Moura, Rua das Hortas

fotografia: filipe sousa | 17 maio 2016



























Matrioska de jardins

Finalmente, a viagem conduz-nos à cidade-jardim de Moura, com os seus mais de mil pátios, quintais, hortas, poços e tanques de rega. 
De entre as inúmeras manchas verdes que dão título à cidade, destacam-se as hortas do vale da ribeira de Brenhas, nas cercanias do Sete e Meio, rondadas dia e noite por rebanhos badalantes, caçadores de perdizes e apanhadores de espargos. 
De todas as hortas-jardim capazes de deslumbrar, nenhuma iguala a que nos espera ao fundo da rua das Hortas, bem exposta ao sol e resguardada dos ventos dominantes, onde vicejam couves, alfaces, beringelas e demais verduras comestíveis.
Dentro desse jardim, um outro se revela ao longo da álea plantada de romãzeiras em ordem e de ervas odoríferas em desalinho, que não poupam nos seus perfumes e se desenvolvem em terraços a níveis diferentes conforme a inclinação do talude, numa mistura de tamanhos, densidades e cores. Por aqui podemos deambular de olhos fechados, como se jogássemos à cabra-cega dos aromas, num passeio tranquilo e meditativo.
No final desse passeio-deambulato, existe um outro jardim, mais secreto e refrescante que todos os outros, onde coabitam as plantas mais sensíveis ao calor e aridez. Esconde-se sob a figueira, cuja folhagem impede o sol de ver o chão, à beira do tanque espelho de água, de que se assenhorearam ninfas, nereides e alguns barbos e onde abeberam andorinhas e morcegos em voos rasantes, sem lhes pedirem licença. Este é o mais íntimo e reservado dos jardins, que se fecha ainda mais sobre si próprio, e que é a imagem de um paraíso prometido. Este é o jardim em que os desejos despertam todos ao mesmo tempo a assediar-nos.

«Isaura, cidade dos mil poços, presume-se que se situe por cima de um profundo lago subterrâneo. Por toda a parte onde os habitantes escavem na terra longos furos verticais conseguem tirar água, e foi até aí e não para além desses limites que se alargou a cidade: o seu perímetro verdejante repete o das margens escuras do lago sepultado, uma paisagem invisível condiciona a visível, tudo o que se move sob o sol é impelido pela onda que bate encerrada sob o céu calcário da rocha.»

Italo Calvino, As cidades invisíveis (Le città invisibili, 1990), trad. José Colaço Barreiros, editorial Teorema, Lisboa, 2002, p. 24. 

«O Jardim das Ervas Aromáticas, um hortus conclusus murado, com um tanque de degraus, canteiros rectangulares e pequenas aberturas emolduradas de hera voltadas para o lago, era simplesmente corânico. Era o jardim erguido dentro de O Jardim, o luxuriante, umbroso e bem regado jardim da Isola Grande. Os Árabes, suponho, tinham boas razões para imaginar o Paraíso como um pomar murado de romãzeiras e laranjeiras, jacintos e madressilvas, atravessado por riachos de leite, água e (sim senhor) vinho. Não vivo num deserto, mas há qualquer coisa na visão islâmica que me atrai fortemente. Pensando bem, não me parece que sejam as palmeiras e as rosas que tanto me encantam, ou os pentes de prata e as eructações almiscaradas, ou a ausência de crianças e de sémen, ou sequer a presença de belos e jovens servidores e servidoras (dos quais há vários, por sinal, no pavilhão do alto da colina). Não, tem mais a ver, penso eu, com a visão de recintos interligados, com a concepção claustral, isolada, que a visão muçulmana transmite - o firdau ou djanna, como os Árabes chamam ao Paraíso, é, ao fim e ao cabo, um jardim murado. Mas que quero eu manter do lado de fora. Será, no meu caso, a cidade?».

Robert Dessaix, Cartas de Veneza (Night Letters, 1996), trad. Mário Dias Correia, Gótica, Lisboa, 2002, pp. 51-52.

