Quinta da Esperança, Moura

fotografia: filipe sousa  1 agosto 2018

 















«O Mediterrâneo inteiro –esculturas, palmeiras, joias de ouro, heróis barbudos, vinho, ideias, navios, luar, górgonas aladas, figuras de bronze, filósofos -, todo ele, parece despontar no gosto áspero e acre da azeitona preta entre os nossos dentes. Esse gosto é mais antigo que o da carne e o do vinho tinto. Antigo como a água fresca.» 

Lawrence Durrell, Paisagem com oliveiras (Landscape with olive trees), 1976.

Praia da Princesa

fotografia: filipe sousa | 25 dezembro 2023

 

















«Reparo no céu...Como num quadro inverosímil de Turner as névoas esgarçadas embebem-se em reflexos vermelhos  - cores delicadas de nácar, interiores de conchas, tons róseos bebidos pelas gotas de humidade. (...) mas é no céu que se representa a verdadeira tragédia: os tons violetas da agonia carregam-se e condensam-se; as nuvens ensopam-se de tinta mais escura e um grande véu lilás interpõe-se pouco e pouco entre mim e a paisagem. Todas as cambiantes vão reflectir-se nas águas onde bóia ainda o doirado do poente. Sinto que a tinta que envolve a paisagem morre a muito custo, e que toda esta humidade se quer fartar de luz, transformando-se como numa mágica em explosões e cores desgrenhadas pelos ares e em cenários irreais na terra cheia de mistério, até que um único risco de oiro ao cimo de água, oscila, serpenteia e acaba por desaparecer num último arabesco...(...) Só aqui se compreende bem o que a luz lhe custa morrer...»

Raul Brandão, Os Pescadores (1923), Estante Editora, Aveiro, 1989, pp. 79-80, 82.

Fonte da Telha

fotografia: filipe sousa | 24 dezembro 2022

 






















MADE IN PORTUGAL

Peixe tão definido
na praia,
não relâmpago de prata:
folha de navalha

tirada da pança do mar,
do recesso que a alimentava,
lâmina boquiaberta,
áscua tresmalhada.

Peixe sem solução,
máquina a parar,
circular e vítrea aflição
a olhar.

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (Feira Cabisbaixa, 1965), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, p. 237.

Arles à Bouc

fotografia: filipe sousa | 22 setembro 2023

 



««Agora estamos banidos e este barco é a nossa terra... e o rio o nosso refúgio.»»

Joseph Conrad, «A Laguna» in Histórias Inquietas (Tales of Unrest, 1898), trad. Carlos Leite, 2ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa 2002, p. 224.  

Arles, canal de Arles à Bouc

fotografia: filipe sousa | 22 setembro 2023

 


Ponte de Langlois em Les Lavandières
"No que diz respeito à obra, trouxe hoje um quadro de 15, é uma ponte levadiça sobre a qual passa uma pequena carruagem, silhueta contra um céu azul - o rio também azul, margens alaranjadas com vegetação, um grupo de lavadeiras de cabelos encaracolados e toucas coloridas...".

Carta de Vincent van Gogh ao seu irmão Théo, Março 1888, in Lettres de Vincent van Gogh à son frère Théo, Paris, 1986.

Venezia / Veneza, Riva del Partigiani

fotografia: filipe sousa | 23 junho 2023

 

















«Dez dias depois (de nascer perto de Rimini) os meus pais regressaram comigo a Veneza. Eles viviam em casa dos meus avós Genero, em La Bragora, no distrito - o Sestiere - di Castello. Nessa casa com muitos aposentos moravam, além dos meus pais e dos meus avós, os meus tios e tias. Esse estilo de vida era já excepcional na época, mas em Veneza toda a gente se conhecia. Os venezianos deambulavam de manhã à noite, pelas ruelas ou de barco, na laguna. Encontravam-se em festas - como a festa do Redentor -, na tômbola, ou, pelas noites de Verão, na praça de São Marcos à fresca. Os habitantes de Veneza tinham o sentimento de pertencer todos à mesma família, talvez por os seus antepassados serem todos oriundos de horizontes diferentes.»

Hugo Pratt, O Desejo de Ser Inútil, Memórias e Reflexões (Le Désir D'Être Inutile - Souvenirs et Refléxions, 1991), trad. António Sabler, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2005, pp. 21-22.

Odres

fotografia: filipe sousa | 30 agosto 2023

 

















Não posso acreditar. Moras no Alentejo. Trabalhas no Alentejo. E ainda passas férias no Alentejo? E na mesma piscina e paisagem de há quinze anos? Porra, e não te fartas? Se isso não é obsessão, é o quê? No mínimo, uma tremenda falta de imaginação. Ah, e por falar em piscina, livra-te de vires outra vez com essa Fantasia para dois coronéis e uma piscina, do Mário……….esqueci-me do apelido. Era só o que faltava. Não podes variar um bocadinho? Que fixação! Que panca a tua!

«O que mais importava é que a piscina era uma caixa quadrilátera cheia de líquido, que obrigava a múltiplas tarefas, de mão, de química e de motor. Cumprir todos os conformes, ph nos 7,5, cloro a 0,6 g por metro cúbico, algicida q.s., abrilhantador, vigiar a renovação de água, aspiração, filtragem, remoção de folhas, insectos, sementes e pequenos animais afogados, sempre era mais interessante do que andar para ali a encharcar-se, a cansar-se e a fazer figuras. Lencastre andava habitualmente de calções de banho, sem mais nada. Visto de longe, o porte daria uns ares a Pablo Picasso em Mougins, se não tivesse a pele tão escura, o cabelo tão abundante e bigodes brancos voluteados. Também Lencastre considerava o banho de piscina um tremendíssimo frete. Para ele, banhos só de mar e até aos vinte e oito anos. Daí para diante eram partes gagas. Mas gostava de ajudar. Apontava com o dedo o chapinhar duma sardanisca suicida, ou a campanha de escaravelhos que decidira tomar banho e morrer, balanceando-se de gozo nas mansas ondas. Às vezes dizia, com a mão na orelha, «não ouço o filtro, tens a certeza de que o disjuntor não disparou?»».

