Hjaltadalur

fotografia: filipe sousa | 23 novembro 2022

 

















Não é todos os dias que nos perdemos, rendidos a tanta beleza, numa floresta boreal, no norte da Islândia. Primeiro, pela simples razão de que a Islândia não fica propriamente ao virar da esquina e, depois, porque as árvores não abundam na ilha, quanto mais falar em florestas!
Por isso, o meu encontro fortuito com a rara floresta do vale de Hjaltadalur só pode ser entendido como uma dádiva dos deuses das montanhas a amantes da natureza muito afortunados.
Sigamos, pois, fora dos caminhos e dos trilhos para nos adentrarmos na natureza selvagem da floresta.

«Uma floresta antiga terá muitas árvores antigas verdadeiramente grandes - algumas com copas irregulares, quebradas e musguentas, «sujas» com a enorme acumulação de matéria orgânica, a maioria delas com buracos e afectadas pela podridão. Incluirá árvores mortas ainda de pé e toneladas de troncos tombados. Estas características, embora não sejam desejadas pelos madeireiros (que consideram estes bosques «demasiado maduros») são aquilo que faz de uma floresta antiga algo mais do que um terreno arborizado: é um palácio de organismos, um paraíso para inúmeros seres vivos, um templo onde a vida investiga a fundo o puzzle que ela própria é. A actividade vital cai directamente no solo e no subsolo - a cobertura vegetal, a manta morta. Há térmitas, larvas, centopeias, aracnídeos, minhocas, artrópodes, bichos-de-conta, com os finos fios dos fungos a envolverem tudo.
(...)
Na floresta, o tempo que uma árvore caída leva até se decompor inteiramente é mais ou menos idêntico aos anos que teve de vida. Se as sociedades pudessem aprender a viver a esse ritmo não haveria penúria, nem extinções. Teríamos riachos límpidos, e os salmões regressariam sempre para a desova.
(...)
E depois vêem-se uns leves e compridos montículos - o último vestígio de um tronco há muito desaparecido. Uma linha recta de cogumelos a rebentarem num solo fofo é o último sinal, o derradeiro fantasma, de uma árvore que «morreu» há séculos.
Um tapete de árvores jovens - com tamanhos que variam entre os quinze centímetros e os seis metros - aguarda no solo da floresta que as árvores mortas tombem e libertem com isso um espaço maior no dossel. Soalheiro, ventoso, cálido, aberto, claro - contudo, estamos rodeados de árvores grandiosas. Os seus troncos enchem o céu e reflectem uma luz cálida e dourada.»

Gary Snyder, A Prática da Natureza Selvagem, (The Practice of the Wild, 1990), trad. José Miguel Silva, Antígona, Lisboa, 2018, pp. 169-170, 178-179, 180-181.

Hólar

fotografia: filipe sousa | 23 novembro 2022

 






















Hólar.
Lugar remoto no norte da Islândia, perdido no mapa. Ainda assim, com uma população que ronda os cem habitantes, uma verdadeira multidão para o padrão demográfico e tipo de povoamento do interior da ilha.
A existência de uma igreja, rodeada por cemitério, e de uma universidade, mais o respectivo campus, neste vale profundo de Hjaltadalur, entre montanhas castanhas com neve nos cumes, não deixa de surpreender mesmo o mais prevenido dos forasteiros, como é o meu caso. É aqui que passarei os próximos três dias, isolado do mundo, entre céus azuis cristalinos e tempestades de neve.
Maravilha!

Curiosidade histórica: O bispado de Hólar foi fundado em 1106, nos primórdios do cristianismo na Islândia, para servir a parte norte da ilha, enquanto a parte sul era servida pelo bispado de Skálholt. A construção da primitiva igreja é, no entanto, anterior, datando do século XI. No século seguinte, foi fundado um seminário em Hólar, uma das primeiras instituições de ensino europeias. O seminário extinguiu-se em 1801, quando os dois bispados se juntaram, passando o único bispo a residir em Reykjavík. A igreja actual de Hólar foi construída entre 1759-1763, tendo sido utilizado arenito vermelho das montanhas vizinhas na sua construção. Os templos anteriores eram construções de madeira, com excepção de um de pedra, no século XIV, que nunca foi concluído. Desde 1882, Hólar é sede de uma Escola Superior de Agricultura, renomeada Universidade de Hólar, em 2007. Actualmente, são ministrados cursos de licenciatura e pós-graduação em Estudos Equinos (Hólar é um importante pólo de criação de cavalos islandeses), Aquacultura e Biologia de Peixes e Turismo Rural.

