Telheiro e Outeiro

«Ala para o Alentejo, para os grandes espaços, o apartamento em Lisboa ficava para as excepções. Antes a rústica simplicidade que o contacto com melíflua e falsa gente que não prestava preito à competência e capacidade de mando dum cidadão que passar a vida a dar provas.
O monte era habitação dos caseiros numa propriedade de Maria das Dores. Negociaram demoradamente a saída do casal, com as respectivas compensações -  a cortiça duma outra herdade dava para tudo -, de maneira que, com a ajuda dum arquitecto amigo, assaz carote, ali refizeram um monte corrido, baixo, com portas características, degraus entre as divisões, todas em fiada, tijoleira da região e duas vastas lareiras, com chaminés que atiravam muito lá para cima e davam para se fazer uma vida de conforto, durante boa parte do ano. À cautela, instalaram-se recuperadores de calor, que os quartos alentejanos são gelados no Inverno, e dispuseram-se mosquiteiros nas janelas, que por ali investem melgas em falange cerrada, ombro com ombro, asa com asa, ferrão com ferrão, as campeãs dos arredores de Serpa, aliás celebradas numa canção tradicional. Melhoramento aqui, melhoramento ali, foi preciso gastar muito dinheiro para disfarçar os cómodos modernos com a aparência artesanal de quartas nos poiais, talhas na sala, e um charabã na garagem, ao lado do jipe e do Audi.
Maria das Dores tinha garantido: «Desde que você me largue da mão, qualquer entrouxo me serve. Não me azucrine é o juízo.» E logo se acomodou com os seus jornais, as suas revistas, as suas fichas, os seus álbuns, o seu computador e ocupou boa parte da casa. Estava a preparar uma tese de mestrado, na universidade de Évora, sobre «O Traje Feminino entre os Povos Originários da Lusitânia Tarragonense». Não queria maçadas.»

Mário de Carvalho, Fantasia para Dois Coronéis e uma Piscina, 3ª ed., Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 31-32.

fotografia: filipe sousa | 9 abril 2016

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.