fotografia: filipe sousa | 15 fevereiro 2022 |
Dei-me ao trabalho de contar 3.521 lombadas distribuídas por sete estantes embutidas nas paredes da casa de C. G., perto do Marais, um paraíso para quem gosta de livros! Convenhamos que acomodar todo este acervo numas águas-furtadas com cerca de 70 m2 é obra. Muita obra, mesmo! E mais ainda, construí-lo criteriosamente com autores e títulos de referência dos mais diversos temas (filosofia, botânica, livros de viagem, literatura, poesia e, sobretudo, teatro!) e disponibilizá-lo a visitantes desconhecidos de todo o mundo! São pistas preciosas que vou recolhendo sobre a biblioteca e me dão a conhecer um pouco mais do seu misterioso criador. De Portugal, encontro dois livros de viagens, mais a Ode Maritime e Le Gardeur de troupeaux, de Fernando Pessoa. Não há vestígios de Eça de Queiroz, mas é com ele que viajo para essa outra biblioteca, fictícia, do 202 dos Campos Elísios, que dista uma boa légua em linha recta do local onde me encontro. Curiosamente, o reencontro de Zé Fernandes com Jacinto, e com o seu “depósito de livros”, deu-se em Fevereiro, num “fim de tarde arrepiado e cinzento”, como o de ontem. Bienvenue à Paris!
«Era de novo Fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas recurvas do chapéu donde fugiam anéis de um cabelo crespo, ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.
-Oh Jacinto!
-Oh Zé Fernandes!
O abraço que nos enlaçou foi tão alvoraçado que o meu chapéu rolou na lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade:
-Há sete anos!...
-Há sete anos!...
(...)
Jacinto empurrou uma porta, penetrámos numa nave cheia de majestade, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa de lumes eléctricos, refulgindo entre os lavores do tecto, alumiou as estantes monumentais todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio.
Não contive a minha admiração:
-Oh Jacinto! Que depósito!
Ele murmurou, num sorriso descorado:
-Há que ler, há que ler...»
Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras (1901), Edição Livros do Brasil, Lisboa, s.d., pp.25-26.
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