fotografia: filipe sousa | 16 fevereiro 2022 |
«Com humildade, contei a Robert como em Paris pouco se sentia a guerra. Ele respondeu-me que mesmo em Paris havia às vezes coisas «bastante insólitas». Aludia a um raid de zepelins que tivera lugar na véspera e perguntou-me se eu vira, mas como se outrora me falasse de um espectáculo qualquer de grande beleza estética. Na frente ainda se compreende que haja uma espécie de afectação em dizer: «É maravilhoso, olha aquele cor-de-rosa, e aquele verde-claro», quando quem o diz pode ser morto a todo o momento; mas não era isto que acontecia com Saint-Loup, em Paris, a propósito de um raid insignificante, mas visto da nossa varanda, naquele silêncio de uma noite em que houvera de repente uma festa de verdade com foguetões úteis e protectores, toques de clarim que já não eram só de parada, etc. Falei-lhe da beleza do aviões que subiam de noite. «E talvez seja maior ainda a dos que descem», disse-me ele. «Reconheço que é muito belo o momento em que sobem, em que vão formar em constelação, obedecendo a leis tão exactas como as que regem as constelações, por que o que a ti te parece um espectáculo é a junção das esquadrilhas, as ordens que recebem, a sua partida para a caça, etc. Mas não preferes o momento em que, definitivamente assimilados às estrelas, se afastam delas para partirem em perseguição ou regressarem após o toque de dispersar, o momento em que criam um apocalipse, em que nem sequer as estrelas se mantêm no mesmo lugar? E aquelas sirenes eram uma coisa bastante wagneriana, o que aliás era muito natural para saudar a chegada dos Alemães, tinham muito de hino nacional, com o Konprinz e as princesas no seu camarote imperial, Wacht am Rhein, apetecia perguntar se eram mesmo aviadores ou se não seriam antes Valquírias subindo.» Parecia comprazer-se nesta assimilação dos aviadores às Valquírias, e explicou-o aliás por razões puramente musicais: «É que a música das sirenes, senhores, era de uma Cavalgada! Decididamente é preciso que cheguem os Alemães para se poder ouvir Wagner em Paris.» E, de resto, de certos pontos de vista, a comparação não era falsa. Da nossa varanda a cidade parecia um escuro monstro informe e negro, e que de repente se transferia das profundezas e da noite para a luz e para o céu, onde um a um os aviadores se elevavam obedecendo ao apelo dilacerante das sirenes, enquanto, num movimento mais lento, mas mais insidioso, mais alarmante, porque o seu olhar faz pensar no objecto ainda invisível e talvez já próximo que buscava, os projectores se moviam incessantemente, farejando o inimigo, cercando-o com as suas luzes até ao momento em que os aviões encaminhados saltariam em perseguição para o agarrarem. E, esquadrilha após esquadrilha, cada aviador arremetia assim da cidade agora transportada para o céu, semelhante a uma Valquíria.»
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu, 1927), O tempo reencontrado (Le Temps Retrouvé, 1927), trad. Pedro Tamen, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2005, pp. 69-70.
Este ano celebra-se o centenário da morte de Proust.
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