fotografia: filipe sousa | 14 abril 2019 |
«O viajante levanta-se,
passeia pelo quarto, põe direito um quadro, empurra um livro, cheira umas
flores. Diante de um mapa da península detém-se, ambas as mãos nos bolsos das
calças, as sobrancelhas quase imperceptivelmente franzidas. (…)
O viajante faz
um gesto com a boca.
-E também não importa se me desviar um pouco, se é que me desvio. Afinal de contas, qual é o problema? Ninguém me obriga a nada; ninguém me diz: vá por aqui, suba por ali, percorra aquele outeiro, esta encostazinha, este outro vale suave e de bom caminhar.
O viajante remexe nos papéis da mesa à procura dum duplo decímetro. Encontra-o, aproxima-se de novo da parede e, com o cigarro na boca e o sobrolho franzido para que os olhos não se encham de fumo, passeia a régua sobre o mapa.
-Etapas nem curtas nem longas, outra légua e outra hora, e assim até ao fim. Vinte ou vinte e cinco quilómetros por dia já é uma boa marcha; é passar as manhãs no caminho. Depois, sobre o terreno, todos estes projectos caem em saco roto e as coisas saem, como sempre acontece, como podem.
Procura umas notas, consulta uma cadernetazita, folheia uma velha geografia, estende sobre a mesa um plano da região.
-Sim; sem dúvida alguma, as regiões naturais. Os rios unem e as montanhas separam, é a velha sabedoria: não há outra divisão que valha. (…)
-As cidades, passarei à beira delas, como os bufarinheiros e os ciganos, como o javali e o gato montês.
Coça uma sobrancelha e franze a testa. O viajante não está muito convencido.
-Ou não, não passarei à beira. As cidades têm de ser atravessadas, a meio da tarde, quando as meninas saem a passear um bocado, antes do terço.
O viajante sorri. Tem os olhos semifechados, como de estar a sonhar.
-Bem, logo veremos.
Fica um bocado em silêncio, a pensar muito confuso, muito precipitadamente. Já é muito tarde.
-Que loucura!
O viajante – que se cansa de repente, como um pássaro ferido – pensa, afinal, que já só falta começar, que talvez esteja a dar muitas voltas à cabeça por uma viagem que se pretende fazer a eito, um pouco como o fogo numa eira: ao deus-dará e ao calhas.
Da mesma garrafa bebe o último gole.
-Não. Estas contas são outras; o melhor será pegar na mochila e desatar a andar.»
-E também não importa se me desviar um pouco, se é que me desvio. Afinal de contas, qual é o problema? Ninguém me obriga a nada; ninguém me diz: vá por aqui, suba por ali, percorra aquele outeiro, esta encostazinha, este outro vale suave e de bom caminhar.
O viajante remexe nos papéis da mesa à procura dum duplo decímetro. Encontra-o, aproxima-se de novo da parede e, com o cigarro na boca e o sobrolho franzido para que os olhos não se encham de fumo, passeia a régua sobre o mapa.
-Etapas nem curtas nem longas, outra légua e outra hora, e assim até ao fim. Vinte ou vinte e cinco quilómetros por dia já é uma boa marcha; é passar as manhãs no caminho. Depois, sobre o terreno, todos estes projectos caem em saco roto e as coisas saem, como sempre acontece, como podem.
Procura umas notas, consulta uma cadernetazita, folheia uma velha geografia, estende sobre a mesa um plano da região.
-Sim; sem dúvida alguma, as regiões naturais. Os rios unem e as montanhas separam, é a velha sabedoria: não há outra divisão que valha. (…)
-As cidades, passarei à beira delas, como os bufarinheiros e os ciganos, como o javali e o gato montês.
Coça uma sobrancelha e franze a testa. O viajante não está muito convencido.
-Ou não, não passarei à beira. As cidades têm de ser atravessadas, a meio da tarde, quando as meninas saem a passear um bocado, antes do terço.
O viajante sorri. Tem os olhos semifechados, como de estar a sonhar.
-Bem, logo veremos.
Fica um bocado em silêncio, a pensar muito confuso, muito precipitadamente. Já é muito tarde.
-Que loucura!
O viajante – que se cansa de repente, como um pássaro ferido – pensa, afinal, que já só falta começar, que talvez esteja a dar muitas voltas à cabeça por uma viagem que se pretende fazer a eito, um pouco como o fogo numa eira: ao deus-dará e ao calhas.
Da mesma garrafa bebe o último gole.
-Não. Estas contas são outras; o melhor será pegar na mochila e desatar a andar.»
Camilo José Cela, Vagabundo ao serviço de Espanha (Vagabundo al servício de España, 1948), trad. Cristina Rodriguez, Artur Guerra, Edições Asa, Porto, 1995, pp. 12-14.
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