Mário de Carvalho, Fantasia para dois coronéis e uma piscina, 3ª ed. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, pp. 149-150.

Venezia / Veneza, Fondamenta S. Giuseppe

fotografia: filipe sousa | 22 junho 2023

 


Dia 10 - Veneza (sestiere di Castello)
Como previsto, o vaporetto fica praticamente vazio após tocar o cais da praça de S. Marcos. Como habitual, repleta de turistas. À procura de uma outra Veneza, prosseguimos viagem na laguna. Uma Veneza menos concorrida e menos sujeita à pressão turística. Uma Veneza onde vivem ainda venezianos em bairros típicos, cultivando as tradições.
Para trás ficou a travessia do Grande Canal, a rua mais bonita do mundo, por entre um desfile de palácios e embarcações. É impressionante como o tráfego flui por mais denso que seja. Para não falar da perícia com que os gondoleiros enfrentam a ondulação causada pela passagem de lanchas a toda a brida.
Entretanto, começa a manobra de atracação do vaporetto no cais de Giardini Publicci, na parte oriental da cidade. Uma Veneza menos monumental mas mais verde e intimista, a apenas duas paragens da praça de São Marcos. À nossa espera está o locatário do alojamento onde passaremos os próximos dias. Recebe-nos em chinelos e camisola de manga cava, a exibir os bíceps desenvolvidos. É veneziano de gema e o seu ar entroncado tanto sugere um pescador da laguna, como um operário do Arsenal ou então um estivador da cidade-satélite de Mestre. Afinal, nem uma coisa nem outra: é emigrante em Inglaterra! Expansivo e prestável, ajuda-nos a transportar as malas até à moradia, no bairro (sestiere) do Castelo, entre os Jardins Públicos, onde tem lugar a Bienal de Arquitectura, e o Arsenal, o mais antigo estaleiro naval do mundo. Durante o caminho, não desperdiça uma oportunidade para nos inquirir sobre a qualidade do seu inglês. Quando entramos em Rio Terrà Forner, tudo se torna ainda mais familiar. Há vizinhos que conversam à soleira da porta sob roupa estendida a toda a largura da rua. Depois de um oratório de feição popular, mantido pelos residentes e em que não falta a imagem de Santo António, a via afunila ainda mais, o que justifica a toponímia: Calle Stretta de Ca’Sarasina. Pouco depois, chegamos ao nosso destino, bem perto de Bragora, onde nasceu Antonio Vivaldi. Coincidência, sugestão ou sonho de uma noite de Verão, em breve somos embalados pelo segundo andamento do concerto “O Verão”, d’ As Quatro Estações, a ecoar no bairro adormecido.

PS. As Quatro Estações foram compostas há precisamente 300 anos pelo veneziano Antonio Vivaldi.

«-Já te aconteceu ver uma cidade que se pareça com esta? - perguntou Kublai a Marco Polo estendendo a mão repleta de anéis para fora do baldaquim da seda do bucentauro imperial, a indicar as pontes em arco sobre os canais, os palácios principescos cujos portais de mármore imergem nas águas, o vaivém das barcas ligeiras que volteiam em ziguezague impelidas por longos remos, as chatas que descarregam cestas de hortaliças nas praças dos mercados, as varandas, os miradouros, as cúpulas, os campanários, os jardins das ilhas que verdejam no pardacento da laguna.» 

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis (Le città invisibili, 1990), trad. José Colaço Barreiros, Editorial Teorema, Lisboa, 2002, p. 89.

Moura, Rua 5 de Outubro 17

fotografia: filipe sousa | 17 agosto 2023

 

















Que se cuidem os mosquitos do meu quintal quando ela está por perto. Colada à vidraça da porta, de cabeça para baixo, desafiando a gravidade, a minha pequena deusa nocturna não pára de me surpreender com o seu repertório de técnicas de caça. Simplesmente admirável! É como se retribuísse pela luz artificial que inunda a sala onde escrevo este texto, a mesma que atrai as suas presas de encontro à superfície plana do vidro, facilitando-lhe a caçada.
PS. As osgas não são venenosas nem causam doenças dermatológicas. Pelo contrário, são totalmente inofensivas para o ser humano, além de suas aliadas no controlo das populações de insectos e aranhas. É tempo, portanto, de nos deixarmos de mitos e superstições. E de as deixarmos entrar em nossas casas para uma limpeza de fundo. Porque não?

«Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacudindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espetáculo sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me como se o visse pela primeira vez.
(...)
Eu vejo tudo. Dentro desta casa sou como um pequeno deus noturno. Durante o dia, durmo.(...)
A casa vive. Respira. Ouço-a toda a noite a suspirar. As largas paredes de adobe e madeira estão sempre frescas, mesmo quando, em pleno meio-dia, o sol silencia os pássaros, açoita as árvores, derrete o asfalto. Deslizo ao longo delas como um ácaro na pele do hospedeiro. Sinto, se as abraço, um coração a pulsar. Será o meu. Será o da casa. Pouco importa. Faz-me bem. Transmite-me segurança.
(...)
Ao entardecer, já o disse, fico na sala de visitas, colado às vidraças, vendo morrer o Sol. Depois que a noite cai vagueio pelas diferentes divisões.»

José Eduardo Agualusa, O Vendedor de Passados, Quetzal Editores, Lisboa, 2017, pp. 11, 14, 15.

