Évora, Praça do Giraldo

«Esta última cidade é grande e bem povoada. Cercada de muros, possui um castelo e uma mesquita-catedral. O território que a cerca é de uma fertilidade singular. Produz trigo, gado e toda a espécie de frutos e legumes. É uma região excelente onde o comércio é próspero, quer em objectos de exportação quer em objectos de importação. 
De Évora a Badajoz, para oriente, 2 jornadas.»

Abu Abd Allah Muhammad al-Idrisi al-Qurtubi al-Hasani al-Sabti (simplesmente al-Idrisi ou Edrici), século XII, in António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe - vol. 1 Geografia e Cultura, 2ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 1989, p. 67. 


fotografia: filipe sousa | 26 abril 2016

Paris, Notre-Dame

«O Sena passa espesso, cor de chumbo, da cor do céu. Notre Dame como um grande mamífero branco cheio de gárgulas. (...)
Então andamos lado a lado, com a nossa bagagem, por Saint-Louis à noite. Levo-te à Ulysses e às papelarias da rue du Pont Louis-Philippe onde há anos descobri uns cadernos encadernados a pano que parecem livros, mas com as páginas todas brancas. Ficamos de nariz na montra.
Depois damos a volta ao clarão fantasmagórico de Notre Dame, e paramos de queixo levantado para a fachada, como se fosse a lua.
As noites de inverno têm a aura das coisas fechadas sobre si. Uma noite assim é para nós. (...)
Antes mesmo de entrar no quarto, gosto muito que este hotel só possa ser em Paris, a ranger e a afundar desde Victor Hugo.
E ao abrires a porta tenho a certeza de que a janela ao fundo já existia quando Hugo nasceu. Ele bem podia ter escrito O Corcunda de Notre Dame ou mesmo Os Miseráveis nesta alcova comprida e estreita, com a cama numa ponta e a janela na outra. Atrás da cama há um cubículo onde foi acrescentada a casa de banho, mas de resto tudo estaria assim há 150 anos: o padrão de flores na parede, a velha escrivaninha com tampo, o peso da janela altíssima, e quando a abrimos:
-Uau!
Notre Dame, incandescente. (...)
Estás de costas para Notre Dame, portanto a tua cara está escura, com os olhos a brilhar. A luz deve estar na minha cara. (...) 
Então, à luz de Notre Dame estamos em pé, deitados, ajoelhados. Eu caio de costas, a tua cabeça desaparece, eu apoio os pés nos teus ombros, tu respiras fundo, respiras. Vai tornar-se uma vocação.
Na manhã seguinte, recolhes a roupa e deixamos a nossa alcova d'Os Miseráveis para sempre.»

Alexandra Lucas Coelho, E a Noite Roda, Edições Tinta-da-china, Lisboa, 2014, pp. 75-76, 80-81, 88-89.


fotografia: pedro courinha | 29 fevereiro 2012

Castilla - La Mancha / Castela - La Mancha

«(...) passou o odre a Sancho, que, empinando-o, posto na boca, esteve a olhar as estrelas um quarto de hora e, acabando de beber, deixou cair a cabeça para um lado, e dando um grande suspiro, disse:
-Oh filho da puta, velhaco, e como é de estalo!
-Vedes agora - disse o do Bosque ao ouvir o filho da puta de Sancho -, como louvaste este vinho chamando-lhe filho da puta
-Digo - respondeu Sancho -, que confesso que não é desonra chamar filho da puta a ninguém, quando se tem a intenção de gabá-lo. Mas diga-me, senhor, pela alma de quem mais quer: este vinho é de Cidade Real?
-Bravo, grande provador! - respondeu o do Bosque. - Na verdade, não é de outra parte e tem alguns anos de idade.
-E que tenho eu com isso? - disse Sancho. -Não acrediteis que eu não iria descobri-lo. Não seria admissível, senhor escudeiro, que, tendo eu uma propensão tão grande e tão natural para conhecer os vinhos, dando-me um a cheirar, logo acerte a terra, a casta, o sabor e a idade e as voltas que terá de dar, com todas as circunstâncias que ao vinho dizem respeito? Mas não há razão para se ficar assombrado, se tive na minha ascendência por parte do meu pai, os dois melhores provadores de vinhos que durante muitos anos conheceu a Mancha, para prova do qual lhes aconteceu o que vou contar. Deram aos dois a provar vinho de uma cuba, pedindo-lhes a opinião sobre o estado, qualidade, excelência ou defeitos do vinho. Um provou-o com a ponta da língua, o outro não fez mais que chegá-lo ao nariz. O primeiro disse que aquele vinho sabia a ferro; o segundo disse que mais sabia a cordovão. O dono disse que a cuba estava limpa e que o tal vinho não tinha preparado nenhum pelo qual tivesse tomado sabor ferro nem de cordovão. Apesar disso, os dois famosos provadores mantiveram o que tinham dito. Passou o tempo, vendeu-se o vinho, e ao limpar-se a cuba acharam dentro dela uma chave pequena, pendente de uma correia de cordovão. Para que veja vossa mercê se quem vem desta raça poderá dar o seu parecer em semelhantes causas.»

Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, parte II, cap. XII, p. 553. 


fotografia: filipe sousa | 14 abril 2019

Toledo

«A cidade aparece dourada numa colina. É a vista que temos do Parador, um antigo palácio, convidas tu. Quarto 4537, uma cama que não acaba, uma tapeçaria sobre a cabeceira. Pousámos as malas e agora olhamos Toledo da varanda. (...)
Na Câmara ficamos a saber da estratégia para o Quixote: pins, esculturas, silhuetas, cartazes, folhetos, álbum de colorir, colheita de vinho, livro de cozinha, concurso de televisão, site de internet, jogo interativo, calquitos, peça de teatro, musical, marcador de livros, rota turística, percurso pedestre e uma edição especial a um euro.
Quixote rules.»

Alexandra Lucas Coelho, E a Noite Roda, Edições Tinta-da-china, Lisboa, 2014, pp. 95-96.

fotografia: filipe sousa | 7 abril 2019

Paris, Notre-Dame

«A Françoise, quando eu lhe falava de uma igreja de Milão - cidade aonde provavelmente nunca iria - ou da catedral de Reims, ou mesmo da de Arras - que não poderia ver, já que estavam mais ou menos destruídas -, invejava os ricos que podem dar-se ao luxo do espectáculo de tesouros assim, e exclamava num nostálgico lamento: «Que belo que devia ser!» - ela que, vivendo agora em Paris havia tantos anos, nunca tivera curiosidade  de ir ver Notre-Dame. É que Notre-Dame, precisamente, fazia parte de Paris, da cidade onde decorria a vida quotidiana da Françoise e onde por consequência era difícil para a nossa velha criada - como o seria para mim se o estudo de arquitectura me não tivesse corrigido em certos pontos os instintos de Combray - situar os objectos dos seus sonhos.»

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - O Tempo Reencontrado (À la Recherche du Temps Perdu - Le Temps Retrouvé, 1927), trad. Pedro Tamen, Relógio d'Água, Lisboa, 2005, vol. VII, p. 157.


fotografia: clara lourenço | 29 fevereiro 2012

Trujillo, Plaza Mayor

«São três horas da tarde quando entro em Trujillo, e tenho sorte, porque tem apenas quinze mil habitantes e estão todos a dormir. Através de ruelas silenciosas conduzo para a Plaza Mayor, onde o único sobrevivente põe, a troco de dez pesetas, um talão de estacionamento por baixo do limpa-pára-brisas e se retira para a sombra, nas escadas ao lado da igreja de San Martín. A única coisa que ainda se mexe agora são as cegonhas, dentro e em cima das torres, pateiam um pouco para cá e para lá nos seus ninhos desordenados, despreocupadamente, no seu próprio calor africano. Mesmo à minha frente encontra-se uma colérica estátua equestre do conquistador Pizarro, a espada em riste pronta para espetar alguns incas, e é o que terá de continuar a fazer até ele próprio ser assassinado, pois o escultor esqueceu-se de lhe dar uma bainha para guardar a arma. O relógio solta uns sons roucos, portanto sem dúvida que aconteceu algo com o tempo, mas na praça nada muda.»