Berlin / Berlim, Postdamer Platz


fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2020






































«Chamo a isto solidão compacta. Reduzido a mim próprio, separado do mundo exterior, no quarto, uma cápsula espacial (o mesmo silêncio, a mesma aparente imobilidade), torno-me mais denso. Ideias e sensações viram-se para dentro, cruzam-se, confundem-se pouco a pouco numa matéria única onde se distingue dificilmente qualquer coisa que não seja o sentimento pastoso, espesso da solidão. Uma esponja cheia.
Estendo-me na cama de ferro, com o cigarro aceso, e deixo passar o tempo. Outra ilusão. Na cápsula o tempo é imponderável. Pelo menos parece. Se pesa e passa, não dou por isso. Lá fora a luz crepuscular de manhã à noite, a monotonia, talvez com mais nuances do que a interior, em todo o caso tão pobres, tão cansativas, que fecho os olhos.
(...) 
Anoiteceu. O céu tão limpo. É o que sucede depois destes nevoeiros. A porta sossegou. Afinal o presente, o futuro, interessam-me também. Não os rejeito, Gelnaa. Não rejeito nada. Espero. A solidão compacta desapareceu. Perante as estrelas torna-se difusa, quer dizer, suportável. Perde a consistência interior, evola-se de mim (não toda evidentemente), dissolve-se no mundo. Respiro outra vez.
A grande máquina trabalha. Bichos escondidos entre estrelas; Toiro, Leão, Carneiro, etc.; de flancos incendiados. Um desenho infantil. Penso que tudo isto pode ter morrido há muito. A estrela mais próxima, a oito anos-luz, é Sirius (sem falar da Alfa do Centauro invisível no hemisfério norte). Se explodir agora, só daqui a oito anos deixarei de a ver. Outras, daqui a cem, mil, um milhão, biliões... Não faz sentido. Perco-me nas contas.
O céu real é talvez irreal. Nada me garante que não contemplo um universo morto, um deserto. Talvez a máquina de facto parasse. Mas trabalha ainda nos meus olhos. Tece neles a sua própria harmonia. Dentro de oito anos pensarei na catástrofe ou no cansaço a que o médico dá o nome clínico de angústia. Tentarei então separar a aparência da realidade, se valer a pena.

Carlos de Oliveira, O Aprendiz de Feiticeiro («A Fuga»), 3º ed. (corrigida), Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1979, pp. 212, 220, 221. 

Roma, Via Celio Vibenna

fotografia: filipe sousa | 25 junho 2015






























«À noite, a arquitectura cedia lugar à música, essa construção invisível. Pratiquei mais ou menos todas as artes, mas a dos sons é a única em que me tenho constantemente exercitado e em que me reconheço uma certa excelência. Em Roma dissimulava esse gosto, mas em Atenas podia entregar-me a ele à vontade. Os músicos juntavam-se no pátio onde estava plantado um cipreste, junto de uma estátua de Hermes. Seis ou sete apenas: uma orquestra de flautas e de liras, à qual se juntava por vezes um virtuoso com uma cítara. A maior parte das vezes eu tocava a grande flauta travessa. Tocávamos árias antigas, quase esquecidas, e também melodias novas compostas por mim. Gostava da austeridade viril das árias dórias, mas não detestava as melodias voluptuosas ou apaixonadas, as suspensões patéticas ou sábias, que as pessoas graves, cuja virtude consiste em tudo temer, rejeitam como perturbantes para os sentidos ou para o coração. Avistava por entre as cordas o perfil do meu jovem companheiro, sensatamente ocupado a desempenhar a sua parte no conjunto, e os seus dedos tocando com cuidado ao longo dos fios esticados.»

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (Mémoires d'Hadrien, 1951), trad. Maria Lamas, 3ª ed., Editora Ulisseia, 1984, p. 136.

Puerto Lápice, Calle El Molino 2

fotografia: filipe sousa | 8 março 2020

Neste dias em que andamos meio perdidos, perdamo-nos outro tanto, como que para contrabalançar, com a leitura/releitura das aventuras do engenhoso fidalgo D. Quixote de la Mancha. Provavelmente, um dos melhores antídotos contra o ambiente pesado que se respira. Quem disse que este era, por excelência, «o» Romance, estava redondamente certo. Isto traduzido em desafio significa (re)ler cerca de 1000 páginas, distribuídas por 122 capítulos (mais o prólogo), à razão de 1 capítulo por dia, com início no próximo dia 1 de Abril. Se tudo correr bem, teremos dado a empreitada por terminada exactamente no dia 1 de Agosto, sem o vírus, esperamos, rondando ao virar da esquina (ou da duna de areia).
Nessa altura, já contagiados pela obra, podemos sempre reservar uma quarentena para viajar pela Rota Literária do Quixote (http://www.rutaquijote.es/), cruzando a Mancha imensa e profunda, de lés a lés, e recriar no terreno as alucinações, penas e tormentos do cavaleiro da triste figura.
A primeira paragem pode bem ser em Puerto Lápice (extraordinário topónimo!), na estalagem onde, reza a ficção, D. Quixote foi armado cavaleiro, pensando encontrar-se num castelo. Entremos, pois, no número 2 da calle El Molino.

