|
fotografia: filipe sousa | 20 junho 2023 |
Dias 9/10 – Lucera, Foggia, Nápoles, Roma, Veneza
Regressamos a Foggia de comboio. Onde nos espera o autocarro para Nápoles. Duas horas e quarenta minutos de viagem, com paragens em Lacedonia, Benevento e Avelino, já na Campânia. Ao fim da tarde, entramos na cidade do Vesúvio, onde é notório um ambiente de festa. Não há lugar que não ostente as cores do clube da terra pela recente conquista do Calcio, quebrando um jejum de trinta e três anos! São bons prenúncios para o que nos faltar viver desta jornada. É sabido, no entanto, que viajar é lidar com o imprevisto. E quando pensávamos que Nápoles, Pompeia e a Costa Amalfitana seriam as derradeiras etapas do nosso périplo, iniciado há dez dias em Tessalónica, eis que o concerto dos Coldplay, agendado para logo à noite no estádio Diego Armando Maradona, vem deitar por terra os nossos planos. Os preços dos quartos disponíveis nesta altura tornaram-se proibitivos para a nossa bolsa. Como não fizemos reserva antecipada, pouco há a fazer. Ou melhor: só nos resta resignar e reconciliar com o destino, que nos desvia de Nápoles e empurra para outras paragens, mais a Norte. Que destino é esse, afinal? Para já, temos encontro marcado com Roma, que dista uma hora e meia de comboio. No dia seguinte, acordamos num hotel da cadeia Meininger, cuja decoração é dedicada à sétima arte italiana e aos filmes inspirados na cidade eterna. Proposta tentadora, mas para aproveitar noutra altura. O destino está há muito traçado. Corremos para Roma Termini. À nossa espera está o TGV da Italo com destino a Veneza, o destino dos destinos!
Chegarmos a Veneza de comboio não é apenas a experiência dessa realidade, que se vive nos instantes em que acontece, é também a representação dessa chegada através da arte, da literatura, que transportamos connosco e acaba por influenciar a nossa percepção.
A título de exemplo:
«O comboio para Veneza segue por um dique com uma superfície aquática a perder de vista, apenas interrompida por postes e outras construções do dique. Havia que sair depressa para apanhar o vaporetto. Simon e Katz já estão a caminho, eu fico para trás porque tenho de comprar liras, o barco sai e de pouco servem os movimentos agitados dos braços, não consigo ouvir o que dizem.»
Walter Benjamim, «A minha viagem a Itália (Pentecostes, 1912)» in Diários de Viagem (Gesammelte Schriften), ed. e trad. João Barrento, Assírio & Alvim, Porto, 2022, p.58.
«Em Veneza, a água começa logo que se deixa o trem. O gondoleiro solícito equilibra montes de malas na sua gôndola, com assombrosa segurança.»
Cecília Meireles, «Cidade líquida» in Crônicas de viagem 2 (1953), reimpr. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, pp. 79-80.
«Levantei a minha bagagem, fui para a gare e apanhei o primeiro comboio que apareceu - para Veneza.
(...)
A aproximação por via férrea é mais prosaica, para dizer o mínimo, mas até atravessar a laguna no comboio em direção a Veneza me encheu de uma espécie de agradável excitação, uma calma exuberância que não senti em mais parte alguma.
(...)
É tão fácil acreditar em magia, aqui em Veneza. Quando se avista a cidade pela primeira vez, de comboio, é como uma miragem, como uma visão de louco esplendor que um qualquer feiticeiro tivesse conjurado lá longe no mar.»
Robert Dessaix, Cartas de Veneza (Night Letters, 1996), trad. Mário Dias Correia, Gótica, Lisboa, 2002, pp. 61, 208-209.
«Antes de chegarmos a Veneza, e quando o comboio já tinha passado (em branco no manuscrito), Maman lia-me a descrição deslumbrante que Ruskin faz da cidade, comparando-a sucessivamente aos recifes de coral dos mares da Índia e a uma opala. Naturalmente que, no momento em que a gôndola nos colocou diante dela, a cidade não podia encontrar aos nossos olhos a mesma beleza que tivera por um instante perante a minha imaginação, já que não podemos ver simultaneamente as coisas com o espírito e com os sentidos.»
Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve, Folio-Gallimard, Paris,1998, p. 112 (trecho traduzido por António Mega Ferreira, Crónicas Italianas, Sextante Editora, Porto, p. 217).