Paris, Notre-Dame

«O Sena passa espesso, cor de chumbo, da cor do céu. Notre Dame como um grande mamífero branco cheio de gárgulas. (...)
Então andamos lado a lado, com a nossa bagagem, por Saint-Louis à noite. Levo-te à Ulysses e às papelarias da rue du Pont Louis-Philippe onde há anos descobri uns cadernos encadernados a pano que parecem livros, mas com as páginas todas brancas. Ficamos de nariz na montra.
Depois damos a volta ao clarão fantasmagórico de Notre Dame, e paramos de queixo levantado para a fachada, como se fosse a lua.
As noites de inverno têm a aura das coisas fechadas sobre si. Uma noite assim é para nós. (...)
Antes mesmo de entrar no quarto, gosto muito que este hotel só possa ser em Paris, a ranger e a afundar desde Victor Hugo.
E ao abrires a porta tenho a certeza de que a janela ao fundo já existia quando Hugo nasceu. Ele bem podia ter escrito O Corcunda de Notre Dame ou mesmo Os Miseráveis nesta alcova comprida e estreita, com a cama numa ponta e a janela na outra. Atrás da cama há um cubículo onde foi acrescentada a casa de banho, mas de resto tudo estaria assim há 150 anos: o padrão de flores na parede, a velha escrivaninha com tampo, o peso da janela altíssima, e quando a abrimos:
-Uau!
Notre Dame, incandescente. (...)
Estás de costas para Notre Dame, portanto a tua cara está escura, com os olhos a brilhar. A luz deve estar na minha cara. (...) 
Então, à luz de Notre Dame estamos em pé, deitados, ajoelhados. Eu caio de costas, a tua cabeça desaparece, eu apoio os pés nos teus ombros, tu respiras fundo, respiras. Vai tornar-se uma vocação.
Na manhã seguinte, recolhes a roupa e deixamos a nossa alcova d'Os Miseráveis para sempre.»

Alexandra Lucas Coelho, E a Noite Roda, Edições Tinta-da-china, Lisboa, 2014, pp. 75-76, 80-81, 88-89.


fotografia: pedro courinha | 29 fevereiro 2012

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