fotografia: pedro sousa | 17 fevereiro 2022 |
Hoje, subi à Basílica do Sacré-Coeur, nos cimos de Montmartre, na companhia de Jacinto e Zé Fernandes.
«Era um domingo silencioso, enevoado e macio, convidando às voluptuosidades da melancolia. E eu (no interesse da minha alma) sugeri a Jacinto que subíssemos à Basílica do Sacré-Coeur, em construção nos altos de Montmartre.
-É uma seca, Zé Fernandes...
-É uma seca, Zé Fernandes...
-Com mil demónios! Eu nunca vi a Basílica...
-Bem, bem! Vamos à Basílica, homem fatal de Noronha e Sande!
E por fim logo que começámos a penetrar, para além de S. Vicente de Paulo, em bairros estreitos e íngremes, de uma quietação de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos, mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas descansando diante das tascas, galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados secando em canas - o meu fastidioso camarada sorriu àquela liberdade e singeleza das coisas.
A vitória parou em frente à larga rua de escadarias que trepa, cortando vielazinhas campestres, até à esplanada, onde, envolta em andaimes, se ergue a Basílica imensa. Em cada patamar barracas de arraial devoto, forradas de paninho vermelho, transbordavam de imagens, bentinhos, crucifixos, corações de jesus bordados a retrós, claros molhos de rosários. Pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a ave-maria. Dois padres desciam, tomando risonhamente uma pitada. Um sino lento tilintava na doçura cinzenta da tarde. E Jacinto murmurou, com agrado:
-É curioso!
Mas a Basílica em cima não nos interessou, abafada em tapumes e andaimes, toda branca e seca, de pedra muito nova, ainda sem alma. E Jacinto, por um impulso bem jacíntico, caminhou gulosamente para a borda do terraço, a contemplar Paris. Sob o céu cinzento, na planície cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e grossa camada de caliça e telha. E, na sua imobilidade e na sua mudez, algum rolo de fumo, mais ténue e ralo que o fumear de um escombro mal apagado, era todo vestígio visível da sua vida magnífica.»
Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras (1901), Edição Livros do Brasil, Lisboa, s.d., pp. 84-85.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.