«Em cima dum pequeno monte na charneca estão os restos duma pequena quinta.
Talvez esse monte não seja, num sentido estrito, mais do que uma obra da natureza, talvez tenha sido obra de lavradores há muito falecidos que construíram aqui as suas quintas nas margens verdejantes do riacho, geração após geração, umas por cima das ruínas das outras. Ainda hoje continua a existir um curral para cordeiros, ali, onde há séculos atrás se ouviram ovelhas e crias a balir durante cem primaveras. Afastados do monte e do curral, especialmente para sul, estão espalhados prados amplos com ilhotas de urze, e através do espinhaço de Randsmyri corre um pequeno riacho e outro do lago para leste, pelos vales da charneca oriental. A norte do monte eleva-se uma montanha íngreme, as suas encostas estão marcadas por derrocadas e nas fendas existem relevos cobertos de urze. Das derrocadas erguem-se imponentes rochas escarpadas, e num certo lugar por cima do curral a montanha está rachada, tem uma fenda no basalto, e desta irrompe na Primavera uma cascata comprida e fina. E às vezes o vento do sul sopra na cascata, pulveriza a água para cima da borda da montanha e parece que a queda de água corre para trás. Debaixo da montanha estão pedregulhos espalhados por todo o lado.» 

Halldór Laxness, Gente independente (Sjálfstætt fólk, 1934-1935), trad. Guolaug Rún Margeirsdóttir, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2007, pp. 14-15.

Ísland / Islândia

fotografia: filipe sousa | 23 novembro 2022

 






















Não sei se é o mais belo país, como muitos afirmam. Sei apenas que a Islândia é terra de vulcões e géiseres, de campos rugosos de lava escura, de montanhas nevadas, de glaciares e rios abundantes que correm a partir deles, de extensões de tundra a perder de vista, de planaltos onde pastoreiam cavalos e ovelhas em liberdade sem gente por perto, sacudida por ventos fortes e pelas ondas do Atlântico.
Uma sucessão vertiginosa de paisagens imaculadas, cenários agrestes, vastidões onde impera a lei dos elementos e do silêncio, que ajuda a explicar a afortunada viagem de quatrocentos quilómetros entre Reykjavíq e Hólar.
Não sei se a Islândia é o mais belo país, como muitos afirmam. O que sei é que é um dos últimos redutos de natureza selvagem do nosso mundo. Até ver.

«O vento torna-se transparente, a neve que voava em rajadas instala-se sobre a terra e torna-se um manto de silêncio: acima, o céu negro e o cintilar de estrelas tão antigas como o tempo.»

Jón Kalman Stefánsson, A tristeza dos anjos (Harmur englanna, 2009), trad. João Reis, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2014, p. 54.

«Via os vales profundos cruzarem-se em todos os sentidos, os precipícios abrirem-se como poços, os lagos transformarem-se em charcos, os rios tornarem-se regatos. À minha direita sucedia-se uma infinidade de glaciares e os picos multiplicavam-se, alguns deles enfeitados de leves fumos. A ondulação destas montanhas sem fim, a que as camadas de neve davam uma aparência de espuma, lembravam a superfície de um mar agitado. Se me virava para oriente, era o oceano majestoso como continuação dos cimos encapelados. Mal se percebia onde acabava a terra e começava o mar.»

Jules (Júlio) Verne, Viagem ao centro da Terra (Voyage au centre de la Terre, 1864), trad. Lídia Jorge, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2008, p. 91.

