia dos raids aéreos alemães, encontramo-lo a vaguear pelos boulevards e pontes do Sena, no meio do apocalipse, dos aviões-constelações, dos zepelins, do som das sirenes, dos projectores anti-aéreos, por entre as bombas e os estilhaços de obus, fascinado com a beleza da guerra.
Pode a guerra, causadora de destruição, dor e sofrimento, ser um espectáculo de grande beleza estética, como quer fazer crer Marcel? Pode a morte transformar-se em ressurreição, a uma descida aos infernos seguir-se a revelação da luz, o fim passar a ser o início, a procura do Uno suceder o apocalipse, a catástrofe converter-se em alegria, fazendo tudo parte da harmonia do mundo? Marcel explica-se nesta passagem d'O Tempo Reencontrado, que, decerto, não passou despercebida a Francis Ford Coppola quando realizou Apocalypse Now:

«Com humildade, contei a Robert como em Paris pouco se sentia a guerra. Ele respondeu-me que mesmo em Paris havia às vezes coisas «bastante insólitas». Aludia a um raid de zepelins que tivera lugar na véspera e perguntou-me se eu vira, mas como se outrora me falasse de um espectáculo qualquer de grande beleza estética. Na frente ainda se compreende que haja uma espécie de afectação em dizer: «É maravilhoso, olha aquele cor-de-rosa, e aquele verde-claro», quando quem o diz pode ser morto a todo o momento; mas não era isto que acontecia com Saint-Loup, em Paris, a propósito de um raid insignificante, mas visto da nossa varanda, naquele silêncio de uma noite em que houvera de repente uma festa de verdade com foguetões úteis e protectores, toques de clarim que já não eram só de parada, etc. Falei-lhe da beleza do aviões que subiam de noite. «E talvez seja maior ainda a dos que descem», disse-me ele. «Reconheço que é muito belo o momento em que sobem, em que vão formar em constelação, obedecendo a leis tão exactas como as que regem as constelações, por que o que a ti te parece um espectáculo é a junção das esquadrilhas, as ordens que recebem, a sua partida para a caça, etc. Mas não preferes o momento em que, definitivamente assimilados às estrelas, se afastam delas para partirem em perseguição ou regressarem após o toque de dispersar, o momento em que criam um apocalipse, em que nem sequer as estrelas se mantêm no mesmo lugar? E aquelas sirenes eram uma coisa bastante wagneriana, o que aliás era muito natural para saudar a chegada dos Alemães, tinham muito de hino nacional, com o Konprinz e as princesas no seu camarote imperial, Wacht am Rhein, apetecia perguntar se eram mesmo aviadores ou se não seriam antes Valquírias subindo.» Parecia comprazer-se nesta assimilação dos aviadores às Valquírias, e explicou-o aliás por razões puramente musicais: «É que a música das sirenes, senhores, era de uma Cavalgada! Decididamente é preciso que cheguem os Alemães para se poder ouvir Wagner em Paris.» E, de resto, de certos pontos de vista, a comparação não era falsa. Da nossa varanda a cidade parecia um escuro monstro informe e negro, e que de repente se transferia das profundezas e da noite para a luz e para o céu, onde um a um os aviadores se elevavam obedecendo ao apelo dilacerante das sirenes, enquanto, num movimento mais lento, mas mais insidioso, mais alarmante, porque o seu olhar faz pensar no objecto ainda invisível e talvez já próximo que buscava, os projectores se moviam incessantemente, farejando o inimigo, cercando-o com as suas luzes até ao momento em que os aviões encaminhados saltariam em perseguição para o agarrarem. E, esquadrilha após esquadrilha, cada aviador arremetia assim da cidade agora transportada para o céu, semelhante a uma Valquíria.»

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu, 1927) O tempo reencontrado (Le Temps Retrouvé, 1927), trad. Pedro Tamen, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2005, pp. 69-70.     

Este ano celebra-se o centenário da morte de Proust.   

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.