Venezia / Veneza, Fondamenta Santa Lucia

fotografia: filipe sousa | 20 junho 2023

 

















Dias 9/10 – Lucera, Foggia, Nápoles, Roma, Veneza
Regressamos a Foggia de comboio. Onde nos espera o autocarro para Nápoles. Duas horas e quarenta minutos de viagem, com paragens em Lacedonia, Benevento e Avelino, já na Campânia. Ao fim da tarde, entramos na cidade do Vesúvio, onde é notório um ambiente de festa. Não há lugar que não ostente as cores do clube da terra pela recente conquista do Calcio, quebrando um jejum de trinta e três anos! São bons prenúncios para o que nos faltar viver desta jornada. É sabido, no entanto, que viajar é lidar com o imprevisto. E quando pensávamos que Nápoles, Pompeia e a Costa Amalfitana seriam as derradeiras etapas do nosso périplo, iniciado há dez dias em Tessalónica, eis que o concerto dos Coldplay, agendado para logo à noite no estádio Diego Armando Maradona, vem deitar por terra os nossos planos. Os preços dos quartos disponíveis nesta altura tornaram-se proibitivos para a nossa bolsa. Como não fizemos reserva antecipada, pouco há a fazer. Ou melhor: só nos resta resignar e reconciliar com o destino, que nos desvia de Nápoles e empurra para outras paragens, mais a Norte. Que destino é esse, afinal? Para já, temos encontro marcado com Roma, que dista uma hora e meia de comboio.
No dia seguinte, acordamos num hotel da cadeia Meininger, cuja decoração é dedicada à sétima arte italiana e aos filmes inspirados na cidade eterna. Proposta tentadora, mas para aproveitar noutra altura. O destino está há muito traçado. Corremos para Roma Termini. À nossa espera está o TGV da Italo com destino a Veneza, o destino dos destinos!
Chegarmos a Veneza de comboio não é apenas a experiência dessa realidade, que se vive nos instantes em que acontece, é também a representação dessa chegada através da arte, da literatura, que transportamos connosco e acaba por influenciar a nossa percepção.
A título de exemplo:

«O comboio para Veneza segue por um dique com uma superfície aquática a perder de vista, apenas interrompida por postes e outras construções do dique. Havia que sair depressa para apanhar o vaporetto. Simon e Katz já estão a caminho, eu fico para trás porque tenho de comprar liras, o barco sai e de pouco servem os movimentos agitados dos braços, não consigo ouvir o que dizem.»

Walter Benjamim, «A minha viagem a Itália (Pentecostes, 1912)» in Diários de Viagem (Gesammelte Schriften), ed. e trad. João Barrento, Assírio & Alvim, Porto, 2022, p.58.


«Em Veneza, a água começa logo que se deixa o trem. O gondoleiro solícito equilibra montes de malas na sua gôndola, com assombrosa segurança.»

Cecília Meireles, «Cidade líquida» in Crônicas de viagem 2 (1953), reimpr. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999, pp. 79-80. 


«Levantei  a minha bagagem, fui para a gare e apanhei o primeiro comboio que apareceu - para Veneza. 
(...)
A aproximação por via férrea é mais prosaica, para dizer o mínimo, mas até atravessar a laguna no comboio em direção a Veneza me encheu de uma espécie de agradável excitação, uma calma exuberância que não senti em mais parte alguma.  
(...)
É tão fácil acreditar em magia, aqui em Veneza. Quando se avista a cidade pela primeira vez, de comboio, é como uma miragem, como uma visão de louco esplendor que um qualquer feiticeiro tivesse conjurado lá longe no mar.»

Robert Dessaix, Cartas de Veneza (Night Letters, 1996), trad. Mário Dias Correia, Gótica, Lisboa, 2002, pp. 61, 208-209.


«Antes de chegarmos a Veneza, e quando o comboio já tinha passado (em branco no manuscrito), Maman lia-me a descrição deslumbrante que Ruskin faz da cidade, comparando-a sucessivamente aos recifes de coral dos mares da Índia e a uma opala. Naturalmente que, no momento em que a gôndola nos colocou diante dela, a cidade não podia encontrar aos nossos olhos a mesma beleza que tivera por um instante perante a minha imaginação, já que não podemos ver simultaneamente as coisas com o espírito e com os sentidos.»

Marcel Proust, Contre Sainte-BeuveFolio-Gallimard, Paris,1998, p. 112 (trecho traduzido por António Mega Ferreira, Crónicas Italianas, Sextante Editora, Porto, p. 217).

Lucera, Piazza del Duomo

fotografia: filipe sousa | 19 junho 2023

 

















Dias 7/8/9 – Sul de Itália (Lucera, Troia, Bovino)
Na estação ferroviária de Lucera, quatro miúdos, acabados de sair da escola, sentam-se à minha frente e começam a fumar. Chamo-lhes à atenção de que é proibido naquele local. E aponto para o aviso na parede. Em resposta, expelem o fumo na minha direcção. E perguntam sobre o que estamos, eu e os que me acompanham, a fazer em Lucera, se não há nada para visitar. Ao dizer-lhes que não viemos em turismo mas em trabalho, largam uma risada. Que trabalho é esse que chama pessoas de fora a Lucera? Incomodado e a perder a paciência, insisto para que não fumem ali. Fitando-me, decidem levar os cigarros até ao fim. Saio para a gare antes disso, a tentar encontrar uma explicação para tanta insolência. Dou-me conta de que estou no sul de Itália, mas tento resistir a generalizações e lugares-comuns, apesar de me perseguirem, naquele instante, algumas cenas d’ O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa, com a Sicília em pano de fundo. De regresso a Foggia, revejo o que foram estes últimos dias nesta região do Mezzogiorno.
A janela do meu quarto no Palazzo Cavalli, dos séculos XVII-XIX, abre-se para a Piazza del Duomo, em Lucera, uma das mais belas de Itália, onde pontifica a Basílica Catedral de Santa Maria Assunta, construída no início do século XIV no local antes ocupado por uma mesquita. O palácio será a nossa base para explorar a região das Montanhas de Dauni, no Norte da Apúlia, um território de ocupação antiga por onde passaram gregos, dáunios, romanos, cartagineses, cristãos, lombardos, bizantinos, francos, normandos, suábios, sarracenos, angevinos, aragoneses, bourbons. E que se mantem a salvo, felizmente!, das hordas de turistas que invadem Roma, Milão, Nápoles, Veneza, Florença…, as mecas do turismo transalpino, para não dizer mundial.
Além de Lucera (a Luceria dos romanos, a sentinela da Apúlia, a antiga capital da Capitanata), visito Troia e Bovino, ambas a sul. Troia (a Aecae romana), situada na encruzilhada de rotas que ligavam Roma ao Oriente (via Francigena) e Roma a Brindisi (Via Apia), com a sua catedral românica do século XI, que ostenta na fachada uma rosácea rendilhada e duas portas em bronze assinadas e datadas (1127) por um tal Oderisio da Benavento: a da Prosperidade e a da Liberdade. Bovino (a Vibinum romana, considerada uma das mais belas aldeias italianas), dominando os vales envolventes com o seu castelo que recebeu rainhas e poetas, é hoje anfitriã do Festival do Porco, organizado por associações locais e pelo movimento Slow Food, e do Festival Independente de Curtas Metragens.
Nesta região, a paisagem é feita de planícies ondulantes de cereais, vinho e azeite, a lembrarem o Alentejo, e de montanhas arborizadas, com cumes pouco acima dos mil metros, onde ainda existem lobos!, que explicam parte do nome da região: Monti Dauni.
A não perder, para além dos atractivos da paisagem, os sabores da gastronomia. Aqui, come-se muito e bem, e confraterniza-se melhor! Sobretudo no Verão, ao fim da tarde e durante a noite, depois das horas de maior calor, em que as praças se enchem de gente ávida de convívio e mândria (o dolce fare niente). Tal e qual como no Alentejo e em Moura, ou não fôssemos todos filhos da mesma civilização mediterrânica.