Reykjavík / Reiquejavique, Skólavörðustígur

fotografia: filipe sousa | 21 novembro 2022

 

















Reykjavíq. À letra, baía fumarenta. Cidade pequena e pacata, que se descobre numa manhã. As ruas são estreitas e amigas de peões e ciclistas. As casas irradiam alegria, com a paleta de cores do arco-íris. As mais belas são revestidas de madeira e painel sandwich. A felicidade anda no ar. O mar é presença de sempre, assim como o vento gelado. Até onde a vista alcança, para lá do golfo de Faxa, ergue-se a barreira do Snaefellness, a cratera vulcânica escolhida por Júlio Verne como entrada para o Centro da Terra. A nossa viagem é, porém, outra. Ou talvez não. Com o ocaso às 16 horas, resta-nos uma hora de claridade para os encantos da costa ocidental. Entre Reykjavíq e o próximo destino, no norte da ilha, distam uns bons quatrocentos quilómetros. Já estivemos mais longe do Círculo Polar Ártico.

«Perder-se uma pessoa nas ruas de Reiquejavique não é coisa fácil, por isso não fui obrigado a perguntar o caminho, o que em linguagem de gestos pode provocar muitos equívocos.
A cidade estende-se por um solo baixo e pantanoso, entre duas colinas. De um lado, uma massa de lavas desce em declive suave até ao mar. Do outro, abre-se a vasta baía de Faxa, limitada a norte pelo enorme glaciar do Sneffels, onde apenas a Valkyrie se encontrava ancorada no momento. 
(...)
Das duas ruas de Reiquejavique, a maior é paralela ao mar; moram aí os mercadores e os comerciantes, em cabanas de madeira feitas de vigas pintadas de vermelho, dispostas horizontalmente. A outra rua, mais para oeste, dirige-se para uma lagoa, e é ladeada pela casa do bispo e de outras pessoas não relacionadas com o comércio.
(...)
Em três horas visitei não só a cidade mas também os arredores. O aspecto geral era extraordinariamente triste. Sem árvores, sem vegetação, por assim dizer. Por toda a parte as arestas vivas das rochas vulcânicas.»

Jules (Júlio) Verne, Viagem ao centro da Terra (Voyage au centre de la Terre, 1864), trad. Lídia Jorge, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2008, pp. 54-55.

Keflavík

fotografia: filipe sousa | 21 novembro 2022


















Em Keflavík há três pontos cardeais: o vento, o mar e a eternidade.
Desprovida de qualquer valor, e não se conhece sítio onde o céu esteja mais distante da Terra.
Keflavík não existe.

«Prólogo

Deixemos algo bem claro antes de avançarmos e nos embrenharmos no que não compreendemos, no que não toleramos mas desejamos, naquilo que tememos e em simultâneo esperamos alcançar, e é importante clarificarmos isto para termos alguma coisa a que nos agarrar: estamos em Keflavík. Uma vila idiossincrática e remota, com poucos milhares de habitantes, um porto vazio, desemprego, stands de automóveis, carrinhas de comida de rua, uma povoação tão plana que, vista do céu, mais se assemelha a um mar estático. Em manhãs serenas, o Sol nasce como uma erupção vulcânica silenciosa. Vemo-lo quando o seu fogo surge atrás das montanhas distantes, como se algo gigantesco se erguesse das profundezas. É uma força capaz de içar o céu e alterar tudo, vemo-la quando a noite escura dá lugar ao fogo. Depois o Sol ergue-se. Ao início, como uma erupção vulcânica que varre as estrelas no céu, esses cães amistosos, e ascende majestosamente acima da península de Reykjanes. O Sol ergue-se devagar, e nós estamos vivos.»

Jón Kalman Stefánsson, Aproximadamente do tamanho do universo (Eitthvaó á stoeró vió alheiminn, 2013), trad. João Reis, Cavalo de Ferro, Lisboa, 2020, p. 9.

Ísland / Islândia

fotografia: filipe sousa | 21 novembro 2022

 

















-O que queres ser quando chegares à idade maior?
-Guardador de auroras boreais na Ilha de Gelo e Fogo. Ando a treinar para isso.
-A treinar para quê?
-Para guardador de auroras boreais e para chegar à idade maior. Ambas as coisas.
-Nada mau! E onde fica essa Ilha de Gelo e Fogo?

