Safara, Estrada dos Lameirões

RÉPTEIS
                                   Pequena lagartixa branca,
                                   ó noiva brusca dos ladrilhos!
                                   Cecília Meireles

Na infância íamos ao quintal, à noite, cortávamos um ramo de brincos-de-princesa, trazíamos uma osga ao peito, como um broche. Osgas pálidas, de olhinhos brilhantes. Já na cama, sonhávamos que as estrelas eram osgas de cabeça tremulante de chama. O céu cravejado de estrelas-osgas com nomes de mouras encantadas. Uma caía de repente, pousava-se-nos no ombro, assustava-nos.
Osgas. Lagartixas. Não lhes fazíamos mal. Rezava a lenda que tinham beijado os pés do Senhor.
Encontrámo-las depois em África, cor de tabaco, vivendo connosco, comendo os mosquitos. Na Índia, grandes, soltando gargalhadas nos tectos de madeira. Em Macau, de corpo róseo, translúcido, alabastro.
Cobras e lagartos andam simbolicamente unidos: emblema de maledicência, de maldade. Imagem do mundo subterrâneo do homem?
Sonhar com cobras, segundo o povo das aldeias, adivinha traição.
E se alguém é mesmo ruim é «ruim como as cobras».
Répteis. Corpo de rastos. Figura da vileza. Sinónimo de perfídia e de dissimulação. No cristianismo o pé da Virgem esmagou a cabeça da serpente-demónio. Na mitologia oriental o Génio do Mal empunhava uma víbora à laia de ceptro.
Mas os livros da tradição chinesa falam da Cidade das Doze Serpentes como capital do Reino da Felicidade, e na História Antiga a serpente de asas era a Sabedoria. Os hindus ainda hoje respeitam as cobras. Algumas tribos africanas têm-nas por deuses.
Saint-Exupéry fala de como as crianças punham o dedo nos lábios a mandar calar os adultos, nessa terra à borda do deserto, quando, ao pôr do Sol, a cobra prateada saía do seu esconderijo sob o alpendre.
Em longínqua missão no Norte de Moçambique, uma freira contou-me que certa vez uma cobra fizera ninho no muro da capela. Bicho bonito, de pele mosqueada. Aos nativos quem falava em a matar? Era sagrada. As irmãs de caridade não ganhavam coragem para tal. Então, à missa, quando a campainha tocava ao erguer da hóstia, a cobra abandonava o seu buraco, com os filhos atrás, e dirigia-se majestosamente para o altar.

Maria Ondina Braga, A Revolta das Palavras, Livraria Bertrand, Amadora, 1975, pp.169-170.


fotografia: filipe sousa | 24 abril 2004

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