«Fala-se em termos mais gerais dos italianos que dos outros povos: temperamento meridional ou natureza tumultuosa, facilidade de passar da jovialidade à angústia, da brincadeira à cólera e vice-versa. Nenhum povo reúne todas as características mediterrânicas: elas estão espalhadas de uma ponta à outra do Mediterrâneo. Os discursos literários sobre as belezas da Itália levaram muita gente a ver antes de mais nada aquilo que lhe diziam para ver, antes de considerar o que tinha diante dos olhos, levaram-na a deixar de distinguir o passado ou presente das suas imagens, a descobrir em cada parcela da península o Inferno, o Purgatório ou o Paraíso, os conflitos de Roma e das províncias, a rivalidade entre Veneza e Génova, Nápoles ou Palermo, Florença e Siena, e a encontrar em cada cidade as querelas dos guelfos e dos gibelinos, atrás de cada porta os Montéquios e os Capuletos, a procurar em cada negócio a máfia ou a camorra, em cada cidadela os Médicis ou os Bórgias, em todas as capelas os mesmos prelados e os mesmos santos. «Não nos venha dizer o que é o Mediterrâneo», diz-se em certas cidades costeiras aos que repisam o que toda a gente sabe.»

Predrag Matvejevitch, Breviário Mediterrânico (1987), trad. do francês Pedro Tamen, Quetzal Editores, Lisboa, 2019, p. 112. 

Moura, Terceira Rua da Mouraria / Rua do Cordovil

fotografia: filipe sousa | outubro 1992

 






















Esta fotografia tem mais de 30 anos.
De que falam elas, as vizinhas, na esquina da Terceira Rua da Mouraria com a Rua do Cordovil, em Moura?
Teócrito, que viveu entre 310 a.C. e 250 a.C., pode ter a solução.
Um clássico intemporal.

As Siracusanas (Idílio XV)

(...)
GORGO
Ai desta vida desgraçada! A custo me salvei até vós,
Proxínoa, de tanta multidão, de tantas quadrigas!
Por toda a parte calçado militar, por toda a parte homens de capa.
Mas que caminho interminável. Tu vives sempre cada vez mais longe.

PRAXÍNOA
Isso é aquele louco. Veio para o fim do mundo e comprou
um covil - pois isto não é uma casa - para que não fôssemos vizinhas
uma da outra, por despeito, mau e invejoso: sempre o mesmo.

GORGO
Não fales assim do teu marido, querida, do Dínon (...)

PRAXÍNOA
Pois esse (...) há dias ((...) eu digo-lhe:
«(...) vai à loja comprar nitrato e tinta vermelha»)
trouxe-me sal, esse homem de treze côvados.

GORGO
O meu é a mesma coisa. Dioclides é a ruína do dinheiro.
Sete dracmas de pelos de cão, restos de alforges velhos,
cinco peles comprou ele ontem, tudo uma porcaria, trabalho sobre
trabalho.
Mas vai, põe o vestido e a tua capa.
Vamos para o palácio do afortunado rei Ptolomeu,
para vermos o Adónis. Ouço dizer que algo de belo
a rainha preparou.

PRAXÍNOA
Em casa de rico tudo é rico.

GORGO
As coisas que vires, poderás contá-las a quem não viu.
Está na hora de irmos.

Teócrito (310 a.C.-250 a.C), As Siracusanas (Idílio XV), frag. 4-26, trad. do grego por Frederico Lourenço, Poesia Grega, Quetzal, Lisboa, 2020, pp. 327-331.

Corfu, Αφιώνας / Afionas

fotografia: filipe sousa | 18 junho 2023

 






















Dia 6 - Ilha de Corfu (Afionas)
A Grécia em geral e a ilha de Corfu em particular estão, como todos sabemos, cheias de estrangeiros que iam a caminho de casa vindos de um sítio qualquer e ali ficaram. Outros chegaram e zarparam porque era mais forte o desejo de alcançarem a sua Ítaca. Diante deste final de tarde em Afionas, a olhar o horizonte, o meu dilema é esse mesmo: ficar ou partir? Não tenho outro remédio senão seguir o destino de Ulisses. Mas a viagem está longe de terminar, de regresso à minha Ítaca.

«(...)E Nausícaa, dotada da beleza dos deuses,
encostou-se a uma coluna perto da ombreira da sala:
olhou maravilhada para Ulisses, mirando-o com os olhos.
E falando dirigiu-lhe as palavras apetrechadas de asas:

"De ti me despeço, ó estrangeiro. Quando chegares à tua terra pátria,
lembra-te de mim: deves-me em primeiro lugar o preço da tua vida."»

Homero, Odisseiacanto VIII, vs. 457-462, trad. Frederico Lourenço, Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p. 140.