«Quase todo aquele dia caminhou sem lhe acontecer nada de digno de ser contado, do que ele se desesperava, porque gostaria de achar imediatamente com quem experimentasse quanto valia o seu forte braço. Há autores que dizem que a primeira aventura que lhe aconteceu foi a de Puerto Lápice; outros dizem que a dos moinhos de vento; mas o que eu pude averiguar neste caso, e o que achei escrito nos anais da Mancha, é que ele andou todo aquele dia e, ao anoitecer, o seu rocim e ele estavam cansados e mortos de fome; e, que, ao olhar para todas as partes para ver se descobria algum castelo ou algum aprisco de pastores onde recolher-se e remediar a sua muita fome e necessidade, viu, não longe do caminho por onde ia, uma estalagem, que foi como se visse uma estrela que não para as portas da entrada, mas para os alcáceres da sua redenção o encaminhava. Apressou-se a caminhar e alcançou-a quando anoitecia.
(...)
Seria a da alvorada quando D.Quixote saiu da estalagem, tão contente, tão airoso, tão alvoroçado por ver-se já armado cavaleiro, que o prazer rebentava-lhe pelas cilhas do cavalo. Mas vindo-lhe à memória os conselhos do seu hospedeiro acerca das provisões tão necessárias que devia levar consigo, especialmente a do dinheiro e das camisas, resolveu voltar a casa e prover-se de tudo, e de um escudeiro, fazendo conta de admitir um lavrador seu vizinho, que era pobre e tinha filhos, mas muito adequado para o ofício de escudeiro da cavalaria. Com este pensamento, guiou Rocinante para a sua aldeia, o qual, quase conhecendo a sua querença, com tanta vontade começou a caminhar que parecia não pousar os pés no chão.»

Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, parte I, caps. II, IV, pp. 43, 52. 

Bergamo / Bérgamo, Via Salvecchio

fotografia: filipe sousa | julho 2003







































No dia mundial da poesia, um poema para (os/as que resistem em) Bérgamo.

FESTA 

Quando romper a manhã… 

Não, 
nada de estandartes desfraldados, 
bandeiras a baloiçar-se ao vento. 
Nem gritos, nem manifestações, 
nem meetings no bulício da praça. 
Tão-pouco a embriaguez desvairada, 
a louca conquista da rua. 

Quando romper a manhã, 
saibamos erguer a fronte 
ao sol puro. 
Em silêncio olhar de frente, 
na curva do horizonte, 
o novo sol-nascente. 
Saibamos recolher-nos 
e, por um longo momento, 
pesar, 
respirar, 
captar as múltiplas vivências da tranquila 
alegria que irá brotar ininterrupta, 

quando romper a manhã. 

Rui Knopfli, Nada tem já encanto - poemas escolhidos (País dos outros, 1959), selec. Pedro Mexia, Tinta-da-China, Lisboa, 2017, p. 38.

Algures entre Amieira e São Marcos do Campo

fotografia: filipe sousa | 10 abril 2016



























O MELHOR PRETEXTO

É tão frágil a vida,
tão efémero tudo!
(Não é verdade, amiga,
Olhinhos-cor-de-musgo?)

E ao mesmo tempo é forte,
forte da veleidade 
de resistir à morte
quanto maior a idade.

Assim, aos trinta e sete,
fechados alguns ciclos,
a vida ainda pede
mais sentimento, vínculos.

Não tanto os que nos deram
a fúria de viver,
como esses descobertos
depois de se saber

que a vida não é outra
senão a que fazemos
(e a vida é uma só,
pois jamais voltaremos).

Partidários da vida,
melhor: do que está vivo,
digamos «não!» a tudo
que tenha outro sentido.

E que melhor pretexto
(quem o saiba que o diga!)
teremos p'ra viver 
senão a própria vida!

Alexandre O'Neill, Poesias Completas (Poemas com endereço, 1962), 3ª ed., Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, pp. 184-185.