«-Esta é uma das melhores cartas da Islândia, da autoria de Handerson, e estou convencido de que ela nos vai dar a solução para todos os problemas.
Debrucei-me sobre o mapa.
-Vê aqui esta ilha composta de vulcões - disse o professor - e repara que têm todos o nome de Jökull. Esta palavra quer dizer «glaciar» em islandês, e dada a elevada latitude da Islândia, a maior parte das erupções produzem-se através das camadas de gelo. Donde a denominação de Jökull aplicada a todos os montes ignívomos da ilha.»

Jules (Júlio) Verne, Viagem ao centro da Terra (Voyage au centre de la Terre, 1864), trad. Lídia Jorge, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2008, p. 32.

Manchester

fotografia: filipe sousa | 20 novembro 2022

 
























O paralelismo cronológico é sobejamente conhecido, mas vem a propósito evocá-lo. O planeta Terra tem 4,6 milhares de milhões de anos. Se passarmos esse vasto espaço de tempo a uma mais reduzida e manejável escala de 46 anos, o aparecimento do homem moderno corresponderá às últimas quatro horas. E a Revolução Industrial ter-se-á iniciado há um minuto, tempo ínfimo mas decisivo no curso da humanidade, pelas melhores e piores razões. Nada será como antes, bem pode dizer-se, com consequências de ordem social, económica, política, tecnológica e ambiental. Até chegarmos onde estamos hoje: bem perto do ponto de ruptura, ou de não retorno, se é que não o atingimos já! A contagem desses últimos sessenta segundos de tempo biológico começa justamente na cidade que tenho diante de mim. Manchester, o expoente máximo da primeira Revolução Industrial, laboratório do que viria a ser o capitalismo e o socialismo, berço do Partido Trabalhista. Assuntos a que espero voltar um dia quando vier com tempo para conhecer a cidade, o que subsiste da sua herança industrial, incluindo visitas aos Museus da Indústria e da História do Povo. Podia falar ainda do Museu Nacional de Futebol, que Manchester também acolhe, mas não me apetece de todo falar de futebol por estes dias, vá-se lá saber porquê! No entanto, sempre direi que a sorte dos migrantes que sacrificaram a vida ou que foram vítimas de exploração laboral durante a construção dos estádios no Catar não difere muito da dos operários dos complexos fabris da Revolução Industrial, há mais de duzentos anos!

Mas afinal, que faço eu em Manchester? Sou apenas um passageiro em fuga, com vontade de rumar ainda mais a norte, à procura de um lugar na Terra poupado às notícias do futebol e do Campeonato do Mundo e, mais importante, a salvo de injustiças. Haverá esse lugar?

«O rugido dos motores aumenta constantemente, e o avião traça uma rota através de campo aberto. Por esta altura, já deveríamos ter podido ver a massa espalhada de Manchester, mas não se via senão um leve vislumbre, como se surgisse de um incêndio quase sufocada em cinzas. Um manto de nevoeiro, erguido das planícies pantanosas que chegavam até ao mar da Irlanda, tinha coberto a cidade, uma cidade espalhada por mil quilómetros quadrados, construída de inúmeros tijolos e habitada por milhões de almas, vivas e mortas.»

H. G. Sebald, Os Emigrantes (The Emigrants, 1992), Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 108.

Berlin / Berlim

fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2020

 

















«Não saber orientar-se numa cidade - talvez seja desinteressante e banal. Requer ignorância - nada mais. Mas perdermo-nos numa cidade - como nos perdemos numa floresta -, isso já exige uma formação muito diferente. As placas e os nomes de ruas, os transeuntes, telhados, quiosques ou tabernas têm de falar a quem anda por ali às voltas como um galho a estalar na floresta debaixo dos seus pés, como o grito medonho de um abetouro vindo de longe, como o silêncio súbito de uma clareira em cujo centro desabrocha um lírio.»