Corfu, Πόρτο Τιμόνι / Porto Timoni

fotografia: filipe sousa | 18 junho 2023

 

















Dia 6 - Ilha de Corfu (Kassiopi, Afionas, Porto Timoni)
Kassiopi é uma vila de pescadores na costa nordeste de Corfu, a escassos dois quilómetros da costa albanesa. Os romanos estiveram aqui há dois mil anos para pensar, ler e conversar com os deuses. Cícero foi um deles. Muitos anos depois, chegou Miguel de Cervantes, sobrevivente da batalha de Lepanto, para se restabelecer de ferimentos graves num braço. Do outro lado da ilha ficam os paraísos de Afionas e Porto Timoni, por onde deve ter andado, em tempos mais recentes, Eugénio de Andrade, ao que parece o único dos nossos “helenistas” a pisar Corfu.

Kerkira

Com esse cheiro a linho
que só os ombros acariciados têm
a terra é branca
e nua.

Liliáceas em Corfu

Em Corfu os asfódelos devem estar
em flor, quando
o vento os inclina no deserto
dos lábios rompe a água. 

Turismo em Corfu

Onde Ulisses avistou Nausica
com o verão brincando nas areias
espreita agora a nádega indecisa
e vagabunda de qualquer sereia
se não for de algum anjo sodomita. 

Eugénio de Andrade, Escrita da Terra e outros epitáfios (1974), 5ª ed., Inova, Porto, 1983, p.18.

Corfu, Κασσιόπη / Kassiopi

fotografia: filipe sousa | 18 junho 2023

Dia 6 - Ilha de Corfu (Kassiopi, Afionas, Porto Timoni)
Kassiopi é uma vila de pescadores na costa nordeste de Corfu, a escassos dois quilómetros da costa albanesa. Os romanos estiveram aqui há dois mil anos para pensar, ler e conversar com os deuses. Cícero foi um deles. Muitos anos depois, chegou Miguel de Cervantes, sobrevivente da batalha de Lepanto, para se restabelecer de ferimentos graves num braço. Do outro lado da ilha ficam os paraísos de Afionas e Porto Timoni, por onde deve ter andado, em tempos mais recentes, Eugénio de Andrade, ao que parece o único dos nossos “helenistas” a pisar Corfu.

«Kassiopi era idílica, à distância, claro: duas pequenas baías turquesa, com um promontório arborizado encravado entre as duas, e do outro lado da água, tão próximo que quase se podia gritar uma saudação, a solidez proibida das fabulosas cordilheiras das montanhas albanesas.»

Robert Dessaix, Corfu (Corfu, 2001), trad. Ana Teresa Castro, rev. lit. Maria da Piedade Ferreira, editora Gótica, Algés, 2004, pp. 51-52.   

Corfu, Καλάμι / Kalami

fotografia: filipe sousa | 18 junho 2023


















Dia 6 - Ilha de Corfu (Kalami, Nisaki)
Em 1939, em vésperas da Guerra, Henry Miller, que dispensa apresentações, decide visitar a Casa Branca, aceitando o convite do escritor e amigo Lawrence Durrell. Não a White House que estarão provavelmente a pensar, mas a localizada na aldeia de Kalami, no norte da ilha de Corfu. O que deveria ser um curto período de férias, acabou por se prolongar por nove meses, já com a guerra a decorrer. Para averiguar o que teria levado Miller a mudar de planos e a deixar-se ficar por mais tempo, resolvo dar uns bons mergulhos nas águas cintilantes, azul-turquesa e verde-esmeralda, da enseada de Nisaki, e pedir o menu no actual restaurante instalado na Casa Branca, rodeado de aromas da cozinha mediterrânica e de memórias de Lawrence Durrell. Uma combinação imperdível! E para que não restem dúvidas:

«Era quase meio-dia quando o barco atracou em Corfu. O Durrell estava à minha espera na doca com Spiro Americanus, o seu faz-tudo. A viagem de carro até Kalami, a pequena aldeia que fica para o extremo norte da ilha e onde o Durrell tinha a sua casa, demorou cerca de uma hora. Antes de nos sentarmos à mesa para almoçar, fomos dar um mergulho em frente da casa. Há quase vinte anos que não me metia na água. O Durrell e a mulher, a Nancy, pareciam um casal de golfinhos: viviam praticamente na água. Fizemos a sesta depois do almoço e, quando acordámos, fomos a remos até outra pequena enseada que ficava a um quilómetro e tal de distância, e onde havia uma capela branca minúscula. Chegando lá, baptizámo-nos novamente em pêlo.
(...)
Em Kalami os dias passavam como uma canção.
(...)
Eu partia de manhã à procura de enseadas e pequenos braços de mar onde pudesse nadar. Não se via vivalma. Eu era o Robinson Crusoe na ilha de Tobago. Ficava horas a fio deitado ao sol, sem fazer nada, sem pensar em nada. Manter a cabeça vazia é uma proeza, uma proeza muito saudável.»

Henry Miller, O Colosso de Maroussi  (The Colossus of Maroussi, 1941), trad. Raquel Mouta, Tinta-da-China, Lisboa, 2021, pp. 30, 31, 36, 58.

Corfu, Παλαιοκαστρίτσια / Paleocastrizzia

fotografia: filipe sousa | 17 junho 2023

 






















Dia 5 - Ilha de Corfu (Paleocastrizzia)
Se Paleocastrizzia, na costa oeste de Corfu, é um dos lugares onde a lenda situa o naufrágio de Ulisses, antes de este atingir a Ítaca natal, e o seu encontro, na praia, com a princesa Nausícaa, não custa também imaginar que o mosteiro que se ergue neste penhasco sobranceiro ao mar é o palácio de Alcínoo, rei dos Feácios e pai de Nausícaa, com os seus jardins magníficos, tais como são descritos na Odisseia. Poderá haver melhor lugar para nos sentarmos a sonhar de olhos abertos do que os degraus deste mosteiro, com o mar e o céu azul em fundo? Tudo na Grécia é concebido para a eternidade.