Mina de São Domingos

fotografia: filipe sousa | março 1990





































València / Valência, Carrer de Sánchez Arjona 12


fotografia: filipe sousa | 12 março 2020



























A proposta das designers María Pradera e Lorena Savayera, a dupla criativa do estúdio Yinsen, para a Falla deste ano da carrer de la Corona, em Valência, traduziu-se na produção de uma carrinha de transporte de valores sob o lema da emergência climática e da crítica à sociedade de consumo e ao sistema capitalista. No seu interior, viajam 54 milhões de euros; no exterior, pode ler-se, em valenciano: Jo per a ser feliç vull un camió (Para ser feliz, quero um camião). O acto de queimar a carrinha carregada de dinheiro, no último dia das festividades (19 de março, hoje, portanto), não podia ter um significado mais provocatório e mordaz. 

Mas isso era antes do Coronavírus ter reclamado todo o palco das nossas preocupações e causado a suspensão das Fallas, decretada no dia 11. Em consequência, a carrinha amarela da Prousegur, de poliestireno de alta densidade, não chegou a sair da oficina de Manolo Martín, situada na carrer de Sánchez Arjona, onde a fomos encontrar com a matrícula devidamente ajustada à nova situação. Esperam os organizadores poder realizar as Fallas em Julho, depois de debelada a pandemia. Nessa altura, a «mensagem» da carrinha amarela continuará, convençamo-nos, tão ou mais emergencial que antes da crise sanitária.

Argamasilla de Alba, Calle Cervantes 7

fotografia: filipe sousa | 12 março 2020



























Crêem os de Argamasilla de Alba que foi na Cueva de Medrano que Cervantes deu início às aventuras de D. Quixote de la Mancha. Foi neste calabouço que terá estado encerrado, pensa-se que por cortejo à irmã do senhor local, o fidalgo demente Rodrigo de Pacheco, considerado o modelo do «cavaleiro da triste figura», ou por desvio de dinheiros, que Cervantes era então cobrador de impostos.

«Ocioso leitor: sem que eu jure, poderás acreditar que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais formoso, o mais airoso e mais sensato que se possa imaginar. Mas não pude contrariar a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra uma sua semelhante. E assim - que poderia engendrar o meu estéril e mal cultivado engenho senão a história de um filho seco, encarquilhado, caprichoso e cheio de pensamentos inconstantes e nunca imaginados por outrem, como quem foi engendrado numa prisão onde todos os tormentos encontram o seu lugar e onde todo o triste ruído faz a sua habitação?»

Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha,
 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, prólogo, p. 19.  

Barcelona, Passeig de Gràcia 92

fotografia: filipe sousa | 25 junho 2017



























A arquitectura assombrosa de Gaudí e a ficção escatológica de Italo Calvino sobre o nosso tempo.

«Invasões frequentes atribularam a cidade de Teodora no decorrer dos séculos da sua história; por cada inimigo destroçado outro ganhava força e ameaçava a sobrevivência dos habitantes. Livre o céu dos condores, teve de enfrentar o crescimento das serpentes, o extermínio das aranhas deixou as  moscas multiplicar-se e negrejar; a vitória sobre as térmitas entregou a cidade nas mãos dos carunchos. Uma a uma as espécies inconciliáveis com a cidade tiveram de sucumbir e extinguiram-se. À força de dilacerar escamas e carapaças, de extirpar élitros e penas, os homens deram a Teodora a exclusiva imagem de cidade humana que ainda a distingue.
Mas antes, durante longos anos, ficou incerto se a vitória final não seria da última espécie que resta a disputar aos homens a posse da cidade: os ratos. De cada geração de roedores que os homens conseguiam exterminar, os poucos sobreviventes davam luz a uma prole mais aguerrida, invulnerável às ratoeiras e refractária a todos os venenos. No decorrer de poucas semanas, os subterrâneos de Teodora repovoavam-se de hordas de ratos invasores. Finalmente, com uma extrema hecatombe, o engenho mortífero e versátil dos homens venceu as abusadoras atitudes vitais dos inimigos.
A cidade, grande cemitério do reino animal, encerrou-se asséptica sobre os últimos cadáveres sepultados com as suas últimas pulgas e os últimos micróbios. O homem tinha finalmente restabelecido a ordem do mundo por ele mesmo abalada. Nenhuma outra espécie viva existia para o repor em causa. Para memória da que tinha sido a fauna, a biblioteca de Teodora conservava nas suas estantes os tomos de Buffon e de Lineu. 
Pelo menos os habitantes de Teodora assim o julgavam, longe de supor que uma fauna esquecida estava a despertar do letargo. Relegada durante longas eras em esconderijos longínquos, desde que fora apeada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna voltava à luz vinda das caves da biblioteca onde se guardam os incunábulos, lançava-se em grandes saltos dos capitéis e dos algerozes, empoleirava-se nas cabeceiras dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse da sua cidade.»