Cees Nooteboom, O (Des)Caminho para Santiago, (De Omweg Naar Santiago, 1992), trad. Patrícia Couto e Arie Pos, Asa Editores, Porto, 2003, p. 144. 


fotografia: filipe sousa | 14 abril 2019

Torino / Turim

«-Gajeiro! - bradou o Corsário Negro, mal a escuridão foi completa a bordo. -Onde navega esse barco?
-Para o sul, comandante.
-Na costa de Venezuela?
-Creio que sim!
-A que distância?
-Cinco ou seis milhas?
O Corsário Negro debruçou-se no varandim e lançou esta ordem: - Homens à coberta!
Em menos de meio minuto os cento e vinte corsários que constituíam a tripulação do Relâmpago estavam todos a postos.
Aqueles piratas reunidos no Golfo do México, de todas as partes da Europa e recrutados entre a pobre canalha dos portos do mar da França, Itália, Holanda, Alemanha e Inglaterra, gente com todos os vícios, mas nada preocupados com a morte e capazes dos maiores heroísmos e das mais incríveis audácias nas naus corsárias, tornavam-se mais submissos do que cordeiros até se transformarem em tigres no combate.
Bem sabiam que o seu comandante não deixaria impune qualquer descuido e que a mais leve indisciplina seria castigada com um tiro de pistola na cabeça ou pelo menos com o abandono em alguma ilha deserta.
Quando o Corsário Negro viu todos os seus homens a postos, observando-os quase um a um, voltou-se para Morgan, o qual esperava ordens:
-Achas que aquele navio será?...-perguntou-lhe.
-Espanhol, senhor - respondeu logo o imediato.
-Espanhóis! - exclamou o Corsário Negro com voz cava. -Será uma noite terrível para eles, e muitos não chegarão a ver o sol de amanhã.
-Assaltaremos aquele navio esta noite, senhor?
-Sim, metê-lo-emos a pique. No fundo do mar dormem os meus irmãos, mas não dormirão sós.»

Emilio Salgari, O Corsário Negro (Il Corsaro Nero, 1898), trad. A. Duarte de Almeida, Clube do Autor, Lisboa, 2010, pp. 112-113.


fotografia: filipe sousa | 10 abril 2018

Telheiro e Outeiro

«Ala para o Alentejo, para os grandes espaços, o apartamento em Lisboa ficava para as excepções. Antes a rústica simplicidade que o contacto com melíflua e falsa gente que não prestava preito à competência e capacidade de mando dum cidadão que passar a vida a dar provas.
O monte era habitação dos caseiros numa propriedade de Maria das Dores. Negociaram demoradamente a saída do casal, com as respectivas compensações -  a cortiça duma outra herdade dava para tudo -, de maneira que, com a ajuda dum arquitecto amigo, assaz carote, ali refizeram um monte corrido, baixo, com portas características, degraus entre as divisões, todas em fiada, tijoleira da região e duas vastas lareiras, com chaminés que atiravam muito lá para cima e davam para se fazer uma vida de conforto, durante boa parte do ano. À cautela, instalaram-se recuperadores de calor, que os quartos alentejanos são gelados no Inverno, e dispuseram-se mosquiteiros nas janelas, que por ali investem melgas em falange cerrada, ombro com ombro, asa com asa, ferrão com ferrão, as campeãs dos arredores de Serpa, aliás celebradas numa canção tradicional. Melhoramento aqui, melhoramento ali, foi preciso gastar muito dinheiro para disfarçar os cómodos modernos com a aparência artesanal de quartas nos poiais, talhas na sala, e um charabã na garagem, ao lado do jipe e do Audi.
Maria das Dores tinha garantido: «Desde que você me largue da mão, qualquer entrouxo me serve. Não me azucrine é o juízo.» E logo se acomodou com os seus jornais, as suas revistas, as suas fichas, os seus álbuns, o seu computador e ocupou boa parte da casa. Estava a preparar uma tese de mestrado, na universidade de Évora, sobre «O Traje Feminino entre os Povos Originários da Lusitânia Tarragonense». Não queria maçadas.»

Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina, 3ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 31-32.

fotografia: filipe sousa | 9 abril 2016

Arrábida

TARDE FERIDA

Que mar a pique
ou luz,
ausente e quente,
na boca tão intensa
que fere a tarde?