«Fora do pátio, começando junto às portas, estendia-se
o enorme pomar, com uma sebe de cada um dos lados.
Nele crescem altas árvores, muito frondosas,
pereiras, romãzeiras e macieiras de frutos brilhantes;
figueiras que davam figos doces e viçosas oliveiras.
Destas árvores não murcha o fruto, nem deixa de crescer
no inverno nem no verão, mas dura todo o ano.
Continuamente o Zéfiro faz crescer uns, amadurecendo outros.
A pêra amadurece sobre outra pêra; a maçã sobre outra maçã;
cacho de uvas sobre outro cacho; figo sobre figo.

Aí está também enraizada a vinha com muitas videiras:
parte dela é um local plano de temperatura amena,
seco pelo sol; na outra, homens apanham uvas.
Outras uvas são pisadas. À frente estão uvas verdes
que deixam cair a sua flor; outras se tornam escuras.

Junto à última fila da vinha crescem canteiros de flores
de toda a espécie, em maravilhosa abundância.
Há duas nascentes de água: uma espalha-se por todo
o jardim; do outro lado, a outra flui sob o limiar do pátio
em direcção ao alto palácio: dela tirava o povo a sua água.
Tais eram os belos dons dos deuses em casa de Alcínoo.»

Homero, Odisseiacanto VII, vs. 112-132, trad. Frederico Lourenço, Livros Cotovia, Lisboa, 2003, p. 119.

Κέρκυρα / Kérkyra / Corfu, Γαρδίκι / Gardiki

fotografia: filipe sousa | 17 junho 2023

 






















Dia 5 - Ilha de Corfu (Gastouri, Gardiki, Paleocastrizzia)
Chego a Gastouri com a expectativa não tanto de visitar o pesado Achilleon, o palácio de Sissi, menos conhecida por Elisabeth, imperatriz da Áustria, mas o seu magnífico jardim suspenso sobre a costa, a escassos dez quilómetros a sul da cidade de Corfu. Acabo por bater com o nariz no portão. Encerrado durante os próximos dois anos por motivo de obras de conservação, informa-me um guarda.
A decepção dura até encontrar bem perto as primeiras oliveiras monumentais, responsáveis por boa parte do coberto vegetal da ilha e cujo plantio foi incentivado pelos venezianos a partir do final do século XIV. Este interesse explica-se porque os camponeses corfiotas recebiam uma recompensa de dez moedas de ouro por cada olival de cem oliveiras plantadas. Ao mesmo tempo, pagavam os impostos em azeite. A maioria das árvores é desse tempo, atingindo dimensões invulgares devido a nunca terem sido podadas! De entre os que foram tocados pela sua beleza, conta-se Edward Lear (1812-1888), que visitou a ilha em duas ocasiões, 1848 e 1855, e nos deixou magníficas gravuras destas oliveiras centenárias, de troncos amplos e retorcidos.
Vou confirmando, nos vários olivais que visito, que as azeitonas são varejadas de forma tradicional ou então, nos olivais instalados em declives, caem naturalmente sobre redes, sem tocarem no chão, que as encaminham para lugares de recolha em zonas mais baixas. Em Paleocastrizzia, encontrei um olival assim, tão próximo da costa que havia restos de azeitonas na praia e até no fundo do mar!
Aqui não há vestígios de tratamentos químicos e as árvores são intocáveis, o que faz com que passear nestes olivais seja um prazer e o azeite obtido de uma grande pureza. Em vez de olivais intensivos e superintensivos, encontramos florestas cerradas em que as oliveiras são respeitadas como divindades. Pura poesia! Chego assim a Lawrence Durrell e Eugénio de Andrade, e à homenagem de ambos às oliveiras de Corfu.

SOBRE O DESEJO


Hei-de levar este esplendor para um poema, dizia eu, sempre que me estendia à sombra branca e miúda de uma oliveira. Mas fosse onde fosse, em terras de Corfu ou de Maiorca, nos campos de Siena ou no chão da minha infância, sempre adormeci sobre o desejo.
Hoje, que a violência do estio me levou a escarvar a própria pedra, queria apenas uma dessas árvores de bruma, por mais exígua, e adormecer à sua sombra.

Eugénio de Andrade, «Memória Doutro Rio» (1976-1977), in Poesia e Prosa (1940-1980), 2ª ed., Limiar, Porto, s.d., pp. 252-253.


OLIVES

The grave one is patron of a special sea,
Their symbol, food and common tool is one,
Yet chthonic as ever the ancients realized,
Nothing your tips in trimmings kindled quick,
Your mauled roots roared with confused ardours,
Holding in heat, like great sorrows contained
By silence; dead branch or alive grew pelt
Refused the rain and haboured the ample oil
For lamps to light the human eye.

So the poets confused your attributes,
Said you were the Other but also the domestic useful,
And as the afflatus thrives on special discontents,
Little remedial trespasses of the heart, say,
Which grows it up: poor heart, starved pet of the mind:
They supposed your serenety compassed the humann span, 
Momentous, deathless, a freedom for the chain,
And every one wished they were like you,
Who live or dead brought solace,
The gold spunk of your berries making children fat.
Nothing in you being lame of fraudulent
You discountenanced all who saw you.

No need to add how turning downwind 
You pierce again today the glands of memory,
Or how in summer calms you still stand still
In etchings of a tree-defining place.

Lawrence Durrell, Poems, Faber and faber Limited, London, 2006, p. 47.