Walter Benjamim, Crónica Berlinense (Berliner Chronik, 1932), trad. António Sousa Ribeiro, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2021, p. 156.

EN 255-1

fotografia: filipe sousa | 6 novembro 2022














Um clássico intemporal.

«-Não me pouses a mala em cima das mudanças que me atrapalhas.
(...)
-Cuidado com a curva. Tu e a tua mania de cortar as curvas...»

Mário de Carvalho, Fantasia para dois coronéis e uma piscina, 3ª ed. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 76, 78.

Avignon / Avinhão, Place du Palais

fotografia: filipe sousa | 19 outubro 2022

 

















Tenho por certo que a eleição de Lula da Silva é o melhor para a Amazónia, para os povos indígenas e para o combate às alterações climáticas.
Se dúvidas houvesse, bastaria atentar nos depoimentos pungentes dos seus líderes, que integram a mais recente exposição de Sebastião Salgado, para compreender o nível de predação infligido na floresta amazónica e a dimensão dos atropelos aos direitos das suas populações durante o consulado de Jair Bolsonaro.
Amazônia é um grande acontecimento artístico, um grito de denúncia, um manifesto em defesa da vida e da natureza, um repto inadiável para travar a desflorestação e restaurar habitats e a biodiversidade, de que todos dependemos.
Através da lente de Salgado, não nos resta senão perdermo-nos na selva em êxtase, acossados pelo «silêncio sinfónico» da música de Jean-Michel Jarre, que as palavras de Ferreira de Castro, com quase cem anos, conseguem, em grande medida, recriar:

«E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase.
(...)
Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
(...)
O rio começara a encher. Era um dilúvio anual que vinha do Peru, da Bolívia, dos contrafortes dos Andes, veios que borbulhavam, blocos de gelo que se derretiam, escoando-se da terra alta, regougando nas cachoeiras e destroçando, de passagem, tudo quanto se lhes opunha. Dir-se-ia que o Pacífico galgara a cordilheira e viera esparramar-se, em fúria ciclópica, do lado de cá. Minava, abria novos caminhos, contorcia-se nas enseadas, engrossava com as chuvas e ia sempre, sem descanso, a caminho dos pontos baixos. Caído nas esplanadas, perdia em violência o que ganhava em imponência. Já não era enxurrada, singra aqui, torce ali, correndo pelos declives e cantando nos despenhadeiros. Era um volume pesado, barro líquido que marchava em grandes amplitudes, levando na face lisa, que já não tinha murmúrios nem rugidos de cataratas, todos os destroços que fizera. Parecia, assim, ter saído dum mundo reduzido a escombros. Os cursos subiam logo, tragando praias estivais, salvando altos barrancos e fazendo das ilhas verdes náugragos tristes e amarrados.
(...)
A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e só descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca em tapera, dali a dez, a vinte, a cinquenta, não importava a quatro anos - mas um dia! Seria pelo esgotamento das seringueiras, seria pela intervenção dos selvagens, chacinando os desbravadores, seria por outro motivo - mas seria!
(...)
Toda a terra se arrepiava, voavam milhões de folhas desprendidas e não havia na maranha um só ramo que não se agitasse. Estreitavam-se e tremiam as copas exuberantes, parecendo, no seu desgrenhamento, não presas mas correndo na mesma direcção do vento, com louca velocidade. Era um concerto cada vez mais alarmante de instrumentos desvairados e cada vez também o regente mostrava frenesi maior. A água plácida do igapó pusera-se já a ondular, porque a ventania rompera, enfim, a muralha do entrançado e viera soprar cá em baixo a sua ária estentorosa. E, de quando em quando, lá nas alturas, o bombo da orquestra infernal fazia-se ouvir com fragor. Multiplicavam-se as bichas que iluminavam, por súbito clarão, o manto pardo em que tudo se embrulhara. Nunca Alberto vira, no mundo já trilhado, maior fúria dos elementos turbilhonantes.»

Ferreira de Castro, A Selva (1930), 39ª ed, Guimarães Editores, Lisboa, 2002, pp. 80, 88, 133-134, 145-146.