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fotografia: filipe sousa | 19 outubro 2022 |
Tenho por certo que a eleição de Lula da Silva é o melhor para a Amazónia, para os povos indígenas e para o combate às alterações climáticas.
Se dúvidas houvesse, bastaria atentar nos depoimentos pungentes dos seus líderes, que integram a mais recente exposição de Sebastião Salgado, para compreender o nível de predação infligido na floresta amazónica e a dimensão dos atropelos aos direitos das suas populações durante o consulado de Jair Bolsonaro.
Amazônia é um grande acontecimento artístico, um grito de denúncia, um manifesto em defesa da vida e da natureza, um repto inadiável para travar a desflorestação e restaurar habitats e a biodiversidade, de que todos dependemos. Através da lente de Salgado, não nos resta senão perdermo-nos na selva em êxtase, acossados pelo «silêncio sinfónico» da música de Jean-Michel Jarre, que as palavras de Ferreira de Castro, com quase cem anos, conseguem, em grande medida, recriar:
«E por toda a parte o silêncio. Um silêncio sinfónico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio suavíssimo da folhagem, tão suave que parecia estar a selva em êxtase.
(...)
Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, para ter alguma voz na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.
(...)
O rio começara a encher. Era um dilúvio anual que vinha do Peru, da Bolívia, dos contrafortes dos Andes, veios que borbulhavam, blocos de gelo que se derretiam, escoando-se da terra alta, regougando nas cachoeiras e destroçando, de passagem, tudo quanto se lhes opunha. Dir-se-ia que o Pacífico galgara a cordilheira e viera esparramar-se, em fúria ciclópica, do lado de cá. Minava, abria novos caminhos, contorcia-se nas enseadas, engrossava com as chuvas e ia sempre, sem descanso, a caminho dos pontos baixos. Caído nas esplanadas, perdia em violência o que ganhava em imponência. Já não era enxurrada, singra aqui, torce ali, correndo pelos declives e cantando nos despenhadeiros. Era um volume pesado, barro líquido que marchava em grandes amplitudes, levando na face lisa, que já não tinha murmúrios nem rugidos de cataratas, todos os destroços que fizera. Parecia, assim, ter saído dum mundo reduzido a escombros. Os cursos subiam logo, tragando praias estivais, salvando altos barrancos e fazendo das ilhas verdes náugragos tristes e amarrados.
(...)
A selva não aceitava nenhuma clareira que lhe abrissem e só descansaria quando a fechasse novamente, transformando a barraca em tapera, dali a dez, a vinte, a cinquenta, não importava a quatro anos - mas um dia! Seria pelo esgotamento das seringueiras, seria pela intervenção dos selvagens, chacinando os desbravadores, seria por outro motivo - mas seria!
(...)
Toda a terra se arrepiava, voavam milhões de folhas desprendidas e não havia na maranha um só ramo que não se agitasse. Estreitavam-se e tremiam as copas exuberantes, parecendo, no seu desgrenhamento, não presas mas correndo na mesma direcção do vento, com louca velocidade. Era um concerto cada vez mais alarmante de instrumentos desvairados e cada vez também o regente mostrava frenesi maior. A água plácida do igapó pusera-se já a ondular, porque a ventania rompera, enfim, a muralha do entrançado e viera soprar cá em baixo a sua ária estentorosa. E, de quando em quando, lá nas alturas, o bombo da orquestra infernal fazia-se ouvir com fragor. Multiplicavam-se as bichas que iluminavam, por súbito clarão, o manto pardo em que tudo se embrulhara. Nunca Alberto vira, no mundo já trilhado, maior fúria dos elementos turbilhonantes.»
Ferreira de Castro, A Selva (1930), 39ª ed, Guimarães Editores, Lisboa, 2002, pp. 80, 88, 133-134, 145-146.