Κέρκυρα / Kérkyra / Corfu

fotografia: filipe sousa | 17 junho 2023

 

















Dia 5 - Ilha de Corfu (cidade de Corfu)
Acordo com o apito de um navio de cruzeiro a ecoar na cabeça, que me faz saltar da cama para a marginal de Corfu. Por muito grande e atenta que seja a deambulação exploratória, como é a minha, em vão se procuram traços gregos na arquitectura da cidade de Corfu. Em vez do habitual casario térreo cubista desalinhado e padrão cromático azul e branco característico de muitas das ilhas helénicas, aqui vigora o estilo veneziano, fruto da presença da Sereníssima na ilha durante mais de quatrocentos anos (de 1386 a 1797), bem visível nas suas casas altas apalaçadas, de fachadas com molduras e combinações harmoniosas de ocre e rosa. Para não falar das antigas fortalezas, também elas de feitura veneziana, decisivas para proteger a cidade dos frequentes ataques turcos no passado, e que possibilitam hoje excelentes vistas sobre a cidade, a baía de Garitsas e as montanhas da Albânia, do outro lado do estreito. Isto para quem quiser dar-se ao trabalho de subir o morro até ao farol ou ao topo onde se ergue uma enorme cruz de ferro, bem entendido. Há ainda redutos em que são notórias influências francesas, como os edifícios com galerias junto à Esplanada central ou o bonito largo onde se encontra a principal Igreja da cidade, consagrada a Santo Espiridão. Acabo de chegar ao largo, a tempo de assistir a uma missa segundo o rito bizantino.
Mas se a arquitectura é, no essencial, veneziana, o ambiente que se vive em Corfu prima por ser cosmopolita. Foi assim no passado; é assim no presente. Por exemplo, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, convergia para aqui uma fauna de refractários, excêntricos e abonados do mundo inteiro à procura do seu Paraíso, o que quer que isso fosse. Muitos vieram por pouco tempo; e muitos acabaram por ficar uma vida ou grande parte dela. Como aconteceu com os Durrell (para quem viu a série ou para quem é leitor de Lawrence Durrell, o autor do Quarteto de Alexandria, sabe do que estou a falar).
Hoje em dia, as esplanadas enchem-se sobretudo de nórdicos e ingleses que chegam para viver, por breves horas que seja, os prazeres da cidade, sobretudo passageiros em trânsito dos navios de cruzeiro. Há também uma elite de jovens abastados - indicam-no a roupa de marca que vestem e os perfumes caros que emanam -, que aqui encontra bons motivos de diversão. Basta percorrer a baixa da cidade numa sexta-feira ou sábado à noite para confirmar que Corfu se transformou numa Meca para uma certa juventude de latitudes mais a norte, ávida de céu e mar azul, que aqui pode dar largas ao seu desejo de viver a vida fora de casa, mas não tão longe assim que a faça temer pela sua segurança. Privilégio de quem nasceu deste lado do mundo.
Enquanto peço um café na Esplanada e constato que há poucos jovens na rua – com certeza estarão ainda a dormir depois de uma noite de folia -, não duvido que um Durrell tenha estado exactamente onde estou agora, recolhendo impressões para a sua escrita.
Abro o livro que trago comigo, titulado Corfu, e a descrição de Robert Dessaix ganha subitamente uma dimensão real:

«Caminhei lentamente com a multidão em direcção à cidade que ficava na colina, com os olhos postos na fabulosa cidadela veneziana elevando-se do mar num amontoado rochoso à minha direita. E sobre o topo das suas muralhas, proclamando a morte e ressurreição de Jesus aos infiéis na Albânia para lá do estreito, erguia-se a cruz mais ostensiva e monstruosa da cristandade. (...)

Não há nada de grego na cidade de Corfu. De facto, essa é provavelmente a razão por que muitos estrangeiros a acham tão atraente. É uma cidade veneziana, um labirinto de ruas estreitas pavimentadas por paralelepípedos entre duas sólidas fortalezas venezianas. Ao fim e ao cabo os Venezianos estiveram aqui mais de quatrocentos anos. Ao longo do cume dos penhascos, entre o Forte Velho, sobressaindo em direcção ao mar com a cruz ao topo, e a elegância das colunatas da velha cidade, há uma faixa de parque, resplandecente de árvores-da-Judeia violáceas na altura da Páscoa, onde os Corfiotas gostam de passear em grupos barulhentos e de vez em quando jogar críquete. (...)

...fiz o que as pessoas com tempo para gastar fazem em lugares estranhos: sentei-me a uma mesa debaixo dos arcos de frente para o parque (mais Paris do que Veneza, na verdade, esta faixa de cafés, construídos pelos Franceses para se lembrarem da rue de Rivoli), pedi um café e comecei a escrever um postal. Era aqui que, no tempo de Durrell antes da Segunda Guerra Mundial, todos se juntavam (todos bem vestidos, ou seja, todos com dinheiro no bolso para se escandalizarem uns aos outros com bocados de bisbilhotices sumarentas. Talvez o façam ainda em momentos mais tranquilos, mas nesse dia as mesas estavam atravancadas com Atenienses exageradamente vestidos, para não referir as hordas de Dinamarqueses e Holandeses imponentes.»

Robert Dessaix, Corfu (Corfu, 2001), trad. Ana Teresa Castro, rev. lit. Maria da Piedade Ferreira, editora Gótica, Algés, 2004, pp. 41-42.     

Ιόνιο Πέλαγος / Mar Jónico

fotografia: filipe sousa | 16 junho 2023

 

















Dia 4: Igoumenitsa-Ilha de Corfu
O ferry zarpa do porto de Igoumenitsa com a proa apontada à ilha de Corfu. São dezoito milhas náuticas entre um ponto e outro, no mar Jónico, que se vencem em uma hora e meia de tranquila navegação. Uma viagem de sonho, por que esperei a vida inteira.
À medida que os contornos das ilhas de Paxos e Antípaxos, à esquerda, se vão esfumando na distância, a costa leste de Corfu e as montanhas albanesas começam a desenhar-se no horizonte, num crescendo de nitidez. Mais a sul, fica o penhasco da ilha de Lefkada, de onde Safo saltou para a eternidade. E mais a sul ainda, adivinha-se Ítaca, com a sua aura de lenda homérica.
Entretanto, o tempo dá sinais de querer mudar de novo. Céu e mar fundem-se na mesma cor de chumbo e a chuva é uma inevitabilidade à entrada da cidade de Corfu. Tornando os ocres e os rosas dos edifícios venezianos ainda mais brilhantes, como numa pintura renascentista.
A partir do momento em que piso a ilha, sei que tenho dois dias bem contados para pôr o meu plano em prática: visitar o Achilleon, o palácio de Elisabeth, imperatriz da Áustria, mais conhecida por Sissi, deambular pela cidade de Corfu, na peugada dos Durrell, visitar a Casa Branca onde viveram e também Paleocastrizzia e Kassiopi, conhecer algumas praias paradisíacas, banhar-me nas suas águas transparentes, cor de safira, e abraçar as oliveiras colossais da ilha, convocando Edward Lear e as suas aguarelas. Como alguém disse: estar em Corfu ultrapassa o estado de felicidade; é a ventura absoluta! A descrição de Lawrence Durrell não podia ser mais apropriada à ocasião:

