Cheguei a Siena ao fim da tarde, vindo de Roma, depois de atravessar de comboio as belas paisagens da Toscânia. Entrei pela Porta Ovile, a tempo de ver a cidade com luz natural e de captar, num desenho, a Piazza del Campo, aquela que Montaigne descreveu, no século XVI, como «la più bella che si vedda in nissuna altra città». Tinha acabado de acontecer o Palio e, por isso, as ruas vestiam-se de estandartes, com diagonais em azul e amarelo, do bairro vencedor: a contrada della Tartuca (tartaruga). Depois do desenho, desloquei-me ao extremo sul da cidade, ao reduto da Tartuca, para sentir o coração dos festejos que ainda pulsava em desfiles espontâneos de tamborileiros trajados a preceito com as cores do bairro. Acabei também eu a festejar a proeza, já à porta do Oratório da Tartuca, depois de saber que aquela era a igreja do patrono Sant'Antonio di Padova. Esse mesmo, Fernando de Bulhões, o nosso Santo António de Lisboa.
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desenho: filipe sousa | 6 julho 2009 |
«Parece que, nessa ocasião, no século XVI, a Piazza del Campo - em forma de concha, cercada de soberbos palácios, com muitas ruas desembocando por todos os lados, e a solitária Torre de Mangia varando o tempo, - ainda servia de arena para touradas. E os habitantes de Siena cercavam-na, com seus carros de fantasia, enfeitados com efígies de animais, como numa parada totêmica.
Mais tarde, sendo os touros considerados perigosos, substituiu-se o espétaculo pelas corridas de búfalos, que deviam dar três voltas à praça, enquanto os habitantes de Siena, - divididos primeiro em três bairros, e, depois, em dezessete, - desenrolavam em redor uma espécie de coreografia, com os seus carros alegóricos, ao som de músicas e cânticos. O prêmio era um rico estandarte de brocado, o pálio, conferido ao bairro ou contrada a que pertencesse o búfalo vencedor.
Finalmente, os búfalos também desapareceram, e as corridas de cavalos, que se realizavam noutros lugares, passaram a ter como pista essa belíssima praça, que tanta admiração despertou em Montaigne.»
Cecília Meireles, «Da ruiva Siena» in Crônicas de viagem 2 (1953), reimpr. editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, p.55.
PS. O Palio de 2 de julho de 2009: https://www.ilpalio.siena.it/5/Palio/200907020