Manchester

fotografia: filipe sousa | 20 novembro 2022

 
























O paralelismo cronológico é sobejamente conhecido, mas vem a propósito evocá-lo. O planeta Terra tem 4,6 milhares de milhões de anos. Se passarmos esse vasto espaço de tempo a uma mais reduzida e manejável escala de 46 anos, o aparecimento do homem moderno corresponderá às últimas quatro horas. E a Revolução Industrial ter-se-á iniciado há um minuto, tempo ínfimo mas decisivo no curso da humanidade, pelas melhores e piores razões. Nada será como antes, bem pode dizer-se, com consequências de ordem social, económica, política, tecnológica e ambiental. Até chegarmos onde estamos hoje: bem perto do ponto de ruptura, ou de não retorno, se é que não o atingimos já! A contagem desses últimos sessenta segundos de tempo biológico começa justamente na cidade que tenho diante de mim. Manchester, o expoente máximo da primeira Revolução Industrial, laboratório do que viria a ser o capitalismo e o socialismo, berço do Partido Trabalhista. Assuntos a que espero voltar um dia quando vier com tempo para conhecer a cidade, o que subsiste da sua herança industrial, incluindo visitas aos Museus da Indústria e da História do Povo. Podia falar ainda do Museu Nacional de Futebol, que Manchester também acolhe, mas não me apetece de todo falar de futebol por estes dias, vá-se lá saber porquê! No entanto, sempre direi que a sorte dos migrantes que sacrificaram a vida ou que foram vítimas de exploração laboral durante a construção dos estádios no Catar não difere muito da dos operários dos complexos fabris da Revolução Industrial, há mais de duzentos anos!

Mas afinal, que faço eu em Manchester? Sou apenas um passageiro em fuga, com vontade de rumar ainda mais a norte, à procura de um lugar na Terra poupado às notícias do futebol e do Campeonato do Mundo e, mais importante, a salvo de injustiças. Haverá esse lugar?

«O rugido dos motores aumenta constantemente, e o avião traça uma rota através de campo aberto. Por esta altura, já deveríamos ter podido ver a massa espalhada de Manchester, mas não se via senão um leve vislumbre, como se surgisse de um incêndio quase sufocada em cinzas. Um manto de nevoeiro, erguido das planícies pantanosas que chegavam até ao mar da Irlanda, tinha coberto a cidade, uma cidade espalhada por mil quilómetros quadrados, construída de inúmeros tijolos e habitada por milhões de almas, vivas e mortas.»

H. G. Sebald, Os Emigrantes (The Emigrants, 1992), Quetzal Editores, Lisboa, 2013, p. 108.

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