«(...) à frente do navio está a terra e à direita a corcova duma ilha. A ilha é fácil de identificar - aquelas montanhas imponentes, polidas como peças de fruta numa loja, são albanesas. São grandes e calvas, com as cores quentes que o sol lhes dá ao elevar-se com esforço por cima dos ombros delas para brilhar sobre o mar. Corfu jaz como uma foice pousada junto aos flancos do litoral continental e forma uma baía grande e tranquila que se estreita em ambas as extremidades, de modo que as marés espremem-se e acalmam-se ao entrarem nela. (...) gradualmente o canal principal torna-se visível, e com ele o antigo farol veneziano que indica os baixios. Agora o navio vira abruptamente, com se rodasse nos calcanhares, e aponta a sul, deixando a Albânia à sua esquerda. À direita é o canal, tão estreito que as primeiras aldeias estão, ou parecem estar, apenas a umas centenas de metros de distância. De facto, no seu ponto mais estreito, o extremo norte de Corfu está separado da Albânia apenas por dois quilómetros de mar.»

Lawrence Durrell, As Ilhas Gregas (The Greek Islands, 1978), trad. Carlos Leite, Relógio d'Água Editores, Lisboa, 2016, pp. 21-22.     

Ηγουμενίτσα / Igoumenitsa

fotografia : filipe sousa | 16 Junho 2023

 

















Dia 4: Tessalónica - Igoumenitsa
Quatro horas e meia, o equivalente a trezentos e vinte quilómetros, foi quanto o autocarro demorou para ligar o mar Egeu ao mar Jónico, o mesmo é dizer Tessalónica a Igoumenitsa, cruzando as regiões de Macedónia e Epiro. Um percurso montanhoso, ora atravessando túneis ora sobre as nuvens, com a morada dos deuses à esquerda (Olimpo) e a dos ursos-pardos à direita, a julgar pelo número invulgar de sinais de trânsito que nos alertam para a sua presença ao longo de florestas a perder de vista.
Sob chuva tocada a vento, às vezes copiosa, vi-me grego para chegar ao destino, perto da fronteira entre a Grécia e a Albânia. Só descansei na descida para Igoumenitsa, com a aparição das primeiras oliveiras e dos primeiros raios de sol.
Nada comparável com a tormenta que Ulisses enfrentou, instigada pelo irascível Poseidon, e o fez naufragar não longe daqui, junto à ilha dos Feácios.
É para lá que me dirijo agora, a bordo do ferry Corfu Spirit.

«Durante dezassete dias naveguei sobre o mar;
no décimo oitavo dia apareceram as montanhas sombrias
da vossa terra: alegrou-se à sua vista o coração deste homem
malfadado: pois na verdade eu estavas prestes a sofrer algo
de terrível que contra mim mandara Posídon, Sacudidor da Terra.
Agitou os ventos, assim atando o meu percurso; encrespou
o mar de modo indizível, a ponto de as ondas não deixarem
que eu fosse levado, gemendo sem cessar, pela jangada,
que seria despedaçada pela tempestade. Mas eu atravessei
a nado o grande abismo do mar, até que atingisse
a vossa terra, levado pelo vento e pelo mar.
Mas ao tentar sair da água, as ondas atiravam-me contra a costa,
contra os grandes rochedos, sítio que nada tinha de aprazível.
Recuei e pus-me de novo a nadar, até que cheguei a um rio, que me pareceu o melhor sítio:
livre de rochas; abrigado do vento.»

Homero, Odisseiacanto VII, vs. 267-282, trad. Frederico Lourenço, Livros Cotovia, Lisboa, 2003, pp. 123-124.

Θεσσαλονίκη / Tessalónica, Άνω Πόλη / Ano Poli

fotografia: filipe sousa | 15 junho 2023

 

















Dia 3 - Tessalónica
Debaixo de viadutos ou entre prédios modernos, as ruínas do passado despontam como cogumelos em Tessalónica, marcando a fisionomia da cidade. Umas mais preservadas do que outras, mas todas importantes para a história do lugar, revelam o que foram torres, muralhas, arcos, anfiteatros, igrejas, oratórios… Dos períodos micénico, helenístico, romano, bizantino e otomano, mas também de tempos recentes como as casas devolutas, dos séculos XIX-XX, da cidadela de Ano Poli, onde Tessalónica teve início. É este o local ideal, a partir do mirante do convento bizantino de Vlatadon, para descobrir a beleza oculta da cidade, feita de amálgamas e vicissitudes, de construções e reconstruções, de antigo e moderno, de ordem e desleixo, de mundos tão diversos que, longe de destoarem, lhe conferem uma aura especial. Como já notara Lawrence Durrell, um incondicional amante do mundo helénico, «a Grécia é um jardim selvagem onde tudo cai em ruínas, violenta, vertical e blasfema…mas não domada».
Algo a que também foi sensível o nosso Eugénio de Andrade quando por aqui passou.

«Parco de haveres, nascido em terras onde a luz à noite era de azeite e o pão tinha a cor das pedras, todo o excesso me parece uma falta de gosto, todo o luxo uma falta de generosidade. Dito isto, não poderá estranhar-se que me sinta tão religado ao solo pobre e arcaico da Grécia e à fecunda harmonia da sua cultura: o mar de Homero entre as colunas de Súnion, as ruas de Salónica com os muros acabados de caiar, a sombra luminosa dos degraus de Epidauro, onde ressoam ainda os versos supremos de Esquilo, têm para mim um prestígio que nenhum parque de Londres, ou praça de Paris, ou avenida de Nova York poderão alcançar a meus olhos.»

Eugénio de Andrade, À Sombra da Memória, Fundação Eugénio de Andrade, Porto, 1993, p. 130.