fotografia: filipe sousa | 7 setembro 2021 |
Ainda Madrid. De volta ao Bairro das Letras. Onde viveram Miguel de Cervantes (1547-1616) e Félix Lope de Vega (1562-1635), os mais ilustres representantes do Século de Ouro das letras espanholas. Chegaram a residir na mesma rua, após o autor de D. Quixote ter trocado o número 18 da calle de las Huertas, onde se situa, desde 1827, a Casa Alberto, um dos mais icónicos estabelecimentos de tapas da cidade, pelo número 2 da calle de Cervantes.
Apesar de vizinhos (Lope de Vega morava no número 11), não morriam de amores um pelo outro, como provam os poemas satíricos em que se desacreditavam mutuamente. Neste ambiente de rivalidade permanente, triunfou o prolífico Lope de Vega, autor de mais de 2.000 peças de teatro. Quanto a Cervantes, ainda que reconhecido em vida devido ao sucesso alcançado com o seu D. Quixote, acabaria por morrer pobre.
Já perto do fim, manifestou o desejo de ser sepultado no convento das Trinitárias Descalças, situado no número 18 da calle Lope de Vega, paralela à calle de Cervantes e à calle de las Huertas, em sinal de agradecimento aos monges trinitários que, em 1580, reuniram o resgate necessário para o libertar do cativeiro, em Argel, um dos muitos episódios da sua vida atribulada.
Desengane-se, porém, quem espere encontrar aí os restos mortais do "Príncipe dos Engenhos".
«A casa onde Cervantes viveu e morreu encontra-se, naturalmente, na
calle de Cervantes, a mesma rua onde nesses dias vivia Lope de Vega, embora a
rua tivesse então outro nome. Agora há duas ruas antigas e estreitas, próximas
uma da outra, com os nomes destes dois grandes das letras espanholas que, como
costuma acontecer nos meios literários, muito mal diziam um do outro. Lope de Vega
era o autor de êxito do seu tempo, o homem das duas mil peças de teatro e
«vinte e um milhões de versos», enquanto Cervantes levava uma vida aventureira,
participava em batalhas marítimas, ficou ferido, foi preso por corsários
berberes e viveu, juntamente com o irmão, durante cinco anos como escravo no
Norte de África até ser resgatado por um monge. (…)
É de manhã cedo numa segunda-feira que erro pelas duas ruas com os nomes dos escritores. (…) Por fim, encontro a casa de Cervantes. É o número 2. (…) Na rua contígua encontro o convento onde Cervantes está enterrado. Segundo a placa na fachada era um convento das Trinitárias e o escritor foi aí enterrado a seu pedido, por ter sido um trinitário que o salvou da escravidão.
Com alguma dificuldade abro a porta e entro num espaço escuro onde se encontra uma outra porta, entreaberta. Agora estou perante o que é claramente a porta de uma igreja, mas esta está fechada. Nisto ouço uma outra porta abrir lentamente e vejo duas cabeças de freiras a olharem para mim. «Cervantes está enterrado aqui?» pergunto, e a resposta é muito espanhola: «Está sim, mas não está cá». Digo que mesmo assim gostaria de dar uma vista de olhos à igreja, mas não é possível. A missa terminou e então fecha-se a igreja.
-Mas há pelo menos uma sepultura?
-Não, não há propriamente uma sepultura.
Este escritor apagou minuciosamente o seu rasto, porém não se escapa tão facilmente à posteridade. Perto das Cortes encontra-se uma estátua num pequeno jardim triangular.»
Cees Nooteboom, O (Des)Caminho para Santiago, (De
Omweg Naar Santiago, 1992), trad. Patrícia Couto e Arie Pos, Asa Editores,
Porto, 2003, pp. 98-100.
É de manhã cedo numa segunda-feira que erro pelas duas ruas com os nomes dos escritores. (…) Por fim, encontro a casa de Cervantes. É o número 2. (…) Na rua contígua encontro o convento onde Cervantes está enterrado. Segundo a placa na fachada era um convento das Trinitárias e o escritor foi aí enterrado a seu pedido, por ter sido um trinitário que o salvou da escravidão.
Com alguma dificuldade abro a porta e entro num espaço escuro onde se encontra uma outra porta, entreaberta. Agora estou perante o que é claramente a porta de uma igreja, mas esta está fechada. Nisto ouço uma outra porta abrir lentamente e vejo duas cabeças de freiras a olharem para mim. «Cervantes está enterrado aqui?» pergunto, e a resposta é muito espanhola: «Está sim, mas não está cá». Digo que mesmo assim gostaria de dar uma vista de olhos à igreja, mas não é possível. A missa terminou e então fecha-se a igreja.
-Mas há pelo menos uma sepultura?
-Não, não há propriamente uma sepultura.
Este escritor apagou minuciosamente o seu rasto, porém não se escapa tão facilmente à posteridade. Perto das Cortes encontra-se uma estátua num pequeno jardim triangular.»
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.