Eugénio de Andrade, «Coração do Dia» (1956-1958), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed. Limiar, Porto, s.d., p. 89.

fotografia: filipe sousa | 27 março 2016


Anemzi

Anemzi é uma pequena aldeia situada a 2.400 metros de altitude e vigiada de perto pelos cimos nevados do Jbel Masker. Desligado o motor do Land Rover, uma estranha quietude tomou conta do lugar, proporcionando a atmosfera perfeita para a nossa iniciação aos mistérios dessas casas de espessas paredes de taipa e pedra sobreposta (algumas delas com reboco de argila e palha), cobertas por açoteias com algerozes de madeira e esguias chaminés em actividade. Logo nos acudiram à memória as nossas casas do Sul, de taipa e cal, que, à semelhança daquelas, constituem um notável exemplo de adaptação às condições do meio. Arquitectura caracterizada por uma singular funcionalidade e plasticidade, fruto do apuramento de saberes e técnicas que passaram a prova do tempo e ainda hoje resistem envoltos no seu aparente arcaísmo.

Filipe Sousa, Alto Atlas Oriental: no coração de Marrocos (diário de viagem), 1993. 


fotografia: filipe sousa | dezembro 1993 

Venezia / Veneza, Basilica di Santa Maria della Salute

VENEZA

Que música serias
se não fosses água?

Eugénio de Andrade, «Escrita da Terra» (1970-1978), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed. Limiar, Porto, s.d., p. 139.

fotografia: filipe sousa | julho 2003

Safara, Estrada dos Lameirões

RÉPTEIS
                                   Pequena lagartixa branca,
                                   ó noiva brusca dos ladrilhos!
                                   Cecília Meireles

Na infância íamos ao quintal, à noite, cortávamos um ramo de brincos-de-princesa, trazíamos uma osga ao peito, como um broche. Osgas pálidas, de olhinhos brilhantes. Já na cama, sonhávamos que as estrelas eram osgas de cabeça tremulante de chama. O céu cravejado de estrelas-osgas com nomes de mouras encantadas. Uma caía de repente, pousava-se-nos no ombro, assustava-nos.
Osgas. Lagartixas. Não lhes fazíamos mal. Rezava a lenda que tinham beijado os pés do Senhor.
Encontrámo-las depois em África, cor de tabaco, vivendo connosco, comendo os mosquitos. Na Índia, grandes, soltando gargalhadas nos tectos de madeira. Em Macau, de corpo róseo, translúcido, alabastro.
Cobras e lagartos andam simbolicamente unidos: emblema de maledicência, de maldade. Imagem do mundo subterrâneo do homem?
Sonhar com cobras, segundo o povo das aldeias, adivinha traição.
E se alguém é mesmo ruim é «ruim como as cobras».
Répteis. Corpo de rastos. Figura da vileza. Sinónimo de perfídia e de dissimulação. No cristianismo o pé da Virgem esmagou a cabeça da serpente-demónio. Na mitologia oriental o Génio do Mal empunhava uma víbora à laia de ceptro.
Mas os livros da tradição chinesa falam da Cidade das Doze Serpentes como capital do Reino da Felicidade, e na História Antiga a serpente de asas era a Sabedoria. Os hindus ainda hoje respeitam as cobras. Algumas tribos africanas têm-nas por deuses.
Saint-Exupéry fala de como as crianças punham o dedo nos lábios a mandar calar os adultos, nessa terra à borda do deserto, quando, ao pôr do Sol, a cobra prateada saía do seu esconderijo sob o alpendre.
Em longínqua missão no Norte de Moçambique, uma freira contou-me que certa vez uma cobra fizera ninho no muro da capela. Bicho bonito, de pele mosqueada. Aos nativos quem falava em a matar? Era sagrada. As irmãs de caridade não ganhavam coragem para tal. Então, à missa, quando a campainha tocava ao erguer da hóstia, a cobra abandonava o seu buraco, com os filhos atrás, e dirigia-se majestosamente para o altar.

Maria Ondina Braga, A Revolta das Palavras, Livraria Bertrand, Amadora, 1975, pp.169-170.


fotografia: filipe sousa | 24 abril 2004