Italo Calvino, As cidades invisíveis (Le città invisibili, 1990), trad. José Colaço Barreiros, editorial Teorema, Lisboa, 2002, pp. 160-161. 

València / Valência, Plaça de l'Ajuntament

fotografia: filipe sousa | 11 março 2020

Campo de Criptana, Calle Cuesta Virgen de la Paz

fotografia: filipe sousa | 9 março 2020







































Cruzando as planuras de Campo de Criptana, em plena Castilla-la Mancha, ao encontro dos moinhos das aventuras de D. Quixote.

«Nisto, avistaram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo, e logo que D. Quixote os viu, disse ao escudeiro:
-A boa sorte guia as nossas coisas melhor do que poderíamos desejar; porque vês além, amigo Sancho Pança, onde se avistam trinta ou pouco mais descomunais gigantes, com que tenciono travar batalha e tirar a vida a todos, com cujos despojos começaremos a enriquecer; pois esta é uma guerra justa e um grande serviço a Deus tirar tão má semente da face da Terra.
-Que gigantes? - disse Sancho Pança.
-Aqueles que ali vês - respondeu o amo - de braços compridos, que alguns costumam ter braços de quase duas léguas.
-Olhe vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que além se vêem não são gigantes, mas moinhos de vento, e o que neles parecem braços são as velas que, andando à volta com o vento, fazem girar a pedra do moinho.
-Bem se vê - respondeu D. Quixote - que não tens experiência de aventuras: eles são gigantes; e, se tens medo, sai daí e põe-te a rezar enquanto vou atacá-los numa feroz e arriscada batalha.»

Miguel de Cervantes, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha (El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha, 1605), trad. José Bento, Relógio d'Água Editores, 2005, parte I, cap. VIII, p. 74. 

Berlin / Berlim, Genthiner Strasse 38

fotografia: filipe sousa | 25 janeiro 2020



























«ESFINGE:
     (...) Nós vimos do Egipto, e há mil anos
     Que estamos sentadas nos nossos tronos.
     Tem cada uma seu ponto cardeal,
     E assim regemos o curso de Lua e Sol.
                Frente às pirâmides estamos,
                Somos juízes da terra;
                E impassíveis ficamos,
                Haja cheias, paz ou guerra.»

Johann W. Goethe, Fausto (Faust, Eine 
Tragödie, 1808, 1832), trad. João Barrento, Relógio d'Água Editores, Lisboa, p. 364, v. 7240.

Mosteiros

fotografia: filipe sousa | 21 juho 2016






























O Purgatório é uma ilha.

«As ilhas não são apenas ilhas, pois não? Quero eu dizer, não são apenas pedaços de terra rodeados de água, significam também algo menos tangível, sempre semidesejado. Quando avistamos uma ilha, parte de nós quer sempre ir para lá, não achas? Não consigo deixar de pensar que tem qualquer coisa a ver com uma resolução súbita. Ali estamos nós, a esbracejar no meio de toda aquela água turbilhonante, sem um ponto de referência, com horrores invisíveis que só podemos imaginar a rondar-nos abaixo da superfície, e de súbito aparece uma ilha no horizonte: um abençoado ponto fixo, um lugar de libertação, há tanto tempo desejada, da ansiedade que a desordem e a futilidade nos provocam, para não falar dos monstros que se escondem no nosso subconsciente. Por isso, qualquer ilha, mesmo a mais lisa ou rochosa, ou a mais árida, parece bela. É o eu que gostaríamos de ser. Dante, claro, se bem te lembras, diz que o Purgatório é uma ilha - o Inferno é nas profundezas da Terra e do Paraíso para lá do tempo e do espaço, mas o Purgatório, a região dos que não pecaram conscientemente, é uma ilha. Ali, a razão tem ainda alguma esperança de tornar-se visão.»

Robert Dessaix, Cartas de Veneza (Night Letters, 1996), trad. Mário Dias Correia, Gótica, Lisboa, 2002, p. 79.